sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Fragmentação e planura

Se bem atentarmos no espectáculo que o espaço público nos apresenta vemos que duas das suas principais características são a fragmentação e a planura. A que se opõem a fragmentação e a planura? À unidade e à hierarquia. Tomemos fôlego e vejamos o que significa e que implicações tem este quadro.

A fragmentação ocorre por força da especialização. Como os operários de uma linha de montagem clássica, trabalham apenas numa pequena parte do processo produtivo. Vemos um exemplo na música erudita contemporânea. Dividida em mil movimentos diferentes os especialistas de uma corrente pouco sabem sobre a corrente vizinha. Na arte em geral o mesmo se passa. E quando alguém diz que é especialista em arte contemporânea podemos quase ter a certeza de que não aprendeu grego e por isso leu pouco de Platão.

As correntes culturais... Enfim não seria grave. Mas se tivermos em conta que a cultura, não em sentido antropológico onde tudo é cultura, mas em nobre acepção, onde é difícil entrar e mais ainda criar, é o espaço por excelência da experimentação da vida humana e da sua expansão, este estiolamento começa a ser preocupante. É que, quando as experiências se fragmentam pela especialização cada vez mais obsessiva, cessa a comunicação profunda.

Entra aqui em cena a planura. É que não sendo possível a comunicação profunda entre os fragmentos, a comunicação reduz-se à banalidade, ao exótico, ao fenómeno de feira. Eliot, inglês de origem americana, criticava as universidades americanas de excelência, não por não permitirem estudos profundos, mas por não criarem uma cultura comum. Cada universidade, cada professor, tinha um currículo diverso. Como resultado, era impossível criar um espaço de comunicação comum em profundidade.

Quando todos têm uma formação matemática confluente, quando todos leram Homero, quando todos leram Aristóteles e Platão, quando todos acedem aos mesmos conceitos basilares de cultura, podem partir de uma base comum para a discussão no espaço público. Quando umas pessoas estudaram em profundidade – admitamo-lo apenas para efeitos de demonstração – a teologia de Mestre Erckhart, outros a respiração alternativa de uma estirpe de fungos, outros ainda o método de Monte Carlo aplicado à econometria, e nada mais, ou pouco mais, quando isso acontece de forma singela, sem que haja estudo profundo das bases da cultura, todos os desvarios são possíveis, todas as pretensões de originalidade incontroláveis.

Sobretudo, sobretudo, de que podem falar uns com os outros? Do tempo, do futebol, das crises governamentais. Banalidades, mais uma vez.

O espaço público pode ser um espaço de discussões profundas quando existe uma profunda cultura comum. Não se enganava o lavrador antigo sobre as épocas de semear e colher, nem sobre o ritmo da missa. Não se enganava a elite europeia até ao século XIX sobre o pensamento de Horácio ou as lições de Euclides, ou o dogma da santíssima trindade. E muito menos sobre o que fossem as fronteiras da Europa.

Neste espaço de planura tudo se diz impunemente, com ou má fé, com ou sem razão, mas sempre sem fundamento. O controlo é feito não no espaço público, mas nas raras vezes em que pessoas dotadas de conhecimento e sentido crítico chamam de burros aos burros, de desonestos aos desonestos.

Num mundo de especialistas, ou seja, de leigos em quase todas as matérias, o discurso público profundo fenece e vive como uma bacante sem controlo, atirando-se às nossas caras sem freio nem condenação pública.

O que se opõe à fragmentação e à planura? A unidade e a hierarquia. Existe unidade quando flúi pelo espaço público um discurso com sentido, com fundamentação. E a hierarquia impõe critério, em que o dislate é condenado e o burro é repelido. Não são precisas leis que o impeçam de falar, mas é o ridículo que o cobre publicamente. Como não há noção de hierarquia, entre o melhor e o pior, os burros comprazem-se, vivem felizes numa época em que podem ser presidentes da república, primeiros-ministros, dirigentes de empresas ou de grandes organizações. A subida da plebe foi justificada pela meritocracia, que tem mil defeitos, mas qualidades inegáveis. Hoje em dia assistimos à subida da camada mais baixa de todas. A dos destituídos, sejam eles comentadores políticos, sejam políticos, ou líderes de opinião.

O burro foi entronizado, e quanto mais é chamado para opinar, mais satisfeito se encontra por ter voz activa. Invoca a liberdade de expressão como defesa contra a inteligência e usa como arma de assalto contra ela acusações pré-formatadas como a xenofobia, racismo, fascismo, falta de abertura e outras quejandas.

O burro sabe que preenche um vazio, sabe que não será perpetuado pela legitimação. Por isso vive uma vida entrincheirada nos mesmos lugares comuns e usa como muralha o insulto lesto e infundamentado.

Abomina a hierarquia, porque sabe que em qualquer critério estará sempre no seu mais baixo grau e detesta a unidade porque o obriga a fundamentar. Perante um público que conhece minimamente bem os mesmos tópicos argumentativos, não se pode atrever a dizer despautérios, porque sabe que seria imediatamente apanhado. Delicia-se por isso com o espaço dos especialistas, fragmentado, porque apenas se tem de calar numa matéria perante especialistas, mas estando perante outros burros, é livre para falar sobre tudo. Como já não tem medo da prisão, benesse que lhe foi dada por gente inteligente e generosa na História, apenas teme que por uma esquina lhe passe alguém inteligente que o denuncie. É uma vida acossada a dos burros que vivem na planura.

Vida acossada potencialmente, mas hoje em dia triunfante. Sabe que a sua raça enche hoje em dia o espaço público e reza ao deus da fragmentação que lhe deu a bênção da planura onde nada é condenado.

Por isso podemos ouvir burros dizer que a guerra ao Iraque se fez por causa das armas químicas, da ligação ao fundamentalismo, da necessidade de dar democracia, e outros burros que não se deve fazer por amor abstracto à paz. Por isso o burro pode dizer que a Turquia é um grande país europeu, ou que a Europa precisa de um país islâmico (como animal de estimação, pergunta-se) sem que ninguém mande o burro ir estudar para a escola ou mostre que apenas é servidor de interesses americanos.

Uma manada de burros assentes na planura vigiando para que se mantenha a fragmentação que não os confronta, não os julga, não os denuncia. Tudo está fragmentado, tudo se quer fragmentado. Assim temos o espaço público. Onde todas as inanidades podem ser ditas, onde qualquer barbaridade pode ser proferida sem castigo. A Turquia é europeia, a Europa não tem fronteiras, os americanos são nossos amigos, a Europa é multicultural. Vicejando pela impunidade querem arrastar os outros para a mesma monotonia que constitui as suas almas. Terapêuticas? O riso, o desprezo e a publicidade. E sobretudo a condenação pelos povos.


Alexandre Brandão da Veiga















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A esquina do tempo

Não se devem humilhar os vencidos. Mas o estrago que os estivadores fizeram com a greve de 102 dias justifica que se lhes dê um empurrão até ao último degrau da escada. Foi uma batalha civilizacional. Entre os que querem trabalhar e os que exploram essa necessidade de sobrevivência. Entre os que nada podem e os que tudo pensam poder. Entre quem sabe que a solução está no cumprimento das obrigações e os que operam na reivindicação unilateral de direitos exclusivos.
Vergonhosamente, os jornais pouco destaque dão ao final deste braço de ferro que custou ao País mais de 400 milhões de euros por mês. O Diário de Notícias chega mesmo ao eufemismo: «Estivadores suspendem greve para abrir espaço ao diálogo». Se houvesse curiosidade, saberíam que o País mudou ao ponto de o PS estar disponível para mudar a lei da greve. Se houvesse investigação, apuraríam que PCP e BE retiraram o apoio a esta forma de luta para não comprometerem a lei. Se houvesse decência, daríam boa nota ao Minístro da Economia e ao Secretário de Estado dos Transportes pela firmeza que souberam manter, meses a fio, deixando os estivadores com uma mão cheia de nada.
Esta greve é simbólica. Faz lembrar a greve dos mineiros, nos Anos 80, que não dobrou Margareth Thatcher mas sim uma esquina na História do Reino Unido. Também aqui, nada será como dantes.

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quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Agora e sempre

http://www.youtube.com/watch?v=gWI1gs0dJYk                            

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segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

A dupla promissora

Não esqueço o debate entre Hollande e Sarkosy, no final da campanha para as Presidenciais francesas deste ano. Um confronto ganho nitidamente por Nicolas Sarkosy que, portant, seria destronado em seguida pela maioria dos comentadores e jornalistas.
Sarkosy calmo, realista, coloca-nos a questão de saber se é promissor quem promete ou quem fala verdade? Hollande, agitado, reivindicativo, com propostas idílicas, devolve-nos a pergunta: é promissor quem vende sonhos ou quem nos aponta caminhos com pedras? 
Conhecendo o valor da oportunidade, António José Seguro seguiu a sombra do francês. Marcou presença na campanha e citou abundantemente a cartilha hollandesca acreditando nos poderes salvíficos da esquerda sobre a depressão. Hollande ganhou e Seguro jubilou. Hollande reduziu a idade da reforma e Seguro rejubilou. Hollande caiu na realidade, travestindo as promessas em austeridade, e Seguro fez silêncio. Hollande caíu nas sondagens e Seguro, ouvindo o galo cantar, negou defesa ao anterior compagnon de route.
Há virtudes na condução política de Hollande, sobretudo na construção do Pacto para o Crescimento no Conselho Europeu. Mas hoje Seguro teme qualquer colagem ao flop francês e mantém-se orgulhosamente silenciado. Nem por isso passa de oportunista a oportuno.  

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quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Quando mostrar que se finge é ainda mais fingido


A versão do Anna Karenina, que há dias chegou a Portugal, mostra a produção do sonho mais do que os sentimentos dos personagens de Tolstoi.
Aligeira o drama e as questões existenciais do russo com a representação da representação. Desventra os bastidores de um teatro transformando uma boa história numa engenharia de teia, cenários, luzes e outros artifícios. Não nos deixa embarcar. Está sempre a lembrar-nos que tudo foi combinado com o realizador. É um mata fantasia. Um desmancha prazeres. Um desencanto de movimentos que existem para a câmara e não para os nossos olhos.
Dito isto, é um filme optimo, se desligado do livro de Tolstoi. Bem realizado, bem representado, bem vestido. Bonito. Original.
Se lhe chamarem Ana Catarina, gostei muito.

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segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Quem não erra, não melhora

Entrevistado ontem na SIC, José Manuel Durão Barroso voltou a sair seco da tempestade. Quando José António Teixeira lhe perguntou se, tal como António Guterres, se considerava relativamente responsável pelo estado a que o País chegou, Durão simulou uma humildade genérica para, logo depois, se afirmar como primeiro combatente da consolidação orçamental. Compreende-se.
Mas o final da resposta acende todas as campaínhas sobre o percurso deste político. Durão destacou apenas os anos de 2002 e 2003 a 3% e sublinhou que, sobre 2004, não era responsável. Fica-lhe mal empurrar essa lama para um sucessor que fez o favor de herdar os seus compromissos com o Povo português. Qualquer arquivo nega coerência à sua memória. Quando, no final do 1º semestre de 2004, abandonou o País para seguir outro sonho de poder, o défice estava em 6,8%, ou mais, segundo o Governador do Banco de Portugal, Victor Constâncio. E lá ficaria, nesse despiste, se não fossem as medidas tomadas pelo XVI Governo Constitucional.
Guterres terá sido castigado politicamente pela honestidade da sua resposta. Mas será menos imperfeito no futuro, quando ambos se perfilarem para a liderança da ONU ou para a Presidência da República, em Portugal. 

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quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Em fim, o Império


Vimos descer a bandeira nacional nas frentes de guerra e nos afro-arquipélagos, em 75. A entrega desses Povos à Guerra Fria não nos deixa olhar devagar para essa pressa.
Assistimos depois, em Macau, em 1999, à correcção protocolar de Vasco Rocha Vieira. Hino, bandeira bem dobrada, autoridades reconhecidas, uma herança feita com amostras de calçada, Universidade, língua, catolicismo e garantias mínimas de Direitos Humanos. Menos mal.
No dia 20 de Maio de 2002, veio a Independência de Timor-Leste depois de um silêncio sangrento de mais de 25 anos, interrompido pelo ombro da Igreja e pela voz esclarecida do Duque de Bragança.
Nesse dia, estávamos todos felizes. Timorenses, portugueses, Xanana, Ramos Horta, os bispos de Dili e Baucau, os manos Carrascalão, o PR português, Durão, Guterres, Clinton,  Kofi Annan, até Megawati Sukarnoputri, a Presidente da Indonésia, reconhecida na capitulação.
O Referendo proclamara a vontade do Povo e ali se viveu um festival da cultura lusófona, como expressão da Independência de um novo País, na metade mais curta de uma ilha entre a Ásia e a Austrália.
Houve mais caminho percorrido, com sangue e incerteza. Em todas as intempéries, a Guarda Nacional Republicana foi presença de tolerância e espírito firmes. Não queríamos abandonar, de novo, os povos comuns à nossa História.
Assisti a esse trabalho discreto e reparador, para ambas as partes.
Timor-Leste é Independente há 10 anos. Mas só agora o Império pode adormecer em Paz. Agradeço, reconhecida, à GNR.




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