quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Fundamento e encontro III


O que lhe falta então? A natureza do problema ajuda-nos a perceber a natureza da resposta. Dizia eu que os fundamentos da matemática conduzem a paradoxos. Sempre se soube isso. Esperanças de Hilbert só alguns momentos de imprudência as puderam alimentar. Na física, a natureza da constituição fundamental da matéria remete para a metafísica, de uma forma ou de outra. Os mesmos padrões teológicos se repetem nos fundamentos da física. Cantor dizia que preferia a matemática à física, porque a primeira e mais livre de fundamentos metafísicos. Não era destituído de bom senso quando o dizia. Na biologia, quando se pergunta sobre a origem da vida, falar em origem extraterrestre apenas evacua o problema para essa região do mundo, falar em origem bioquímica da vida remete para a química mas também para a explicação de como o inanimado pode comungar com animado e no entanto ser tão diferente. Como a criança que pode estar a evacuar a questão atirando mais e mais porquês, também podemos estar apenas a evacuar o problema colocando a questão. Mas, não a colocando não apagamos o problema, apenas o escondemos da nossa vista.

Quando Pilatos coloca a questão rotineira na sua época e decorrente de uma versão vulgata da filosofia, «o que é a verdade?» recusa o fundamento, o tema, a comunicação. Não percebeu que sempre que se coloca a questão do fundamento surgem jogos de espelhos, labirintos, reflexos de reflexos. O seu instinto diz-lhe que é disso que se trata. A sua incapacidade fala, não o seu pensamento. É a sua impotência que coloca em cima da mesa. Que a dialéctica seja um caminho da solução, percebe-se. A palavra está gasta e perde por vezes do seu fulgor inicial. Mas que coisa afinal se refere quando se usa a palavra? Alguns antigos perceberam que o fundamento se descobre num encontro, numa efectiva comunicação, em tornar comum. Esse encontro tem de ser realizado com alguém que nos seja comum. Em suma: uma pessoa. Ma os dialogo é apenas a face externa do mais importante. O fundamento é um encontro. O diálogo apenas a sua faze visível.

Perguntar pela verdade e perguntar pelo fundamento. Não se trata de pieguice invocar o encontro com uma pessoa. Uma coisa são os desistentes que param algures, muito cedo, e sem perceberem que a paragem em nada legitima o seu discurso, outra coisa são os herdeiros, que, ao contrário das crianças, perguntam e tentam dar respostas. Na lógica e na matemática, encontram paradoxos, na pintura depuram até quase nada sobrar, na arte em geral tentam encontram fundamento e acabam no conceito longe dos sentidos, pudibundo e solitário, ou num primitivo arrevesado que mais não é que retorno à casa de partida num jogo viciado. Na filosofia idolatram Unos, Seres, a Totalidade, a Dialéctica... As palavras são necessárias, mas acabam por ser empecilhos, meros ícones adorados que não deixa ver o que precisamente deveriam representar. Ir à procura do fundamento acaba muitas vezes por ser ir para a lugar nenhum, a boa da clareira que nos persegue por onde vamos, e não nos deixa entrar na floresta. Despojados, acabamos barrocos, técnicos, acabamos infantilizados, palavrosos, acabamos no silêncio. Por que via lá tentemos chegar, uma e a mesma paisagem nos espera, quando confiamos apenas nas próprias forças: o paradoxo, o jogo de espelhos, a miragem, o ícone impeditivo. São apenas diversos nomes para um mesmo lodaçal.

É preciso parar para que haja demonstração, lembrava sabiamente o velho Aristóteles. Não era por medo que o dizia, mas porque sabia que o uso de uma razão debatida com ela mesma e assente nela mesma exige que se assente num ponto de partida a partir do qual nada mais podemos afirmar. Apenas refutar. Medos tinha ele do infinito enquanto tal e com boas razões. Mas não de reconhecer que ele estava ali à nossa porta sempre que não nos contínhamos.

Quem pretende tapar os olhos, ou usar a pergunta como mera forma de ênfase, ou impedir que se faça a pergunta, quem como a criança atira a pergunta apenas para exercer um poder mágico sobre o interlocutor, atirando-lhe o ónus de uma impossibilidade, e coloca a pergunta: «mas o que é...?» a verdade, e a Europa, a felicidade, o amor, pretende acabar com o encontro, torna-lo nulo, e por isso mesmo impedir que surja na sua glória o fundamento. E que este seja um encontro, e consequentemente, não o fim, mas o início do verdadeiro diálogo.

 

Schelling dizia «Person sucht Person». Pessoa procura pessoa. Não é pieguice. Sou o primeiro a saborear a beleza das paisagens depuradas e abstractas que nos oferece a matemática, a lógica, a ascese de linguagem e vivências. Quem chegou ao Uno só se pode maravilhar. Mas bem sabemos que o caminho de volta é trôpego. Plotino tem um percurso lógico até ao Uno. Nada ou quase nada se pode apontar ao seu rigor logico quando sobre. Mas quando desce, que tombos. É ele mesmo a espantara-se como se «atreveu» o Uno a dividir-se, emanar, sair fora de si, permitir ao menos que haja algo fora de si. O diálogo é apenas a forma exterior de um verdadeiro encontro. Por isso a ideia de um deus pessoal que parece infantil e meramente consoladora para almas limitadas, é afinal a única solução para o paradoxo: a de ser vivo o paradoxo ele mesmo.

Não sei se a generalidade do que afirma poderá afastar olhares, ou se será antes a sua incarnação. Que seja. Ambas as atitudes são infantis. Se somos dotados de ambas capacidades, a de viver concretamente e a de congeminar na abstracção, algum sinal isso nos dá do nosso destino. O fundamento é um encontro. Com uma pessoa. É simples. Só quem nunca se deparou com ele pode dizer o contrário.

 

Alexandre Brandão da Veiga

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segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Fundamento e encontro II

A estreiteza de vistas é a de quem perante a pergunta sobre o fundamento, ao pé julga que é pergunta, mas visto ao longe percebe que é dissolução do tema. Aquela só pode ser vista ao longe, porque vista ao perto parece inexistente, ou apenas inócua. Só ao longe se percebe que a ênfase está no tema, mas a enfase é dada para que lhe retirar importância.

O que o leva a ter estreiteza de vista, a querer ter esta dissolução do tema? O modo como se comporta o que ele recusa. O fundamento. O processo é que o fundamento tem uma natureza esguia, arredia, escapa-se-nos das mãos. Na matemática os fundamentos acabam em paradoxos. O nosso velho Aristóteles mandava parar algures, sob pena de a demonstração nunca ser feita. Ele bem sabia das perguntas das crianças: E porquê? E porquê? E porquê? Se a criança pergunta até ao infinito, essa afirmação tem a sua razão. Percebe que uma pergunta muito simples lhe abre portas tanto sobre as coisas, como sobre a incapacidade dos adultos. Exaure o mundo enquanto ao mesmo tempo exaure os seus pais. A sua origem não é capaz de explicar a origem das coisas. Maravilhoso, mágico instrumento, este «porquê?». É evidente que se pode tornar muleta, mero instrumento de preguiça, ou mesmo de exploração. Perguntar porquê até ao infinito retira-nos o trabalho de pensar e atra ao que nos rodeia todo o esforço nesse sentido. O «porquê» das crianças pode ser profundamente explorador, parasita, manipulador. E quando ingenuamente alguns pedagogos se fascinam com a infinitude da pergunta e a beleza do pensamento infantil que é inesgotável a perguntar «porquê?», esquecem que se pode tornar em instrumento de exploração. É nesse momento em que ao adulto deve parar o questionamento.

Questão bem diversa é quando a pergunta é feita do próprio ao próprio. Aqui a varinha mágica perde-se, porque todo o esforço que criamos somos nós a ter de resolver. Porque isso o que recusa o fundamento, é precisamente o que mais vezes pergunta «porquê». Perguntou-se algumas vezes e embateu com a dureza da sua própria cabeça. Incapaz de responder à pergunta atira aos outros os limites do seu próprio pensamento. «O que é a verdade?». Se Pilatos coloca esta questão é porque nunca foi capaz de lhe dar uma resposta. Se faz a pergunta, não é para abrir uma discussão, mas para colocar o interlocutor na mesma posição em que se ele se sentiu quando se colocou essa questão: fechado, sem resposta, obnubilado, indisponível, sem forças.

A pergunta, que começa por ser mágica na criança, mas que a dado passo a mesma criança percebe que é instrumento de poder, torna-se embaraço quando colocada a nós mesmos, porque nos mostra onde paramos, onde somos impotentes. Quando Pilatos pergunta «o que é a verdade» quer lançar a Cristo o mesmo sortilégio, quer produzir junto dele o mesmo efeito que a pergunta produziu nele: o bloqueio absoluto, o fim do curso do pensamento. Da mesma forma, quando se pergunta retoricamente «mas quais são os fundamentos da Europa?» apenas se visa produzir no interlocutor o mesmo efeito que produz em nós: lançar-lhe um sortilégio de impotência.

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sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Fundamento e encontro I


Algures lembrei que um dos efeitos da recusa dos fundamentos da Europa era a bipolaridade entre a obsessão do fundamento e o desvio em relação a ele. Na Europa, quando se recusa o fundamento o efeito é sempre o do desvio ou o da obsessão em relação a ele. Não me interessava na altura dar soluções civilizacionais ou filosóficas ou as que fossem à coisa. Não era esse o lugar.

Mas tenho agora de enfrentar mais directamente a sua estrutura. Como vê o mundo quem recusa ver fundamentos? Como se comporta o que ele recusa? O que lhe falta?

Como vê ele o mundo? Com estreiteza de vistas. O mundo aparece-lhe por ali, pasmado, flutuante, não se sabe sustentado em quê, e não admite sequer que outros tentem saber. No seu mundo as portas fecham-se. Não se podem discutir os fundamentos da Europa, por forma a que em cada momento se possa arbitrariamente dizer o que ela é. Às Segundas-feiras, Marrocos é parte da Europa, às Terças e Quintas é a Turquia, aos Sábados talvez seja o Cazaquistão. «Mas o que é a Europa?». «Mas o que é a felicidade?», «Mas o que é a verdade?». Todas estas perguntas sobre a essência que se querem fim de discussão bebem de um mesmo modo de estar na vida, que usa a pergunta como forma de parar o questionamento.

Não é incidente que a pergunta na maioria das línguas exija uma ênfase sonora. Quando se fala mais baixo, a ênfase está na interrogativa. «ONDE está o João?». Mas se a pergunta é feita à distância, se for necessário berrar para alguém nos ouvir, na ênfase cantamos a interrogativa e modulamos o sujeito: «onde está o JOÃÃÛÛ?». A língua portuguesa, que não costuma ser muito cantada, neste caso canta, entrega-se à melodia. Talvez não seja indiferente que assim seja.

Quando é fácil que nos ouçam, insistimos na interrogativa. A única coisa que temos de salientar é que estamos a interrogar. O resto do discurso ouve-se naturalmente, e por isso não é necessário dar ênfase a nada mais. Mas quando estamos a falar com interlocutores longínquos ou mais duros de ouvido temos de insistir sobre o tema. O tema é o dito «João» que procuramos e não encontramos.

O que é a Europa, a verdade ou a felicidade, quando perguntado na intimidade e em elo de verdadeira comunicação, apenas precisa de dar ênfase ao facto de estarmos a questionar. Quando falamos ao longe, é o tema que tem ênfase. Quando Pilatos pergunta o que é verdade, repete um tópico trivial da sua época (e de muitas outras). Quem o ouve baixo apenas percebe que está a fazer uma pergunta. Quem o ouvisse alto sabe que não é tanto a pergunta que interessa, mas o tema, o da verdade. E o tema, no seu caso é mera retórica. Foi desfeito pela própria pergunta. A pergunta não fez ligação, não quis obter resposta. Quis pura e simplesmente dizer que o tema existia para ser fechado nesse momento.

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