sexta-feira, 27 de abril de 2018

O que diferencia o cristianismo das outras religiões? III






Mas faça-se um outro teste. Em qualquer parte do mundo faça o leitor uma análise, tente reconhecer os cristãos. Entre os cristãos árabes vai encontrar quem traz trajo beduíno, entre os cristãos curdos, estes não se distinguem dos muçulmanos, na Europa numa sala não se distinguem os cristãos dos ateus, ou budistas recém-«convertidos».

O cristianismo não traz consigo uma etnia, hábitos étnicos. Não obriga a portar véus, deixar crescer a barba, ou usar cintos ou fatos de cores especiais.

Que fez Jesus que tivesse influência nisto? Diz que veio, não para abolir a lei, mas para a aperfeiçoar, completar, levá-la ao seu termo, consoante se prefira como tradução. Em que se traduz isto? Num duplo movimento paradoxal: numa limpeza e numa intensificação.

Numa limpeza. Do quê? De tudo o que é étnico. O homem não foi feito para o Sabat, o Sabat foi feito para o homem, não é pecado o que entra na boca, mas o que sai dela, e assim por diante. E uma intensificação. Praticar adultério não é apenas saltar para cima da vizinha, é o simples facto de se pensar nisso. O cristianismo não é uma religião nua porque houve um acaso histórico que o faz assim. O cristianismo é uma religião nua porque o seu Fundador a criou assim.

Falta o último teste. Quer isto dizer que o cristianismo é imune à cultura em que se íntegra? Não. O facto de ter nascido num mundo de língua grega implicou que os seus primeiros testemunhos fossem escritos em grego. Toda a cultura grega determinou a expressão do cristianismo. Fora numa língua pobre como o árabe nunca se colocaria a questão da essência, substância e pessoas divinas. A discussão entre a «homoousia» e a «homoiousia» não se levantaria (não se preocupe o leitor, perceber este conceito não é essencial para a demonstração). O cristianismo romano é diferente do grego, não por a religião ser diversa, mas porque o seu desdobramento cultural é diverso. Os cristãos árabes transportam o cristianismo de forma diversa dos cristãos europeus.

Também esta ligação não é causal. O Papa Bento XVI, no seu discurso de Ratisbona, tão mal compreendido pelo comentadores políticos (mas há algo que eles compreendam bem?) bem tentou transmitir que a ligação não era casual, mas fazia parte da economia da salvação.

Em suma, o cristianismo é uma religião nua, não traz consigo uma etnia, mas não é neutro culturalmente. É uma religião incarnada, e por isso dissemina-se de acordo com o ambiente, expressa-se de acordo com ele, deixa-se incorporar por ele.

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quinta-feira, 26 de abril de 2018

O que diferencia o cristianismo das outras religiões? II




Qual a língua sagrada? Comparemos com o islão. Todos os muçulmanos dirão que é o árabe. O árabe do corão, para ser mais preciso. Não apenas língua sagrada, mas língua perfeita. Ao ponto de os solecismos do corão serem chamados de «gramática divina». Entre os persas, e sabe Deus quanto os persas desprezam os árabes, a língua sagrada é o árabe, ninguém o contesta. No hinduísmo evidentemente o sânscrito, Homero o bem grego Homero, por mais dialectal que seja, entre os gregos, e assim por diante.

Já pensou o leitor qual é a língua sagrada do cristianismo? Jesus, Deus para os cristãos, portanto, não um profeta, mas Deus Ele mesmo, falou arameu, parece. Nunca o arameu foi língua sagrada. O hebreu era língua sagrada, mas ninguém o falou entre os cristãos, foi sempre língua reservada a eruditos. O grego, obviamente língua sagrada para os cristãos do Oriente grego. Mas um grego de má qualidade literária como desde sempre se reconheceu. A ideia de que a crítica do texto vem das Luzes é apenas fruto de ignorância. Richard Simon era católico do século XVII. E já muito antes, São Jerónimo e  São Paulino de Nola no século IV já se sentiam incomodados com o mau estilo literário do Novo Testamento. Era evidente que Homero literariamente era maior.

Mas a lista não termina. O latim no Ocidente europeu, o copta entre os egípcios, o sogdiano na Ásia Central, o eslavão entre os ortodoxos eslavos, o siríaco entre os assiro caldeus. Não foi preciso o Vaticano II para que as línguas vernaculares fossem línguas sagradas, como o alemão de Lutero mostra. Hoje em dia em muitas partes do mundo o francês ou o inglês são mais línguas sagradas que o latim.

Não havendo uma língua sagrada, uma única língua sagrada, torna-se bem mais difícil veicular uma cultura única.


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sexta-feira, 20 de abril de 2018

O que diferencia o cristianismo das outras religiões? I




Disse que antes que:

a)      O cristianismo é a única religião nua;

b)      Apenas o cristianismo percebeu que a vítima é inocente.

Eis o que diferencia o cristianismo das outras religiões. Mas daqui seguem dois corolários:

a)      Apenas o cristianismo resolve o problema do sofrimento sem lhe retirar substância;

b)      Apenas o cristianismo permite uma ontologia.

O cristianismo é a única religião nua. Que quer isto dizer? Que é a única que não traz consigo uma etnia.

No hinduísmo a resposta é evidente: é uma religião étnica, e nem se pretende universal (apesar de ter mensagens universais como a grega). Mas se virmos, a religião romana, a egípcia, a grega ou qualquer outra, verificamos que trazem consigo uma cultura, uma etnologia.

Para se compreender bem esta asserção temos de fazer três testes:

a)      Qual a língua sagrada?

b)      Que fez Cristo com a etnia?

c)      Quer isto dizer que o cristianismo é imune à cultura em que se integra?



O que diferencia o cristianismo das outras religiões? II



Qual a língua sagrada? Comparemos com o islão. Todos os muçulmanos dirão que é o árabe. O árabe do corão, para ser mais preciso. Não apenas língua sagrada, mas língua perfeita. Ao ponto de os solecismos do corão serem chamados de «gramática divina». Entre os persas, e sabe Deus quanto os persas desprezam os árabes, a língua sagrada é o árabe, ninguém o contesta. No hinduísmo evidentemente o sânscrito, Homero o bem grego Homero, por mais dialectal que seja, entre os gregos, e assim por diante.

Já pensou o leitor qual é a língua sagrada do cristianismo? Jesus, Deus para os cristãos, portanto, não um profeta, mas Deus Ele mesmo, falou arameu, parece. Nunca o arameu foi língua sagrada. O hebreu era língua sagrada, mas ninguém o falou entre os cristãos, foi sempre língua reservada a eruditos. O grego, obviamente língua sagrada para os cristãos do Oriente grego. Mas um grego de má qualidade literária como desde sempre se reconheceu. A ideia de que a crítica do texto vem das Luzes é apenas fruto de ignorância. Richard Simon era católico do século XVII. E já muito antes, São Jerónimo e  São Paulino de Nola no século IV já se sentiam incomodados com o mau estilo literário do Novo Testamento. Era evidente que Homero literariamente era maior.

Mas a lista não termina. O latim no Ocidente europeu, o copta entre os egípcios, o sogdiano na Ásia Central, o eslavão entre os ortodoxos eslavos, o siríaco entre os assiro caldeus. Não foi preciso o Vaticano II para que as línguas vernaculares fossem línguas sagradas, como o alemão de Lutero mostra. Hoje em dia em muitas partes do mundo o francês ou o inglês são mais línguas sagradas que o latim.

Não havendo uma língua sagrada, uma única língua sagrada, torna-se bem mais difícil veicular uma cultura única.

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segunda-feira, 9 de abril de 2018

É o cristianismo uma religião como qualquer outra? III






Da próxima vez que o leitor ouça dizer alguém que o cristianismo é uma religião como as outras, pode, pois, pensar que a criatura em causa é cultora do espírito ariano e seguidor da ideologia imperial britânica (geralmente é favorável ao multiculturalismo, e também por isso se vê que tem saudade da ideia imperial britânica).

Resta saber se é verdade a asserção: o cristianismo é realmente diverso das outras religiões?

O velho Rudolf Otto dizia que o cristianismo era superior a todas as outras religiões porque estabelecia um equilíbrio entre racionalidade e irracionalidade mais perfeito, ou porque dava uma mais justa representação da necessidade de expiação. As diferenças podem-se encontrar por muitas vias. A questão é que, de uma forma de ou doutra, mesmo que sejam verdadeiras, correm sempre o risco de serem contestadas por serem mais ou menos subjectivas.

Deixemos estes trilhos, não por não serem verdadeiros (que o podem ser), mas por serem contestáveis. Da parte que me toca há dois argumentos muito sólidos que mostram que o cristianismo é muito diferente de todas as outras religiões, seja as anteriores a ele, seja as que lhe são posteriores, e nesse aspecto mais não são que retrocesso.

Estes dois aspectos são:

a)      O cristianismo é a única religião nua;

b)      Apenas o cristianismo percebeu que a vítima é inocente.

O seu a seu dono. Nenhuma das ideias é minha, apenas faço a sua síntese. A primeira ideia é dos historiadores anglo-americanos. Ser uma «naked religion» significa ser uma religião sem uma etnia. A segunda é de um dos maiores antropólogos de todos os tempos, René Girard.

Deixo isso para outras núpcias.




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quinta-feira, 5 de abril de 2018

É o cristianismo uma religião como qualquer outra? II




Temos por isso de pensar o que está por detrás desta necessidade de dizer que o cristianismo é como todas as outras religiões, e de seguida perceber se é realmente verdade que o seja.

De onde vem esta ideia de que o cristianismo é igual às outras religiões?

A verdade que é a Europa levou cerca de mil anos a cristianizar-se. Entre as costas europeias do Mediterrâneo e os países bálticos houve mil anos de cristianização da Europa. Os países bálticos só ficaram completamente cristianizados a partir do século XIV ou XV. E quanto à cristianização total do resto da Europa basta ouvir o que ainda no século XVI clérigos reportavam sobre práticas e crenças pagãs na Europa.

A verdade é que com as descobertas e a expansão europeia o cristianismo depara-se com culturas todas elas construídas com base noutras religiões. Que existissem outras religiões o europeu já sabia. O islão era mais que conhecido como a anti-Europa, como precisamente a fronteira a partir da qual a Europa deixava de existir. Mas há dois factores que são predominantes a partir sobretudo do século XV. Em primeiro lugar, a redescoberta de neopaganismo bizantino de Plethon, que gera a escola neoplatónica de Florença. De seguida, a descoberta progressiva das religiões hindus. Não são tanto religiões mais exóticas como as chinesas, são precisamente dois conjuntos de religiões indo-europeias que fazem os europeus repensarem o que significa a sua própria religião, a cristã. É significativo que a grande esperança (desiludida rapidamente) das Luzes se depositava em Zoroastro, profeta de uma terceira religião indo-europeia.

Não é tanto o exotismo de novas religiões, mas precisamente a proximidade com a sua memória histórica mais antiga que faz os europeus repensarem o estatuto do cristianismo. São religiões que em boa verdade nunca esqueceram, e que sob várias formas, seja as memórias célticas na estatuária das catedrais, ou na literatura, seja as memórias germânicas nas línguas, as greco-romanas na mitografia, que os fazem pensar (ou sentir, mesmo a contragosto) que são de origem indo-europeus.

É evidente que isto foi agravado pela descoberta de cada vez maior número de religiões primitivas. Aqui o neopaganismo que estava latente pelo menos desde o século XV (ou eventualmente antes) desenvolve-se exponencialmente na antropologia imperial britânica. Não é por acaso que Frazer começa com um mito romano, o de Arícia, e Hartland com um mito grego, o de Perseu.

Quem afirma que o cristianismo é igual a todas as outras religiões, apenas uma entre as mais, integra-se, pois, num duplo movimento: na ideologia de retorno ao arianismo primitivo e na ideologia imperial britânica.


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quarta-feira, 4 de abril de 2018

É o cristianismo uma religião como qualquer outra? I




O dito espalhou-se pela praça pública. E na praça pública não passam pensamentos, mas apenas mexericos. O cristianismo é uma religião como as outras.

Por um lado, isto pode parecer positivo: todas as religiões são religiões de paz e amor. De outro, pode aparecer sob forma negativa: todas as religiões são factor de guerra e desastres para a humanidade.

Não é verdadeiro que todas as religiões sejam de paz e amor. Dizer que todas as religiões são de paz é esquecer os deuses da guerra que pululam nas mitologias, desde Marte a Ares, passando por vários deuses védicos ou nórdicos, ou então Marduk. Quando uma religião celebra vitórias militares, como o islão, fica-se por saber qual o limite deste conceito. A lista podia seguir até ao infinito.

A paz não significa sempre a coisa maravilhosa que os burguesitos acomodados pensam que é. A pax romana implica dominação, submissão prévia, e delimitação da esfera de liberdade na qual o dominado pode actuar. O mesmo se pode dizer da pax arabica, da pax otomana, da pax mongolica, da pax colonial. Ser uma religião de paz não significa ausência de violência, mas pressupõe uma violência prévia, a da dominação e uma violência certa, a da resposta à prevaricação. Quando Jesus diz: dou-vos a minha paz, sabe que não é qualquer paz que ressuma liberdade.

Quanto a todas as religiões serem de amor, talvez seja de lembrar que se há palavra rara no vocabulário religioso é precisamente a de amor. Os gregos tinham pelo menos quatro palavras traduzíveis vagamente por amor (storge, philia, eros, agape), os romanos três (amor, diligentia, caritas). Que seja do meu conhecimento o islão em parte nenhuma refere o amor. E quanto aos gregos, quando o amor é referido, nunca na mitologia, mas apenas da época clássica, o amor está associado ao ódio. Nas «Euménides» a penúltima intervenção do coro diz qualquer coisa como: «Teremos os mesmos amores e os mesmos ódios». A comunidade é sempre uma comunidade também de ódios, de inimigos comuns.

Do lado negativo, que as religiões tenham criado guerra é esquecer que foram os homens que as criaram. É já trivial, embora muito esquecido, que os ateus, ou indiferentes não foram mais pacíficos. E poderíamos citar Napoleão, Hitler ou Estaline. Nem vale a pena perder mais tempo com a demonstração.


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