quarta-feira, 30 de junho de 2010

Agora e sempre os espanhóis


As grandes bandeiras de D. Nuno Álvares Pereira que ontem se viram no estádio da Cidade do Cabo evocavam Aljubarrota no jogo de futebol entre Portugal e Espanha. Digam que é ridículo, eu gostei. Os espanhóis ganharam desta vez. Não discuto. Foi golo em off side, foi Ronaldo que passou de líder a liderado, foi a neura de sempre de Queirós, foi Coentão e Eduardo que não podem jogar por 11, foi o fatalismo lusitano depois do esférico (é assim, não é?) penetrar nas redes portuguesas, foi mérito do adversário. Admito, foi mérito do adversário, os nossos fizeram o que puderam pelo seu País e respeito as regras do jogo.
Diferente é o que se passa com o raide da espanhola Telefónica no braço português da PT, no Brasil. Eles querem dois pés nas telecomunicações de uma das maiores economias do Mundo que, pelos últimos boletins, cresce a 9%. As empresas são negócio e existe a livre concorrência. As regras do jogo também são claras mas há outras implicações a considerar: quem fizer tudo pelas regras, pode vender mas estará a fazer tudo contra as outras regras, que não precisam de ser escritas para serem praticadas, as que decorrem da nossa obrigação de defender o interesse de Portugal. Estes são os novos campos de Aljubarrota e todos os outros países os reconhecem e defendem sem pudor nem tibieza.
Tudo depende, por isso, do comportamento de portugueses e espanhóis, vulgo accionistas. E já se vêm os suspeitos do costume a venderem o que têm ou a prometerem vender. Sócrates fez o que pôde para defender a nossa posição. Justiça se faça. A Europa, higienicamente, ditará a sentença contra a golden share do Governo português.
Peço de volta o estandarte do Santo Condestável para mostrar a quem brada no Beato, «Compromisso Portugal!», mas vende os nossos interesses na primeira oportunidade de lucro fácil. Sem visão de lucro sustentado, sem passado, sem honra nem glória. Peço ainda o Tratado de Tordesilhas para lembrar que, naquele Mundo, nos entendemos em português.

(mais)

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Poder

O poder é o mais obsceno dos vectores de análise da política hoje em dia. Dizer que se quer poder roça a indecência. O poder é substituído por expressões elípticas e algo frouxas como “necessidades”, “enquadramento geo-estratégico”, “gestão de finalidades”, “estratégia” e outras quejandas. O poder está escondido, vive clandestino. A Europa fala pouco em poder, envergonha-se do que tem, tem medo de o usar e escuda-se nas paráfrases e no silêncio.

Quando se fala pouco de alguma coisa apenas nos valem os instintos, o que em si pode ser uma boa coisa, mas é em geral uma desgraça no espaço público. No mundo partilhado é pela comunicação que se é eficaz, e, convenhamos, a palavra não é dos piores meios de o fazer. O gesto pode ser curto e a arma algo longa demais.

Aprendi a não idolatrar a simplicidade por si mesma, porque em geral esconde deficiência intelectual. Mas a igualmente admirá-la quando nos ajuda a orientar de forma clara por caminhos algo obscuros. Em termos simples, portanto, vejo várias formas de poder. O politico, que se reduz à força simbólica ou física, o económico, o cultural e o social.

O paradoxo que vivemos é que verificando cada uma das dimensões do poder, rapidamente chegaríamos à conclusão que a Europa tem todas as condições para ser, a larga distância, o maior de todos. O maior PIB do mundo, uma economia que tem uma tripla possibilidade de crescimento: a comum, pelo crescimento da economia, o crescimento pelo desenvolvimento dos países periféricos que a integram (um dos maiores sucessos da integração europeia) e o crescimento pela adesão de novos países. Quase meio bilião de pessoas, sendo o terceiro maior agregado populacional do mundo. E não meio bilião de chineses, mas meio bilião de europeus, incomparavelmente mais cultos criativos e desenvolvidos. O sétimo maior país do mundo em dimensão, com três milhões e meio de quilómetros quadrados que não são Sahará nem Sahel. E uma potencialidade de expansão geográfica imensa por todo o verdadeiro território europeu (que irrompe na Rússia e não em janízaras paragens).

Esta auto-imagem de impotência daquela que é potencialmente a região mais poderosa do mundo, e é-o já actualmente em muitos aspectos, é das situações mais caricatas que a História já viu, não fora a tristeza de um espaço público desértico como o Sahará explicar esta desolação. Porque este horror ao poder, qual a necessidade de ter poder?
O ser humano teve sempre esta desagradável tendência de não fazer aquilo que nós queremos que ele faça. Por isso ou lhe forçamos a alma, ou lhe forçamos o corpo. Mas para quê este vício de queremos impor a nossa vontade aos outros? Bom, desde logo, porque existem outros que tem esse vício e pode-se dar o caso de a sua vontade não nos agradar. Dá-se o caso igualmente de termos interesses ou valores que seriam violados caso tivéssemos de obedecer a vontades alheias. Em último, mas não menos importante, lugar, porque impor a nossa vontade aos outros pode ser muitas vezes a única forma de podermos ter vontade própria.
A vida mostra-se pelo poder, alimenta-se do poder, molda-se pelo poder. O que um animal ou uma planta podem fazer é limite para o que efectivamente fazem. Quem não quer ter poder nenhum nada quer fazer. A inacção, a passividade delimita-o. O horror ao poder é igualmente horror à vida.

É evidente que o exercício e o crescimento do poder implicam risco. Daí que vejamos os bem-pensantes fazer o ar de mais compungida obstipação (é o que de mais próximo vêem como sendo inteligência) dizendo que temos de ser ponderados, que temos de ter consciência das nossas modestas dimensões. Julgam-se realistas, mas em suma são apenas limitados.
A verdade é que se espalhou um pudor em relação ao poder que me parece doentio. A palavra é omitida, a realidade é evitada. Mas desemboca com frequência no ódio a tudo o que cheire a poder. Só que a parte inconveniente desta postura é que o poder é sempre sinal de vida e é ele que abre as possibilidades. Um país fraco decide pouco, escolhe pouco para o seu futuro. Trabalha em margens de manobra que são definidas por outros. O facto de, não apenas se aceitar este destino para a Europa, mas se querer esse mesmo destino, mostra tão-somente um ódio à possibilidade, à abertura, em suma, à vida. Odiar o poder, todo ele, é sempre sintoma suicidário, tanto quanto o idolatrar.

Mas odiar o poder é igualmente odiar a liberdade, porque o poder é sempre a condição empírica da liberdade. Salvo se pretendermos colocar a Europa em levitação ou em perpétuo orgasmo místico como Santa Teresa de Ávila (estado difícil de atingir para todo um continente e igualmente difícil de manter, se tal fosse possível) não há liberdade empírica sem poder. O paradigma do cauteloso, do ponderado oficial, do pretensamente realista, é assim o orgasmo místico. Julga que não precisa de trabalhar para o poder porque tem o seu jardinzinho interior. Mas como não tem a graça divina pura e simplesmente é destituído de graça.

Um das vertentes desta triste postura é uma ideologia de fonte anglo-americana que vê a Europa como a grande soft power por oposição aos Estados Unidos, que seria o hard power. A expressão tem o requinte imagético de um amolador de facas de cozinha, mas atrevamo-nos a traduzi-la. Soft power: potência mole. Será eventualmente ideia excitante para alguns, e o ponto máximo de excitação que pretendem encontrar na vida, mas temo bem que mais uma vez seja desiderato de impotentes.

Nunca tal me havia passado pela cabeça mas temo bem que tenha alguma lógica. Todos os realistas tendem para o cristianismo e para o dogma como se vê com os tomistas e fenomenologistas primeiros da escola de Husserl, por exemplo. Compreende-se que assim seja na perspectiva da ontologia. O cristão, pelo menos os ortodoxos ocidentais e orientais, tem de aceitar a presença real na hóstia. E sob o ponto de vista metodológico o facto de se ir à procura das coisas, como Husserl gostava de dizer, levou os seus discípulos a converter-se ao cristianismo, por razões que se começam a tornar cada vez mais transparentes, e mesmo a formar uma mártir como Edith Stein.

Já os idealistas tendem a estabelecer fontes autónomas de legitimidade. A Renascença colocou ao lado do cristianismo ideias pagãs no mesmo plano, de um só golpe enriquecendo o cristianismo e enfraquecendo o seu monopólio. O curioso é que percebi até que ponto na nossa época impera o idealismo. A nossa época é idealista na perspectiva da ontologia. E fica-lhe muito mal. Porque o idealismo em coração aristocrático cai bem e em bolsa burguesa cheira a grosseria.

Renunciar ao poder é renunciar à realidade. Odiá-lo é odiá-la. Negá-lo é negá-la. A realidade, da velha e banal raiz “res”, coisa, só pode ser agida através do poder. Bastar-se com um poder mole é querer ter um contacto mole com a realidade, com as coisas. Recusar ter poder, recusar falar sobre ele, é recusar a possibilidade de agir sobre a realidade. Um discurso que se instala na Europa contra a realidade, em nome de um idealismo de taberneiro, em que o mundo ideal impera, apelando apenas para o Direito, vagos valores nunca ou mal enunciados (a liberdade, a tolerância, etc.), é profundamente anti-pragmático e consequentemente amoral. A consequência é a inacção e o fatalismo. O mundo que nos rodeia é constituído por um conjunto de inevitabilidades. Que se nos impõem. É inevitável o declínio demográfico da Europa, a invasão migratória, o capitalismo selvagem, a adesão da Turquia, a decadência da Europa perante a Ásia, a dominação americana. O mundo das inevitabilidades é um mundo sem intensidade, sem suco vital, sem liberdade, e em suma sem importância.

O idealismo imperante que nega o poder e o considera obsceno é no fundo um mundo da desconsideração, do desprezo pela realidade. E tendo a realidade pessoas, e sendo elas o seu mais importante foco, é em boa verdade um mundo de desprezo pelo ser humano. Larvas enfiadas em casulos, acham a borboleta ridícula e efémera mas esquecem-se de outras vidas bem mais garridas a que o seu estatuto nem permite aspirar. E numa Europa que silencia o discurso do poder, apenas os instintos o dirigem, sem lugar para o adoçamento pela razão. O que se segue é previsível. É o que acontece sempre que prevalecem os instintos no espaço comum.


Alexandre Brandão da Veiga

(mais)

terça-feira, 22 de junho de 2010

A utopia, a festa e a parvoíce


Estive recentemente em Paris, Marselha e Aix en Provence e, nos três destinos, deparei-me com o uso da bicicleta como transporte municipal. Basta um pequeno cartão (a primeira meia hora é grátis favorecendo a rotatividade), parques com bicicletas nas esquinas mais frequentadas, uma rede de ciclovias, faixas de autocarro à disposição e pode dizer-se que a utopia funciona.
Erro. Funciona em Paris e em Aix.
Os planíssimos e longos quarteirões de Lutécia tornam-se percorríveis com a agradável sensação de liberdade, cabeça ao vento, cenários e luzes sem filtros de vidro. Dia e noite, a cidade revela-se, magnífica e próxima. Dá-nos um sentimento de pertença. Transporta-nos para um filme idílico do qual somos protagonistas sem esforço.
Em Aix en Provence, é menor o contraste. As ruinhas e praças com fontes da capital medieval do Sul de França, muitas sem acesso de carros, tornam este transporte numa solução natural, antiga, retomada, sem novidade. As distâncias são muito curtas e o expediente do cartãozinho parece desnecessário. Mas também se repete a agradável sensação de pertença e sossego de pernas.
Mas em Marselha, bastam os ligeiros declives que emergem do porto e do centro da cidade para tropeçar, em cada esquina, naquele investimento paralisado. Já não falo na subida à Igreja de Notre Dame, também cidade, ou no passeio pela marginal a que chamam Corniche. É claro que lá andam alguns furiosos do pedal, com capacete, licras, costas vergadas ao volante e ao suor. Mas não é nada disso que nós, mortais com alegria de viver, queremos para as nossas vidas.
Moral da História: Lisboa é ainda mais acidentada do que Marselha. Deixou-se forrar por quilómetros de ciclovias socialistas que prometem maranhar pelas sete colinas. Deixem-se ficar pelo rio e pelas Avenidas do século XX. O resto é impenetrável. Diz-me quem sabe que se pode estudar um sistema complementar de bicicletas e transportes públicos aplicado em cidades acidentadas do Norte europeu. Não vejo quais, não vejo como.
(PS: Soube entretanto que estas comodíssimas bicicletas são construídas no Norte de Portugal)

(mais)

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Interesses

A mais que banal, mas não menos verdadeira, etimologia ensina-nos que o interesse é “inter esse”, estar entre, ou mais profundamente existir entre. O interesse é assim uma integração e uma limitação, uma pertença e um constrangimento. Quando fisicamente um país está entre dois outros, esses outros fazem parte do seu interesse, definem-no. Mas as fontes e as modalidades de interesses podem ter a mais variada origem. Os interesses associam-se a situações de vida, dos quais o espaço físico é apenas uma delas.

Algumas vezes diz-se dos místicos, ou de quejandas pessoas, por razões caracteriais ou outras, que são desinteressados. Em boa verdade não é esse o caso. Muitas vezes são bem mais interessados que os outros, estão bem mais integrados e delimitados pelo que lhes interessa que o comum dos mortais. Desinteressado significa apenas o que não está entre as coisas comuns. A ligação entre alguém e um interesse tem sempre elementos de inevitabilidade e de escolha. Portugal não pode decidir ser africano. Mas pode decidir dar mais ou menos ênfase às suas relações africanas.

Questão diversa é a da percepção dos interesses. A História tem demonstrado que sendo os interesses muito diversos, consoante as pessoas e o longo ou curto prazo, também as percepções dos interesses podem estar profundamente erradas. Mas, definidos os interesses, é perfeitamente legítimo defendê-los.

O que leva as pessoas as errarem na percepção dos interesses e o que as leva a não os defender diz muito sob o estado de espírito de uma civilização. A Europa tem quase tanta vergonha de falar dos seus interesses quanto de falar do seu poder. Ora não se faz política sem uma percepção clara de interesses.

A primeira escolha a fazer tem a ver com a definição dos centros de interesses. Esta é efectivamente uma escolha, com tudo o que isso implica de aleatório e determinado, de racional e irracional. Eu posso aplaudir a vitória de uma empresa só porque é do meu país ou da minha formação política, mesmo que pessoalmente nada ganhe com isso. Mas desde que reconheça um tecido mais vasto de que essa empresa faça parte como um todo, então já terá sentido em sentir essa vitória como minha. O que escolhemos como o que fica dentro desse centro leva a definir o que escolhemos como ficando fora do mesmo e mesmo a ele contraposto. Quando alguém fala do interesse de outrem seja ele país, seja ele região, fala de uma escolha. A desonestidade de muito discurso público é a de dar cheiro de necessidade metafísica o que mais não é (e já basta) que escolha.

Por isso é necessário que para cada um o centro de interesses esteja definido. O meu é a Europa, e por isso a ela me dedico. Para além de outros motivos exigindo bem mais longa confissão, há um muito simples. Portugal sozinho não tem real poder no mundo. As alternativas de aliança são apenas forma de submissão sem poder. Logo, a única forma de Portugal ter poder no mundo é participar num poder maior. Um em que participe e não seja apenas protectorado.

Um interesse demasiado estreito sufoca, um demasiado largo quebra. O estreito aperta as possibilidades de vida, um largo demais estilhaça-as por incorporar em si maior número de contradicções. Um interesse que seja centrado no mundo como um todo apenas acolhe em si interesses contrários entre si, em que os pontos de desunião e fractura são e serão sempre bem mais fortes que os de união.

Comecemos pelos interesses da Europa. O primeiro interesse de qualquer organização política é o de definir os limites do seu poder. De preferência aumentando-o. Poder político, mas igualmente económico, cultural, social. O interesse da Europa é igualmente o da manutenção e de desenvolvimento de um património, de uma determinada concepção do ser humano, e mais importante, de um determinado modo de viver como ser humano. Foi a Europa que o criou e só a Europa se tem mostrado capaz de o desenvolver plenamente. Um cruzamento de expansão para o futuro com um profundíssimo enraizamento no passado. Uma fortíssima comunhão de vivências (muito mais forte da que cabe aos ignaros julgar) e uma diversidade que só tem paralelo (quase) equivalente na Índia.

O interesse da Europa é abranger o seu espaço total, sob pena de vivermos sobre a fractura. Ou seja, a mais ou menos longo prazo o de incluir os países russófonos na sua esfera. A História tem demonstrado que as fracturas da Europa são simultaneamente temporárias e empobrecedoras na medida em que se mantenham. O cisma do ocidente dá-se no século XVI e foi bem profundo. Mas simultaneamente o comércio europeu nunca foi posto em causa. Os dois maiores espaços europeus, o francês e do sacro império eram híbridos, atravessados pelo protestantismo e catolicismo. As alianças entre a católica França e a protestante Holanda, a Inglaterra e mais tarde a Suécia foram perenes, entre o católico Portugal e a protestante (como quem diz...) Inglaterra igualmente, apenas para citar alguns exemplos. A Renascença e o Barroco atravessam a Europa toda sem distinção de cismáticos ou ortodoxos. A cisão da Europa corresponde assim a uma dissipação e a um desperdício de energias.

O interesse da Europa é o de uma cada vez maior união, representando igualmente a soberania de cada um dos Estados na escolha de quem participa nessa união. E é igualmente de que os povos europeus participem, acreditem se empenhem nessa união.

Estando os interesses da Europa em concorrência com outros (o entre onde estão os outros difere do nosso) é interesse da Europa que os nossos interesses não sejam prejudicados nem confundidos com os de outros. Similitudes de interesse tem a Europa com os Estados Unidos, mas igualmente com a América Latina, noutros casos com a África, noutros ainda com a Índia, por vezes com o Japão (se não falo da Rússia é porque no longo prazo entendo que o interesse é o mesmo). Enlear interesses de forma rígida apenas com um parceiro rigidifica as possibilidades de actuação. A obsessão amorosa com os americanos mostra-se assim como uma patologia do segundo pós-guerra que é limitadora e masoquista. Uma boa gestão dos interesses implica sempre estabilidade, mas igualmente flexibilidade de alienação, salvo nos casos em que se pretende fusão.

A incapacidade de discursar sobre o interesse, de pensar sobre ele, de lhe dar lugar nobre na forma de legitimação política, mostra não apenas menoridade moral, mas igualmente espiritual. O “entre” é a parte mais profunda do evangelho apócrifo de Tomé (“Parte este madeiro em dois e ver-me-ás entre eles”, dizia o Senhor), um dos centros do pensamento hermético, de Nicolau de Cusa, do pensamento morfológico de Goethe. O pensamento do “entre” é sempre uma superação de uma lhaneza. Quando Tucídides pensa nos interesses dos gregos para se guerrearem entre si, Filipe o Belo ou Henrique VIII no interesse da coroa ou Heisenberg tenta ler dados espectrográficos, estão todos apostados a ler entre, o que significa inevitavelmente (o que diz algo sobre a estrutura do mundo), aprofundamento. O desmerecimento dos interesses é sempre obra de novo-rico com medo de se meter no meio, em má imitação de fidalga abnegação. É obra de equivocados que conduzem o mundo ao equívoco. Ignoram que o empenho o interesse é a única forma de aprofundamento.

Dos três eixos da análise da política, o dos interesses é o visto com mais desprezo pela pudibundice contemporânea. O do poder é visto com horror, o dos interesses é visto com aristocrático desprezo. Falar de interesses cheira a muito menos nobre que falar em direitos do homem, da missão proselistista laica da Europa ou outras infantilidades. A validade desse desprezo (presunçosamente) aristocrático desfalece logo pela visão dos seus portadores. Mais destinados ao penduricalho que ao brasão, desonram pela sua simples presença a necessidade de demonstração infirmadora.


Alexandre Brandão da Veiga


(mais)

sexta-feira, 18 de junho de 2010

A morte de Saramago


Ensinam-nos a honrar os mortos.
Talvez isso venha do facto de já cá não estarem para se defenderem. E parece-me bem que assim seja.
Todos somos maiores do que as nossas vidas. Para os não crentes, pelo menos enquanto perduramos na memória ou no coração de quem fica.
Mas alguns de nós, como Saramago, são maiores do que o direito à inexistência do escrutínio da sua vida pública. Por isso me sinto autorizada a falar de José Saramago sem a obrigação estrita de o honrar como homem público.
Para quem não apreciava Saramago, vai sendo um lugar comum dizer que o Nobel teria caído melhor em Cardoso Pires, Agustina ou Lobo Antunes. A agressão ao sagrado dos outros e a pontuação completavam o quadro da antipatia. Mas podemos reconhecer um mérito literário capaz de dobrar o juri do melhor prémio do mundo para a escrita. E, sobretudo, a gratidão que lhe devemos pelo que fez pela nossa Língua no Mundo.
Para quem não apreciava Saramago, era imperdoável aquele àvontade com que criticava o nosso País para lá de Badajoz e a forma como ouviu a Mulher falar de Portugal e dos nossos poderes, sem respeito nem contenção. Mas podemos reconhecer que ali se pressentia uma história de amor, porventura mais bonita do que as que o autor soube ficcionar no papel.
Para quem não apreciava Saramago, ficou sempre aquele amargo de boca sobre o episódio dos despedimentos por delito de opinião, no Diário de Notícias, quando o escritor dirigiu o jornal depois da Revolução. Mas podemos reconhecer que a sua fidelidade ao PCP, até à morte, depois do desencanto soviético, representa uma lealdade à prova de constrangimento para qualquer intelectual reconhecido pela liberdade do verbo e por uma certa inteligência.
Para quem não gostava de Saramago, torna-se difícil honrá-lo depois de morto. Mas inevitável fazê-lo.

(mais)

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Valores

Quando se discutiu a Constituição europeia falou-se muito do Cristianismo. Quem era contra dizia que não havia que pôr Deus na Constituição. Como se o cristianismo não fosse um facto histórico. Daí se começou a falar de valores cristãos. Como se uma religião se reduzisse a valores. E pior ainda valores morais. Este cúmulo de reduções mostra a vida reduzida e o reduzido espaço intelectual que atravessa o espaço público.

A Europa passou os extremos da negação dos valores e é natural que retome o seu passado cristão (humanista, dizem uns) de negação da natureza instrumental do ser humano. Quando cientistas do Institut Pasteur tornaram do domínio público o genoma humano para que não pudesse ser patenteado por uma empresa senti-me orgulhoso de ser europeu. Apesar de tudo há limites. Mas há sobretudo limites para reduzir tudo aos valores.

Os valores são sempre uma auto-limitação. Assumir valores implica sempre contrair possibilidades de vida, mesmo que isto sirva de impulso para nos lançarmos a outras possibilidades. Como em tudo, depende do grau sabermos se o balanço final é de alargamento de vida ou a sua anulação. O facto de ser uma auto-limitação não significa sempre autonomia ou liberdade. O escravo que assume a obediência não é menos escravo por isso. O escravo revoltado por dentro não assumiu o valor da obediência. O submisso, embora isso tenha sido fruto de contracções externas, auto-limitou as suas possibilidades.

Os valores opõem-se por isso a tudo o que os complementa: as hetero-limitações e os alargamentos. Todos nós nascemos com limitações que nos são impostas: a família, o sexo, a beleza física, a inteligência. Não contribuimos em nada para isso. Não faz parte dos meus valores ser homem, ter nascido em África ou na Europa, ser burro ou inteligente. Do lado dos alargamentos, não faz igualmente parte dos meus valores ter recebido uma herança, ou actuar desta ou de outra forma, ter-me expandido como pessoa ou não. Quando muito alguns alargamentos podem ser consequência dos nossos valores, mas não são os valores em si mesmos. Em suma, o que se opõe aos valores são as inércias. Sejam de movimento, sejam de repouso.

A discussão sobre os valores da Europa mostra por isso desde logo um vício lógico: o da incompletude. Discutir os valores europeus é esquecer o que são as limitações externas e os alargamentos europeus, a sua herança, a sua natureza, os seus condicionamentos históricos. Discutir apenas os valores europeus como fundamento da Europa é assim fazer de conta que é europeu o Eufrates, europeu o janízaro, europeu o clima tropical. As ficções em si mesmas podem ser bastante agradáveis mas têm o inconveniente de serem fraco sustento para projectos a longo prazo. A ficção gera o vício e a dependência e nunca sustentou a liberdade. A liberdade é privilégio dos lúcidos.

Independentemente de se considerar as hetero-limitações e os alargamentos como inevitáveis, inultrapassáveis ou não, a verdade é que representam uma imensa inércia histórica. Querer ultrapassá-los tem um custo. E entra aqui o segundo vício lógico da discussão sobre os valores europeus. É que ir além das inércias, integrar um quarto do Médio Oriente tem custos, mais que económicos, de configuração da coisa europeia. E nenhum desses custos foi posto na mesa, bem como as vantagens são apenas adjectivadas e nunca concretizadas.

O terceiro vício, em consequência, foi o de se confundirem valores e identidade. Eu posso ter exactamente os valores do meu vizinho, mas não me identifico com ele. A identidade política não se constrói apenas de valores, mas de inércias. O minhoto e o galego podem ser mais parecidos nos seus valores que o minhoto e o algarvio e no entanto partilham de diversas inércias.

Mas a discussão sobre os valores padeceu concretamente de outro vício. O quarto. É que esses valores nunca foram enunciados. E quando o são, mostram que afinal não existe Europa. Porque se trata de democracia ou liberdade, então tenho de concluir que fora da Europa só há ditaduras, ou então em todos os continentes existe Europa.

É que o problema reside exactamente na discussão incompleta sobre os valores. Muito provavelmente os valores políticos europeus distinguem-se pouco dos americanos ou dos de outros democracias. Existem sobretudo modos diversos de viver esses valores. E esses modos diversos têm origem em valores que não vêm da politica e inércias que estão dentro e fora dela. Concretamente, o modo de fazer política associa valores estéticos (a crítica a certos governantes é em grande medida mais de repulsa estética que de oposição a um programa), moral, ou outros. E se o modo de fazer política na Europa diverge do de outras democracias, e muito profundamente, tem a ver com instituições, não apenas políticas, mas familiares, sociais, e modos de vida que evoluíram da Europa de modo diverso e de acordo com uma História bem mais profunda.

Na discussão sobre os valores em nada ajudou o facto de os políticos, jornalistas, comentadores pouco saberem do que é a Europa. Poucos vão a mais de umas décadas de História europeia, poucos conhecem algo de ciência ou matemática, de filosofia europeia só ouviram súmulas mal digeridas, da arte europeia incluindo a literatura conhecem sinais de tráfego geralmente mal instalados. Quiseram discutir aquilo para que exactamente são mais ineptos. E o problema que têm os valores, em relação aos interesses e o poder, é que apenas são convenientes com base no testemunho. Não é por acaso que a maior religião do mundo se baseia no testemunho de uma vida (e que vida). Ora dá-se o caso de serem os mesmos que falam de liberdade que dão factos consumados aos povos, os mesmos que falam em democracia que ou fazem leis à sua medida ou fazem-nas sem medir o que os povos pretendem.

Os valores são dizíveis, mas raramente há quem o saiba fazer. E foram precisamente os mais ineptos como teóricos e menos autorizados para testemunhar que mais insistiram na questão. É natural que a discussão sobre os valores esteja inquinada.

O problema é que necessariamente toda a acção e construção política estão banhadas de valores. Ao contrário do que dizem os pudicos, os valores são inevitáveis. Faz parte da nossa condição humana individual e colectiva auto-limitar-nos. É essa uma das nossas grandezas. E características. Na política um dos valores principais é o de aumentar o respectivo poder o mais que se puder. Outros valores estão aí para limitar não a dimensão do poder, mas o uso que dele se faz. E os interesses estão aí para modelar o seu concreto uso.

Quais são os valores da Europa? Braudel dizia que era não a liberdade, mas as liberdades. É uma menos má síntese para um historiador. Mas quem ler Homero, o Novo Testamento, Euclides e Dante fica com uma boa ideia aproximada do que sejam. Prefiro não entrar no campo das banalidades.

A discussão é tão primitiva neste momento que ainda falta dizer e fazer o essencial, o ponto de partida. Que não basta discutir valores, mas é preciso discutir igualmente inércias; que os custos de se contrariar essas inércias, bem como as vantagens têm de ser claramente discutidos à luz do dia, que discutir valores não nos isenta de discutir a identidade europeia, que só está apto para entrar na liça quem saiba ou quem possa ser testemunho e que, finalmente, dado que creio que falamos de política, o poder tem de ser claramente assumido como um valor, deixando para outros valores e interesses a questão do seu uso.



Alexandre Brandão da Veiga

(mais)

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Notícias umbilicais


Toda a manhã informativa foi tomada pelo assalto de alguns sul africanos às coisas de dois jornalistas portugueses e um espanhol. Trabalhando com a televisão ligada, pude assistir ao frenesi das reportagens sugerindo o perigo a que valentemente estavam sujeitos, a falta de condições de segurança a que indecentemente estavam expostos e, até, ao verdadeiro Soweto que os rodeava. Nunca vi nada tão ridículo. Há que ter a noção do interesse público e do interesse do público. O pequeno furto mereceu 15 segundos de antena num canal brasileiro e nenhum segundo na BBC World. Em Portugal, nunca seria notícia se os visados não fossem os próprios jornalistas visivelmente impreparados para estarem no terreno dada a mariquice de receios que expuseram sobre o local onde estão.
Poderíam ser reporteres de guerra, sem deixar de falar nas condições logísticas?
Poderíam fazer dossier sobre grupos oposicionistas numa qualquer ditadura, sem deixar de exibir a sua galhardia?
Que saudades tenho das reportagens de Cândida Pinto, Santos Pereira, Jorge Araújo ou José Rodrigues dos Santos, entre outros. Gente que se faz invisível para um trabalho de utilidade pública e notória.
Em Julho de 1993, em Washignton, pedi para assistir a uma reunião de redacção da National Public Radio, a cadeia radiofónica que atravessa todos os Estados dos EUA, género TSF, e que, nessa altura, marcava a agenda política e televisiva (CNN incluída) daquela potência hegemónica mundial.
Lá fiquei calada e pasmada durante 50 minutos a ouvir o que aqueles senhores diziam que devia ser notícia no mundo, nesse dia. Pasmada porque perderam 30 minutos com o simples facto de um cão ter mordido num carteiro. Esse era o light motiv para mesas redondas sobre salivas de cão, modelos de segurança das casas, donas de casa isoladas, legislação sobre o direito a ter cão, etc. Os restantes 20 minutos foram distribuídos por outras notícias nacionais e, apenas, três temas internacionais: 1) sobre a Somália, onde as tropas norte-americanas estavam estacionadas; 2) sobre uma instabilidade governamental em Moscovo; 3) sobre uma ligeira abertura económica na China. Em suma: tudo interesses domésticos americanos, compatíveis com o facto da maioria dos senadores nunca terem tido um passaporte.
Uma vez mais me envaideci com a nossa universalidade. Até ao baque desta manhã.

(mais)

segunda-feira, 7 de junho de 2010

A República vai nua!

O show começou. Um grupo de professores de Aveiro decidiu vestir 1200 crianças com a farda da Mocidade Portuguesa para evocar os 100 anos da República. (Público 07/06/10) Está certo: o Estado Novo ocupou quase metade desse tempo magnífico que agora se comemora com alegria. Logo o deputado do Bloco de Esquerda, Pedro Soares, se insurgiu: «esta iniciativa obriga alunos menores a serem actores de um acto laudatório e acrítico de uma página negra da História de Portugal». Concordo. Não gosto de ver as crianças de Aveiro assim vestidas. Mas, quando se procura a verdade, arriscamo-nos a não gostar da descoberta.
Há meses, apelei a António Costa, na Assembleia Municipal de Lisboa, para que aproveitasse este Centenário para comemorar «100 anos de República» e não «100 anos de propaganda». É uma ocasião única para promover a investigação, a publicação e divulgação do que realmente aconteceu neste período (post anterior «A República de António Costa»). Entre os estudiosos, Rui Ramos tinha feito o mesmo repto contrastando com o cepticismo de Vasco Pulido Valente, António Barreto e Filomena Mónica, que nada esperam de bom destes festejos.
Na altura, o Presidente da CML reagiu com humor e agressividade. Fico com o primeiro enfoque mas não deixo passar esta maré que nos sai cara e que foi lavrada por um protocolo entre a Câmara de Lisboa e a Comissão para as comemorações do Centenário.
Nesse sentido, vi nos Paços do Concelho a exposição «O jogo da Política Moderma!», desenho humorístico e caricatura na I República. Lá estava, logo na primeira frase da brochura, a irresistível propaganda: «A I república trouxe consigo a explosão das práticas de humor social e político». Nem Bordalo escapa! Ignora-se que uma das armas contra a Monarquia, antes de 1910, foi precisamente a prática intensiva de humor social e político. Uma prática que podia acontecer porque havia liberdade de imprensa. Pelo contrário, depois do 5 de Outubro, instalou-se um regime de partido único e a liberdade de imprensa foi uma das primeiras vítimas da Revolução.
Se quiséssemos falar verdade nesta exposição da CML, deveríamos poder ver, igualmente, o encerramento dos jornais monárquicos ou de facções republicanas que não estiveram, a cada momento, com a situação e que tentavam publicar a «explosão das práticas de humor social e político». Também a actividade da censura deveria estar ai retratada uma vez que, como se sabe, não foi exclusiva do Estado Novo.
Tal como na história do Rei vaidoso, venham de novo as crianças, agora vestidas de Mocidade Portuguesa, com o único mérito de dizerem: «A República vai nua!».

(mais)