sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Populista eu?




E se atender a Monica Lewinsky?

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quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Go out front and applaud yourself

Ainda por causa dos negócios do Pedro Marta Santos comigo, aqui e aqui, e a propósito do tempo quântico que nos oferece de bandeja uma tentadora ubiquidade, chamo a atenção para esta fantástica declaração de Will Rogers, divino redneck (não era, mas faz de conta) que foi o mais filosófico dos actores de John Ford (fizeram juntos uma comovente trilogia e de um dos filmes, "Judge Priest", Ford disse ser “my favorite picture of all time”).
Mas chega de parentesis que somos todos ouvidos para o Will Rogers:

The movies are the only business where you can go out front and applaud yourself.

São pouco vaidosos são!

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Cheira a prazer de leitura

Eu, que por acaso não tenho quase nada a ver com a editora Guerra e Paz – sim, sim, já sei, conflito de interesses, apito dourado, e por aí adiante – não é que tropecei com estes três livros que cheiram a prazer de leitura.
Boris Bajanov e a Condenação de Estaline”: as memórias de Boris Bajanov, secretário de Estaline, e um dos primeiros trânsfugas do país que para Cunhal era o sol do mundo, ainda por cima comentado por David Doyle, um dos fundadores da CIA (hoje reformado e casado com outra agente da CIA que tinha sido casada com um agente do KGB – será que percebi agora, Pedro Marta Santos, o que é o tempo quântico?).

Diário Português – 1941-1945” mostra-nos Portugal visto pelos olhos de Mircea Eliade – passei a recruta, na Escola de Aplicação Militar de Angola, a ler-lhe “O Sagrado e o Profano” (lindíssimo, lindíssimo). Eliade é um dos maiores intelectuais romenos do século XX, sentava-se em cadeiras políticas de direita com propensão autoritária, dava-se com Salazar como Deus com os anjos – e ai de quem viva agora em Cascais e não compre o livro.
Perro Cristão entre Muçulmanos”, romance protagonizado por Nicolau Clenardo, figura ecuménica que veio, no século XVI, à Península Ibérica inventar possíveis formas de diálogo entre as religiões do Livro.

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Rumo ao título

Já com o mercado de inverno oficialmente fechado, o «Geração de 60» conseguiu ainda inscrever os três reforços que faltavam para completar o plantel. O Diogo Vasconcelos vem da 1ª liga Inglesa e dispensa apresentações. O Martim Avillez Figueiredo estava a ser cobiçado por vários clubes do Norte e é uma estrela com provas dadas no campeonato luso. O Paulo Rangel, qual Rui Costa, regressa a esta casa, que sempre foi sua, depois de prolongada lesão.
Sejam bem vindos!

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Rodney Stark - The Victory of Reason: How Christianity Led to Freedom, Capitalism, and Western Sucess

Rodney Stark, sociólogo, ateu e americano, escreveu, no seguimento de um conjunto de outros textos que iam já nesse sentido, um livro que, tendo embora algumas falhas (aumentadas, aliás, pela edição portuguesa, que se apresenta pouco cuidada), tem a enorme virtude de fundamentadamente se insurgir contra o politicamente correcto há muito tempo instalado no mundo das ideias, afirmando desassombradamente as vantagens do «influxo determinante do cristianismo em geral, e do catolicismo em particular, na configuração e no rosto peculiares da cultura europeia.»
Em The Victory of Reason: How Christianity Led to Freedom, Capitalism, and Western Sucess, publicado em 2005, mostra, resumidamente: a) que o domínio ocidental se deve fundamentalmente ao surgimento, na Europa, do sistema capitalista; b) que esta possibilidade e desenvolvimento do capitalismo se devem à extraordinária confiança que a Europa descobriu na razão; c) que esta vitória da razão – como lhe chama – tem as suas principais raízes no cristianismo, que, ao contrário das outras religiões, vê a razão e a lógica como ferramentas fundamentais para a descoberta da verdade religiosa.
Recomendando vivamente a sua leitura, que ilumina e limpa o sótão frequentemente pouco visitado das nossas ideias, aqui deixo um pequeno excerto do Prefácio:

«Quando os europeus começaram a explorar o mundo, a maior surpresa não foi a existência do hemisfério ocidental mas a própria superioridade relativamente ao resto do mundo. Os grandes povos Maia, Asteca e Inca estavam indefesos perante os conquistadores europeus; as famosas civilizações do Oriente – a China, a Índia, e até os países muçulmanos – eram primitivas em comparação com a Europa do século XVI. Como sucedeu isso? Porque razão, durante séculos, os europeus foram os únicos a possuir óculos, chaminés, relógios que marcavam a hora certa, tropas bem armadas e um sistema de notação musical? Como é que os países que tinham nascido da barbárie e dos escombros da antiga Roma ultrapassaram de tal maneira o resto do mundo?
Há autores modernos que atribuem o segredo do sucesso europeu a uma posição geográfica favorável. (...) Outros afirmam que o desenvolvimento ocidental foi devido ao ferro, às armas ou aos navios, e outros ainda apontam uma agricultura mais produtiva. (...) A resposta mais convincente atribui o domínio ocidental ao surgimento do sistema capitalista, que também só surgiu na Europa. Mesmo os inimigos mais ferozes do capitalismo reconhecem que gerou uma produtividade e um progresso nunca antes imaginado. (...) O capitalismo conseguiu este “milagre” através do investimento regular em maior capacidade produtiva, e através da motivação financeira de administradores e trabalhadores.
Partindo do princípio que o capitalismo foi realmente responsável pelo grande avanço da Europa, resta explicar porque que razão esse avanço só se deu na Europa. Alguns datam o nascimento do capitalismo da Reforma Protestante; outros, das mais variadas circunstâncias políticas. Mas se aprofundarmos a investigação torna-se evidente que a raiz verdadeiramente fundamental do capitalismo e do desenvolvimento do Ocidente é uma extraordinária confiança na razão.
A Vitória da Razão explora como a razão ganhou importantes batalhas e moldou de forma única a cultura e as instituições ocidentais. A vitória mais importante foi a do Cristianismo. As outras religiões mundiais sublinham o mistério e a intuição, mas o Cristianismo vê a razão e a lógica como ferramentas fundamentais para a descoberta da verdade religiosa. A confiança na razão foi influenciada pela filosofia grega. Mas a filosofia grega teve pouca influência nas religiões gregas. Estas permaneceram típicos cultos de mistério, nos quais a ambiguidade e as contradições lógicas eram provas de uma origem sagrada. (...) Em contraste, os fundadores da Igreja pregaram, desde sempre, que a razão é um bem supremo, um dom de Deus, e a ferramenta que permite um desenvolvimento progressivo na compreensão da Bíblia e da Revelação. O Cristianismo é, portanto, voltado para o futuro, enquanto as outras grandes religiões acreditam na superioridade do passado. Pelo menos em princípio, se nem sempre na prática, a doutrina cristã pode ser modificada em função do progresso, como produto da razão. A confiança no poder da razão entranhou-se na cultura ocidental, apoiada por autores escolásticos e pelas grandes universidades medievais, fundadas pela Igreja. A confiança na razão estimulou o estudo científico e o desenvolvimento de teorias e práticas democráticas. O surgimento do capitalismo foi outra vitória da razão de inspiração religiosa, pois o capitalismo é, essencialmente, a aplicação sistemática e contínua da razão ao comércio – um sistema descoberto pelos grandes centros monásticos.
Ao longo do século XX, a maior parte dos intelectuais ocidentais demonstraram que o imperialismo europeu tinha origens cristãs. Recusaram-se, no entanto, a reconhecer que o Cristianismo foi um factor na supremacia do Ocidente, excepto pela intolerância. Consideraram que o Ocidente ultrapassou o resto do mundo no momento em que superou os “obstáculos religiosos” ao progresso, especialmente os que se opunham à ciência. É um disparate! O sucesso do Ocidente, inclusive o desenvolvimento da ciência, foi construído inteiramente com base em fundamentos religiosos e as pessoas que o tornaram possível foram cristãos devotos. Infelizmente, mesmo os historiadores que concederam ter sido o Cristianismo um factor no desenvolvimento do progresso ocidental, limitaram-se a salientar os resultados religiosos positivos da Reforma Protestante. É como se os mil e quinhentos anos de Cristianismo até esse acontecimento não tivessem a menor importância ou fossem, até, prejudiciais. Um anti-Cristianismo académico de estirpe inspirou o mais célebre livro jamais escrito sobre as origens do capitalismo.
No início do século XX, o sociólogo alemão Max Weber publicou um estudo que se tornou espantosamente influente: A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Na sua obra, Weber propõe que o capitalismo surgiu na Europa, porque, entre todas as religiões do mundo, apenas o Protestantismo oferecia uma visão moral que levava as pessoas a restringir o seu consumo material e procurar activamente a riqueza. (...).
Talvez devido à sua elegância, a teoria foi universalmente aceite apesar de estar errada. A Ética Protestante continua a ter um estatuto quase sagrado entre sociólogos, apesar de os historiadores económicos menosprezarem as ideias de Weber, aliás pouco fundamentadas; afinal, o capitalismo surgiu na Europa vários séculos antes da Reforma Protestante. Hugh Trevor-Roper explica: “A ideia de que o capitalismo industrial, em grande escala, era ideologicamente impossível antes da Reforma, é destruída pelo simples facto que o capitalismo já existia.” (...) Os países do Norte apenas tomaram a posição que fora ocupada, durante muito tempo e muito bem, pelos antigos centros capitalistas do Mediterrâneo. Nada inventaram, nem na tecnologia nem na administração de companhias. Além disso, durante o período crítico de desenvolvimento económico, esses centros do capitalismo nórdico eram católicos e não protestantes – a Reforma era ainda num futuro longínquo.
(...)
Apesar de enganado, Weber tinha toda a razão em afirmar que as ideias religiosas tiveram forte influência no desenvolvimento do capitalismo na Europa. As condições materiais necessárias ao desenvolvimento do capitalismo existiram em muitas civilizações, e em muitas épocas, incluindo China, Índia, Islão, Bizâncio, e provavelmente também Roma e Grécia antiga. Porém, nenhuma destas sociedades desenvolveu o capitalismo, porque nenhuma delas desenvolveu uma visão ética compatível com a dinâmica deste sistema económico. Pelo contrário, as maiores religiões não Ocidentais apelaram ao ascetismo e condenaram os lucros, a riqueza foi negada a agricultores e comerciantes por elites apreciadoras do consumo e da ostentação. Porque foi a Europa um caso à parte? Devido ao compromisso cristão com a teologia racional que pode ter sido um factor determinante na Reforma mas que claramente já existia muito antes: há mais de um milénio.
Mesmo assim, o capitalismo só surgiu em alguns lugares. Porque não surgiu em todos? Porque, em certas sociedades europeias, como aconteceu em quase todo o resto do mundo, o seu desenvolvimento foi impedido por tiranos: a liberdade também é necessária para o capitalismo. Isto leva-nos a outra questão: por que razão a liberdade foi tão rara na maior parte do globo, mas foi sustentada em reinos e cidades-estado medievais? Eis outra vitória da razão. Antes de qualquer Estado europeu medieval ser governado por grupos eleitos, havia teólogos cristãos que elaboraram teorias sobre a natureza da igualdade e sobre os direitos do indivíduo – o trabalho de teóricos políticos tão “seculares” como John Locke no séc. XVII tem raízes em axiomas igualitários provenientes de filósofos religiosos.
Para concluir: o sucesso do Ocidente deve-se a quatro grandes vitórias da razão. A primeira foi o desenvolvimento, dentro da teologia cristã, da confiança no progresso. A segunda foi a forma como a confiança no progresso incentivou inovações tecnológicas e de organização, muitas vezes apoiadas por congregações religiosas. A terceira vitória foi que, graças à teologia cristã, a razão influenciou a filosofia e a prática política de tal maneira que, na Europa medieval, surgiram Estados receptivos, com um elevado grau de liberdade pessoal. A vitória final foi a aplicação da razão ao comércio, que resultou no surgimento do capitalismo em ambientes estáveis proporcionados por esses Estados. Foram estas as vitórias que levaram a Europa a vencer.»

* STARK, Rodney, A Vitória da Razão – como o Cristianismo gerou a liberdade, os direitos do homem, o capitalismo e o milagre económico do Ocidente, Ed. Tribuna da História, Lisboa, 2007, tradução de Mariana de Castro, págs. 41-46.

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Tempo:

O provocante texto do Manuel Fonseca suscita sete anos (é muito tempo...) de reflexões, e outros tantos espelhos quebrados, presos porventura a paredes prestes a perder o pecado.
Como Einstein provou, o tempo depende sempre do observador e, sem ser esse o seu desígnio, confirmou que o tempo é, antes de mais, uma poética da intimidade. É claro, tão claro e doce como a água da metafísica Manuelina,

que não existe Tempo, existem tempos. Os limites desses tempos são, no que é maior, os esforços bravos da luz e, no que é mais pequeno, as disposições das partículas base. No mundo cosmogónico, poderá haver fronteiras para além da Graça dos fotões, mas não os conhecemos. No mundo quântico, todas as fronteiras se quebram: literalmente, qualquer coisa pode estar em dois sítios ao mesmo tempo (estar ou não à mesma velocidade, já é outra questão).
Talvez o passado seja a única dimensão que se ajusta aos absolutos mentais. O presente foge de nós, como os soldados da rainha de copas de "Alice no País das Maravilhas" fogem da quietude. Mas a certeza de o tempo deixar sempre de ser tempo para o poder ser é o segredo da nossa hipótese de felicidade: se paramos o momento em que estamos felizes, entramos nas recordações. E essas são vidas imensamente belas, mas a preto e branco.
Só no efémero existe Technicolor.

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quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

AINOMIS... parece que assim não faz mal!?

Venho falar-vos a pretexto dos business angels. Uma boa ideia – quero desde já frisá-lo –, com um nome que dá que pensar. E é sobretudo o nome o que aqui me interessa.
Business angels, ou angel investors, são antigos empresários, ou executivos, que, individualmente, ou associados entre si, fornecem o capital necessário para o arranque de projectos empresariais que, pelo risco que comportam, têm dificuldade no acesso aos meios de financiamento tradicionais. Garantindo um retorno financeiro do seu investimento (o qual, até pelo risco envolvido, é de pelo menos 15 vezes o montante do capital investido num prazo de 5 anos), mantêm-se deste modo activos no mundo dos negócios, agora ao seu próprio ritmo, ajudando estas empresas emergentes com a sua experiência e com os seus contactos.
É sem dúvida uma boa ideia. É notoriamente business. Já não me é tão evidente que sejam angels. O nome, contudo, vingou, e com ele a ideia foi atrás. Terá, por isso, interesse explicá-la.
A palavra anjo (do latim angelus; do grego άγγελος) significa genericamente enviado, ou mensageiro, sentido que encontramos expresso na maioria das religiões. Originariamente referida a um mensageiro tanto divino como humano (é o caso do termo hebraico מלאך - mal´ach, que assim será traduzido ainda na Bíblia dos 70), o seu significado foi-se historicamente restringindo aos entes divinos, ou espirituais (como acontece já na Vulgata), sendo hoje normamente considerados como entes espirituais por meio dos quais Deus comunica a sua vontade aos homens.
A enorme importância destes seres que constantemente sobem e descem a escada que vai da terra para o céu, numa a sociedade em que os fins temporal e espiritual do homem não estão dissociados, como é evidentemente o caso da sociedade medieval cristã, fez com que os seus teólogos desde muito cedo se dedicassem à indagação da sua natureza, inclusivamente em vista da grande diversidade com que aparecem ao longo da Bíblia.
São especialmente importantes, neste sentido, o tratado De coelesti hierarchia, atribuído ao Pseudo-Dionísio, as homilias de São Gregório Magno nos seus comentários In Evangelis, e o tratado De angelis, incluido na primeira parte da Summa theologiae de São Tomás de Aquino, a partir dos quais os anjos são compreendidos, consoante a sua maior ou menor proximidade de Deus, segundo (três) ordens e (nove) categorias diversas, que começam nos serafins e nos querubins e acabam nos arcanjos e nos anjos.
Isto nunca foi doutrina de fé, embora tenha sido largamente aceite e divulgado no seio da Igreja, que sempre se preocupou em compreender este natural acesso ao sobrenatural. Assim se discutiu a sua natureza (consensualmente considerada espiritual, num grau superior ao do homem); a sua essência (individual); o seu número (finito, mas prodigioso), o seu género (excepção feita à Igreja de Jesus Cristo dos Últimos Dias, vulgo mormons, quase sempre considerados como seres assexuados); a sua liberdade (no judaísmo e no cristianismo, ao contrário do islamismo, os anjos têm livre arbítrio, podendo desobedecer a Deus); as suas tarefas (velar pelo poder de Deus; comunicar a sua vontade aos homens; proteger pessoas, famílias e nações...); etc.
Talvez mais importante do que isto, porém, são as suas representações artísticas e populares, que permanecem para lá das discussões que hoje se considera serem apenas sobre o sexo dos anjos. Qualquer criança, de facto, ao rezar ao seu anjo da guarda, quase que imediatamente o imagina com uma figura humana de extraordinária beleza, com um halo na cabeça, envolto em luz, com asas e capaz de voar. E rezando, de olhos fechados, talvez o anjo venha, com o tempo, a falar com ela, protegendo-a e ensinando-lhe os caminhos para Deus.
Dir-me-ão que isto é uma história para crianças, útil apenas enquanto elas crescem e não conseguem ver as coisas pelos olhos verdadeiros da razão. Talvez sim. Ou talvez não. Certo é que depois deste milenar labor teológico, a Idade Moderna procedeu a uma matematização totalitária da realidade, a partir do que se estabeleceu a irracionalidade de toda a expressão privada na vida pública e se confinou absolutamente a presença de Deus à esfera da intimidade de cada pessoa. E os anjos, no seio desta nova religião, foram também reduzidos a meros entes racionais: matemáticos, primeiro, isto é, convertíveis em princípios consonantes com a nova ciência; e imaginários, depois, isto é, meras ilusões, fruto da ignorância e da superstição, adversária da verdadeira religião – a razão matemática!
Voltando ao princípio desta nossa história, é óbvio, portanto, que estes anjos dos negócios não são verdadeiros anjos. É significativo, porém, que se apresentem e sejam aceites como tal, pois que isso nos dá um indicador fiável sobre aquilo em que acreditamos: à superfície, no dinheiro. Quando ele chega tocam trombetas e a nossa alma rejubila no Senhor! Por isso dizia Sofia de Mello Breyner (num conto sobre Os Três Reis do Oriente), que «os deuses que existiram extinguiram-se há muito e aquilo que adoramos é apenas a cinza do divino. Qual é, na idade em que vivemos, o homem que viu um anjo?»
Não falo contra o dinheiro. Ao contrário: diariamente luto por ele. Mas o preceito segundo o qual devemos dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, permanece, do meu ponto de vista, admirável. Desde muito cedo, aliás, a igreja cristã rejeitou formalmente a pretensão do mago Simão, que terá querido comprar aos apóstolos o poder de fazer milagres. E quando os próprios representantes da igreja, lamentável e generalizadamente, instituiram a troca de bens espirituais por bens materiais, foram sempre duramente combatidos.
É conhecida, nesse sentido, a luta travada pela renovação espiritual da igreja, que levou à fundação das ordens cisterciense, franciscana e dominicana... Mais conhecidas são as condenações da simonia, ou acto de Simão, feitas por Dante (n´ A Divina Comédia, os simoníacos, e entre eles o próprio papa Nicolau III, eram enterrados no terceiro fosso do oitavo círculo dos infernos, num ritual baptismal invertido), por Maquiavel e por Erasmo... E ainda mais conhecida a história de Lutero, que, lutando contra o tráfico dos bens espirituais que se generalizara na igreja, veio a negar a autoridade do papa, que considerou ser o anti-Cristo.
Estai atentos, porém, homens de Deus, porque a luta não acabou e continua. E tal como um anjo não nos sossega quando precisamos de dinheiro para pagar as nossas contas, assim o dinheiro não serena a criança que reza pedindo para dormir em paz. E numa altura em que os Estados começaram já a perder as suas soberanias e o imperium procura novas formas para se estabelecer, temos que voltar a saber como podemos ser unidos no acolhimento de uma força verdadeiramente espiritual. É um dos desafios estruturais do nosso tempo, mas isso vai demorar ainda. Seja como for, e até que chegue um novo Gelásio, distinguindo esses dois poderes, saibamos estar atentos aos abusos dos que querem confundir o céu e a terra, sejam eles as igrejas que em troca de dinheiro prometam bens espirituais; sejam os capitalistas que em troca de bens espirituais prometam dinheiro. Ou assim já não faz mal!?

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Moçambique na rota de um eléctrico chamado desejo

Moçambique, 27 de Fevereiro
Foi no Maputo, há uns dias atrás que curiosamente assisti à peça de Tennessee Williams, " A streetcar named desire". Encenada e produzida por uma companhia nacional que tem resistido ao deserto cultural, social e económico desta capital nos últimos 20 anos.
Em 1996 quando por aqui passei, encontrei um país com uma perspectiva. Hoje, encontro um "sítio" quase em "estado de sítio" onde tudo é um imenso buraco. Dos serviços básicos de saneamento à distribuição do correio, a única coisa que funciona é mesmo a incompetência.
Universidades em todos os distritos mas sem professores, internet instalada em todo o lado mas sem utilizadores, são apenas dois factos de uma infindável lista de aberrações que poderia fazer.
Franceses, Belgas ou Ingleses, vieram mas foram embora. Acabaram por dedistir.
Moçambique vive apenas do romantismo e do sonho dos seus artistas. Vive de um Malangatana, com quem tive oportunidade de estar num jantar a quatro e que, de "olhos bem fechados" declamou os seus pomemas eróticos e cantou as suas músicas do passado, enquanto as lágrimas lhe corriam pelo rosto como dois rios que desaguam num imenso mar salgado, de onde esta terra nasceu.
Aqui aonde a vida nasceu e se propagou sobre a terra como uma pulsação solitária, parece não haver espaço para mais nada além do sonho.
É pena que Portugal não tenha tempo para sonhar e deitar mão a um país de gente entregue a tão pouca sorte. Assim deixará que Moçambique apenas percorra a rota de o "Eléctrico chamado desejo", acabando como Blanche por, desejando a vida, encontrar a morte, envenenado por seus sonhos e seus desejos.

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Sede de Liberdade

O relatório da Sedes não trás nada de muito novo. Nada que na plural Geração de 60 não tenha já sido dito e repetido. A sucessão de diagnósticos acaba por se tornar tão viciante como paralisante. É preciso apontar caminhos, é preciso avançar, é preciso correr riscos.

Em primeiro lugar há que reconhecer os erros. Os erros não são específicos deste governo ou desta oposição em particular. Os erros manifestam as crenças ocas do nosso tempo e têm como resultado a revolta, a impaciência, a descrença, o tédio e a violência. E o erro principal é o de se atribuir o primado da vontade sobre o pensamento a toda a acção humana. Não se espera de um governante nem de um empresário que pense, mas sim que decida, que manifeste a sua vontade e escolha um qualquer caminho leve ele aonde levar. A suspeita de que o pensamento que se exerce individualmente é para se consumir individualmente em vez de se comungar publicamente, é uma das expressões do pessimismo moderno. E é o que temos: todos a discutirem sem se ouvirem uns aos outros e decisores autistas a fazer só o que lhes dá na cabeça.
Depois, uma sociedade sem valores comuns ou afins entre os seus membros também não permite que haja um autêntico sentimento de partilha e de identidade entre cada um. A sociedade espartilha-se num sentimento individual baseado no interesse e expectativa pessoal de cada um relativamente a si mesmo e em que os outros são meros instrumentos para uma realização pessoal. Degradado o pensamento na vontade e o sentimento num solipsismo, entra-se numa depressão de que dificilmente se pode recuperar.
A Sedes não fala só de Portugal. A Europa está no mesmo beco sem saída. Ao contrário da América, a Europa, tem passado na sua história por rupturas e revoluções que têm dado origem a regimes sucessivos: várias dinastias, várias repúblicas, alternâncias de totalitarismos e democracias, separatismos e independências. A Europa gera revoluções quando a saturação do status quo se torna insuportável. Não se dão logo que dessa saturação se tem notícia. Preparam-se longamente até que um dia eclodem imparáveis. A Sedes quer regenerar o sistema com paliativos. Acredita que há apenas um desvirtuamento pela persistência de nepotismos e compadrios, por perpetuação de uma mesma classe política que não se regenera e não se abre. O perigo são os populismos que estas águas paradas podem incentivar. Lugar comum: o populismo é o principal inimigo da democracia! Depreende-se que em democracia não há populismo. E no fundo, na democracia que já não o é, o perigo não é ela já não o ser, mas o populismo que pode eclodir do seu vazio. Mas o que é o populismo senão a demagogia em que a democracia degradada se torna?
Portugal só tem a sua oportunidade se tiver a sua autonomia. Não falo de autonomia como quem fala de isolamento, falo de autonomia como quem tendo consciência de si pode determinar a partir dos seus objectivos o seu caminho. Não é preciso ser grande, nem estar num centro territorial, nem ter tudo e em maior quantidade que os outros. É preciso promover o saber: educar para a liberdade. Enquanto não houver uma escola livre, nem o direito de ensinar, continuaremos de insucesso em insucesso. Continuaremos a ter homens submissos a um hierarquia voluntarista e egoísta, homens assustados com a injustiça que lhes pode desabar em cima, homens tristes sem esperança.
O preço que pagamos pela organização e omnipresença do Estado, não é só o dos impostos imparáveis, é, sobretudo, o da negação da nossa liberdade individual. O perigo, é já nem termos como Povo noção do que seja isso da liberdade, e, por isso, julgarmos que nos podemos arrastar nesta impotência recorrente como se nada fosse.
Estarão os diagnósticos realmente bem feitos? Que impede então a reacção? Como mudar a democracia quando ela está ocupada por uma oligarquia prepotente e demagógica? Como fazer para que se deixem de passar atestados de menoridade aos portugueses?

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Não há futuro

Julgamos saber que não podemos banhar-nos duas vezes nas mesmas águas do rio que passa, da mesma forma que fingimos ignorar que só há um caminho que é e não pode não ser, pois o que não é e é forçoso que não exista é um caminho impensável. Ao imparável rio que flui e à esplêndida e imóvel eternidade une-os a mesma substância física, o mesmo mistério metafísico: a natureza do tempo.
O tempo corre, o tempo foge. Há essa ideia de que o tempo se dirige para a frente e nos leva para o futuro. Temo, e o plotinano primeiro capítulo da “Historia de la Eternidad”, de Jorge Luis Borges instiga-me à suspeita, que seja outro o movimento do tempo, que seja mais nostálgica a natureza desse fluxo.
Lendo o inteligente e inquieto
post da Sofia Galvão, concluí, como a Sofia, descurando embora as razões cívicas que a atormentam, que não há futuro. Desgraçadamente, acolho a ideia com insensato optimismo.
O beijo que te dou, o generoso decote com que te insinuas, a fúria que te faz explodir em soluços, são actos que têm um só sentido: consolidar o passado.
Não há futuro. O presente, se é que o presente chega a ter densidade metafísica, serve apenas para actualizar ferreamente o tempo que foi e que, por ter sido, não pode não ser. O sonhado e mitológico amanhã que canta é, ainda e outra vez, uma forma subtil de o passado se expandir, como se expande a tinta que tinge de vermelho, numa prosaica máquina de lavar, a branca camisola de lã.
O futuro? Que lástima! Encosto-me à móvel e milenar ombreira do passado e sinto que a eternidade e a esperança se insinuam.

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segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Um difuso mal-estar…



Certeira, a SEDES apontou o cerne do que, hoje, importa discutir (ver aqui). O que pesa, o que incomoda, o que determina é este mal-estar imenso que a todos toca e condiciona.
Mal-estar grave e endémico, já que denuncia uma profunda crise de confiança.
Para a SEDES, os portugueses não acreditam no sistema político e não acreditam nos políticos. Os portugueses não acreditam na justiça, nos valores que prossegue e nos protagonistas que a fazem. Os portugueses não acreditam na comunicação social. Os portugueses não acreditam no Estado e na lei.
Fruto desta descrença, acrescento eu, os portugueses tendem a não acreditar em si. E, pior, estão a um passo de não acreditar na possibilidade do seu futuro.
Mas a SEDES denuncia os males do momento. E é lúcida, também aí.

Sublinha que a degradação da confiança dos cidadãos nos representantes partidários se estende a todo o espectro político. Verbera a desqualificação do pessoal político. Assinala a “tentacular expansão da influência partidária – quer na ocupação do Estado, quer na articulação com interesses da economia privada – muito para além do que deve ser o seu espaço natural”. Alerta para o perigo de “um vácuo propício ao acirrar das emoções mais primárias em detrimento da razão”, com o consequente horizonte de derivas populistas e caciquistas.
Reconhece “na combinação de alguma comunicação social sensacionalista com uma justiça ineficaz” um factor adicional da degradação da vida pública. “Com ou sem intencionalidade, essa combinação alimenta um estado de suspeição generalizada sobre a classe política, sem contudo conduzir a quaisquer condenações relevantes. É o pior dos mundos: sendo fácil e impune lançar suspeitas infundadas, muitas pessoas sérias e competentes afastam-se da política, empobrecendo-a; a banalização da suspeita e a incapacidade de condenar os culpados (e ilibar inocentes) favorece os mal-intencionados, diluídos na confusão. Resulta a desacreditação do sistema político e a adversa e perversa selecção dos seus agentes”. Mas a SEDES concretiza, dando voz a uma percepção difusa e entredita: “nalguma comunicação social prolifera um jornalismo de insinuação, onde prima o sensacionalismo. Misturando-se verdades e suspeitas, coisas importantes e minudências, destroem-se impunemente reputações laboriosamente construídas, ao mesmo tempo que, banalizando o mal, se favorecem as pessoas sem escrúpulos”.
Nesta sociedade doente, o relativismo moral e a incultura jurídica servem uma conveniente confusão entre legalidade e ética, com o efeito perverso de tornar admissível tudo o que a lei não proíbe. Mas percebe-se: na alvorada dessa legalidade utópica que enfim tudo disciplinará, está legitimada a prática que, na penumbra, vai adensando a corrupção e gerindo interesses ao arrepio do bem comum.
Como é típico dos ambientes concentracionários, a SEDES identifica ainda uma “presença asfixiante” do Estado sobre a sociedade, “a ponto de não ser exagero considerar que é cada vez mais estreito o espaço deixado verdadeiramente livre para a iniciativa privada”. Mas, logo denuncia, esse Estado omnipresente é o mesmo que, frequentemente, se revela parcial nas suas “duvidosas articulações com interesses privados” e, pour cause, relapso no exercício dos seus deveres de regulação.
Um Estado desorientado, que falha na contenção da criminalidade violenta, ao mesmo tempo que, em áreas de menor premência, perfilha “um fundamentalismo ultra-zeloso, sem sentido de proporcionalidade ou bom-senso”.

Neste quadro negro, a SEDES vê uma ameaça à nossa coesão social. E apela à sociedade civil para que participe “no desbloqueamento da eficácia do regime”. Em nome de um imperativo de acção, que é um “dever cívico decorrente de uma ética da responsabilidade”: “não podemos ceder à resignação sem recusarmos a liberdade com que assumimos a responsabilidade pelo nosso destino”.
Para tanto, a prioridade está na regeneração dos partidos políticos. De acordo com a SEDES, tal dependerá da capacidade que tenham de: a) mobilizar os talentos da sociedade para uma elite de serviço; b) estabelecer um convívio diverso, dinâmico e criativo com a sociedade; c) converter-se em meio, deixando de ser um objectivo em si mesmos...
Paralelamente, “o Estado, a esfera formal onde se forma a decisão e se gerem os negócios do país, tem de abrir urgentemente canais para escutar a sociedade civil e os cidadãos em geral”.
A SEDES fala em novas “esferas de reflexão e diálogo”, transparentes e escrutináveis.

Por mim, adiro sem reservas. O mal-estar existe. Difuso. Por isso, cada vez mais sufocante e cada vez mais destrutivo. Os partidos políticos estão doentes, gastos, velhos, baços. Pior, corrompidos. E são, evidentemente, a grande prioridade.
Mas tenho um medo real de que estas nossas angústias – a da SEDES e a minha – possam pouco. A degradação é geral e tem causas que não são de hoje. Está pois profundamente arreigada e, o que é mais grave, fez-se de uma progressiva erosão do pensamento e da inteligência.
Os partidos políticos estão reféns de protagonistas a quem não interessa a qualificação – para eles, tal significa desemprego. O debate político faz-se num registo muito básico, suportado em frases curtas e em ideias fáceis. O exemplo e a própria elevação que lhe subjaz deixaram de ter um papel. A esperança não é mais uma proposta e, portanto, falham as razões para uma mobilização efectivamente regeneradora.
De tudo isto falam pequenos detalhes do nosso dia-a-dia a que já ninguém presta atenção. Estamos assim, adormecidos e acríticos.

Resignados? Não sei. Mas o ar do tempo faz-se de alienação. Cada um trata da sua vidinha e aí esgota a medida da sua urgência. O verdadeiro problema é, afinal, esse.

A tudo isto voltarei. Em breve.

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Pentimento: "Michael Clayton"

Ter "Michael Clayton" como candidato ao Óscar de Melhor Filme do Ano é acreditar nas histórias sobre a idade avançada dos membros da Academia de Hollywood, e acreditar que estão todos com Alzheimer. Já para não irmos mais longe - ao "Force of Evil" de Abraham Polonsky ou ao "Call Northside 777" de Henry Hathaway, p.ex., ambos produzidos há séculos, ambos magníficos -, há nos anos 70 do cinema americano duas ou três dúzias de fitas sobre os becos da consciência e a complexidade das escolhas morais que fazem "Michael Clayton" parecer uma pobre cartilha da escola primária, dotada duma subtileza acessível a quem aprendeu há dias a escrever.
No retrato de um advogado (George Clooney) que "desenrasca" tudo o que são situações legais dúbias numa grande firma da especialidade, "Michael Clayton" traça o habitual percurso da redenção, do despertar para a dignidade após anos a fechar os olhos ou a olhar para o lado, o "do the right thing" quando apenas existem desvantagens exteriores nessa escolha.
É a herança directa do cinema liberal americano, das parábolas políticas de Alan J. Pakula, dos testes morais de Sidney Lumet face à corrupção policial, das ambiguidades de comportamento nos primeiros trabalhos de Ivan Passer e Bob Rafelson. O problema de "Michael Clayton" é ser uma cópia, um filme-Xerox, uma variação esquemática sobre a mesma rítmica, com um instrumento novo (o flashback, cujo núcleo é repetido, sob um ponto de vista diferente, na sequência anterior ao clímax) que só faz barulho, não acrescenta melodia.
Há o consultor, outrora inocente, agora adormecido num mundo de conveniências; há o patrão do mega-escritório, para quem os meios justificam os fins, desde que ele não saiba demasiado sobre os meios; há a directora do departamento legal de uma multinacional de produtos agrícolas (a mutante Tilda Swynton, uma actriz de registos únicos, agora premiada pelo papel errado); há o cérebro jurídico que perde a cabeça e resolve denunciar os podres da civilização (Tom Wilkinson, uma espécie de sobrinho desinsipirado do Peter Finch de "Network"); e há mesmo os cavalos como símbolo de normalidade e libertação - mas de "Os Inadaptados" a "Quando a Cidade Dorme", já vimos isto 50 vezes.
"Michael Clayton" é um filme que tropeça nos altos valores da sua própria banalidade. Pelos vistos, há quem o considere um dos melhores filmes do ano.
Pobre ano.

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Barack: Ano 1

Barack Obama, o futuro presidente dos Estados Unidos, é a alvorada depois de uma longa noite americana, a noite de Cheney, Rumsfeld, Wolfowitz, Abu-Ghraib, Guantanamo, os muros fronteiriços, o Patriot Act, as armas de destruição maciça, a auto-destruição de Colin Powell, a Haliburton, o caos. No debate da semana passada na Universidade do Texas,

Barack mostrou aquela clarividência que distingue os políticos dos líderes, e que capta a atenção de todos, mesmo os que mais abominam o cheiro acre dos corredores do poder. A sua mensagem é clara, o seu apelo é transversal e, mesmo que alimentada pela ilusão dos "speech writers" e dos "poll wizards", a sua marca ganhou o sinal do reconhecimento. Olhamos para ele, para a serenidade e para a confiança dele, sentimos o impacto da firmeza na sua voz (a melhor voz da política dos EUA desde Reagan) e percebemos que já não estamos a julgar um político profissional, estamos a aceitar profundamente uma esperança.
Acreditar em Obama é acreditar no melhor da América, e acreditar no melhor da América é ganhar o ânimo suficiente para acreditar num futuro melhor. Se Obama se revelar uma desilusão, será uma desilusão irrecuperável.

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O Mexilhão


Chelas- Barreiro? Beato - Montijo? Alverca -Alcochete? O problema, já se vê, não é propriamente novo. E a solução é, arreliadoramente, sempre a mesma. Mais «project finance», menos «project finance», mais Mário Lino, menos Ana Paula Vitorino, no fim quem paga é sempre ...o Zé.

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Tivoli em Dezembro



Normalmente fazíamos o caminho a pé. Desde o Príncipe Real, descendo a Calçada da Patriarcal, atravessando a Praça da Alegria para cruzar depois a Avenida em direcção ao Tivoli. Naquela altura o Natal era, antes de mais, época de estreia da Disney. «Estreia», já se vê, é força de expressão. Porque os filmes eram já então bem velhinhos. Mas o que é certo é que regressavam, religiosamente, ano após ano, com a força mágica de quem aportava a Lisboa pela primeira vez. A seráfica Branca de Neve e os seus infatigáveis anões («eu vou, eu vou, eu vou para casa eu vou»), a Bela Adormecida com a sua colecção de fadas de várias cores, a lindíssima Dama que foi a única cadela por quem eu tive um «béguin» (só quem nunca pôs os pés no Tivoli pode achar que isto soa a tara), a aterradora Cruela e os impagáveis Aristogatos que me serviram Jazz pela primeira vez. Do Bambi não falo porque, inopinadamente, naquele fim de tarde de Dezembro, a minha mãe me levou a comer um chocolate ainda antes do intervalo «porque o pequeno não tem idade para saber que as mães também morrem». Eu mal chegava com o nariz à varanda da frisa e foi então que descobri a infinita utilidade do colo dos pais.

Como tudo o que é bom tem de chegar ao fim, e para minha infinita tristeza, os anões deixaram um dia de falar «brasileiro» (ainda hoje estou para saber quem se lembrou de tal disparate) e começaram a aparecer em horrendos VHS nas prateleiras dos supermercados. O Tivoli fechou as portas e eu nunca mais pus os pés numa frisa. A Disney, essa, perdeu-se em delírios politicamente correctos e enredou-se no universo decadente das sequelas. Resignado, guardei os fins de tarde de Dezembro num recanto esquecido da minha memória e fui-me fazendo («malgré moi») homenzinho.


Até que, há alguns meses atrás, o meu filho Tomás, do alto dos seus seis anos, me convidou para ir ao cinema. É certo que não arranjei um frisa e que o cinema não era o Tivoli. Mas não faltou rigorosamente mais nada. Até o colo estava lá, embora desta vez fosse o meu.
«Ratatouille» não é apenas o melhor filme de animação dos últimos vinte anos. É uma viagem no tempo ao melhor do imaginário da Disney. É um milagre de redenção e, tenho a certeza disso, uma homenagem às minhas tardes do Tivoli. O meu Óscar ficou logo atribuído. Ontem a Academia veio apenas ratificar a minha decisão.

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7 dias de Brasil em 2 tempos e 1 movimento


Deixámos as havaianas no último degrau (de madeira) das escadas que nos levam à praia.

Hoje diz-se havaianas como outrora se dizia kispo. É a mesma lógica – and, besides, it sure as hell beats chinelos.

A praia abriu-se então, mais do que à nossa frente, para os lados – já que o mar rebentava logo ali.

Ao longo da praia bandeiras amarelas, gastas pelos elementos, assinalavam ninhos de tartaruga que o projecto Tamar jurou defender.

Tamar e não Itamar, como a principio erradamente pensei – como um nome para prestigiar o antigo presidente.

...

Nascem num relvado que começa onde morre a praia. Num plano inclinado são centenas de coqueiros. Os ramos, em cima, dispostos como aros, estão penteados pelo vento. Para trás.

Como guerreiros, protegem a costa de um inimigo que há-de chegar – que não pára de chegar. Colocados com um nexo apenas natural, fazem lembrar um parque eólico erigido por um visionário sem sentido de orientação.

Não param o vento mas cortam-no em fatias pequenas – mais fáceis de digerir – que servem aos turistas. Como nós.

Como acontece com os humanos, a grande maioria dos coqueiros alinha na mesma direcção mas alguns, poucos e mais independentes, ordenam-se, diferentemente, de acordo com uma vontade própria.

À direita, enquadrados no azul, fiapos de nuvem (muito) brancos estendem-se tentando uma ponte entre o céu e o horizonte. É o Verão que se vai.

À esquerda, nuvens - cujo topo (também muito) branco, em couve-flôr, contrasta com uma base cortada a régua e esquadro - delizam por cima do mar na nossa direcção. É o Inverno que chega.

Estas nuvens chovem lá longe, à vista desarmada, enquanto um surdo-mudo que não vai à escola nos serve água de coco com uma palhinha e um sorriso na cara.

...

Andava sempre ao seu passo. No seu ritmo. Passava todos os dias à mesma hora.

Trazia na cara a certeza de que não aceitaria – jamais! – acompanhar o passo de outrém.

Era (e seria sempre) assim. Nem mais depressa, nem mais devagar.

Não havia incentivo, ameaça ou convite que a fizessem vacilar na sua dela (firme) convicção.

Nunca seria mais rápida para agradar, nem lenta para chatear. Não temia criticas e não ouvia insultos. Sabia quem era e ao que vinha (ou ía...) e conhecia muito bem o ritmo do seu andar.

Aceitaria a companhia de quem gostava mas (também) não convidava.

Estava tão bem só, como bem acompanhada porque sabia - e bem - que o caminho se faz só, mesmo quando acompanhado.

Se andasse em Bond Street (que não andava) e tivesse guarda-chuva, abria-o. Se não, molhava-se. Mas não se convidava para baixo (salvo seja) de um qualquer umbrella que passasse.

Aceitaria ofertas de boleias, em situações extremas, para se resguadar - mas só... se ao seu passo.

Se o dono do guarda-chuva corresse, ela ficaria para trás – sem mágoa nem recriminação. Nem contra o tempo, nem contra a sorte (ou o azar). Sabia que a chuva caía quando caía e aceitava a realidade sem um franzir de sobrancelhas ou um piscar de olhos. Como um dia li numa feliz expressão (por certo congeminada com ela no pensamento), nem optimista, nem pessimista. Entre ela e a realidade não havia qualquer mal entendido.

Que ninguém, qualquer alguém, pensasse - alguma vez - que a faria correr ou gatinhar (“porquê gatinhar?”, teria perguntado), acelerar ou abrandar, saltitar num só pé ou mesmo em dois, porque o seu andar era único e não admitia excepções.

Era uma mulher curiosa esta que pass(e)ava pela praia. Atraente (também) pela singularidade.










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domingo, 24 de fevereiro de 2008

Kosovo, Turquia, UE e Portugal


Tanto se tem escrito já sobre a questão da independência do Kosovo, em tantos e variados textos, tanto aplaudindo como deplorando, que pouco mais teremos a acrescentar, neste momento, a tudo quanto foi já dito. Para tão elevada e imbricada tarefa falece-nos o engenho para não dizer mesmo, mais simples e comezinhamente, dri-se-ia, o necessário estudo e consequente conhecimento. Para não ir mais longe, do envolvimento da União Europeia à acção militar da NATO e às concomitantes resoluções da ONU, vastas, vastíssimas, complexas, complexíssimas e especiosas, mesmo tão especiosíssimas são as questões que, desde logo abandonamos qualquer ilusão e veleidade de algo significativo podermos ter neste momento a acrescentar. O que nos importa aqui é, acima de tudo e antes de mais, como sempre, Portugal, a posição de Portugal.


Eric Baudelaire, da Série «États Imaginés», 2005



Por quanto se vai lendo e ouvindo na imprensa e outros meios de comunicação, sabemos dos interesses dos Estados Unidos, da Rússia, de Espanha e outras nações europeias a braços com semelhantes questões minorias étnicas com veleidade de assumirem equivalente estatuto, sabemos ainda das posições de França, de uma Alemanha, de uma Inglaterra e de algumas das incongruências no seio da União mas, de Portugal, apenas sabemos que não há ainda posição. Que o Ministro dos Negócios Estrangeiros pretende ainda ouvir o Presidente da República, o Parlamento, e não sabemos já que mais demandas e consultas pretende efectuar para formar a sua decisão.

Compreendemos que, em diplomacia, muitas vezes nem tudo pode ser dito e explicitado de imediato, de modo claro, tantas são as redes de interesses e correspondentes consequências de uma qualquer decisão ou posição, a ponderar. Em diplomacia, a precipitação é a morte do artista, se nos é permitido este sugestivo plebeísmo. Mas tal não significa, necessariamente, silêncio; significa, acima de tudo, a necessidade de saber usar da suprema arte da elipse.

No caso presente, é compreensível a cautelosa posição oficial de Portugal. Não nos podemos esquecer, quanto por vezes parece suceder, a presença de forças militares portuguesas no Kosovo, nem esquecer podemos os nossos compromissos e inserção política em instâncias como a NATO, além, como é evidente, da própria União Europeia.

Não obstante, não tendo sido a declaração unilateral de Independência do Kosovo uma surpresa para ninguém, devia-se esperar, pedir, exigir, um pouco mais do Governo Português, ou seja, mais do que posições vagas como se sempre dependente estivesse de terceiras partes, a afirmação de uma linha de pensamento estratégico que, viesse qual viesses a ser a posição oficial, sempre entendida seria à luz desse mesmo pensamento estratégico e não como resultado fortuito e circunstancial de uma série de consultas, quase apeteceria dizer ad hoc, como quase parece suceder.

Não se vê _ pelo menos, não tenho visto _, qualquer reflexão e ponderação dos interesses nacionais em todo este processo. Com a excepção de Pacheco Pereira, Sexta-feira passada no Público, referindo a preocupação das possíveis consequências indirectas da actual situação na desestabilização de Espanha e o seu provável mediato reflexo em Portugal, tudo aparece passar-se como se nada houvéssemos com tudo isso. Ou seja, parece faltar-nos, de facto, pensamento estratégico e sem pensamento estratégico não há nação que se afirme. Poderá sobreviver enquanto útil for a terceiros mas pouco mais. E sem capacidade de verdadeira afirmação, impossível é alcançar também verdadeiro respeito. E sem verdadeiro respeito...

Não por acaso, ainda hoje é célebre o dito Clausewitz segundo o qual «a guerra é a continuação da diplomacia por outros meios». Na verdade, a essência de ambos é conduzir terceiros a fazerem o que queremos, seja na diplomacia, entre outros meios, através da persuasão, seja na guerra, através de um acto de força. E a pergunta que logo ocorre é tão só esta: sabe Portugal o que quer?

Quanto vimos acontecer com o Kosovo, vimos acontecer igualmente em relação à possível entrada da Turquia na União Europeia. Muita tinta sobre o óbvio carácter não exactamente europeu da Turquia; muita tinta sobre as dificuldades internas da Turquia em adoptar e adaptar-se a estritos preceitos ocidentais; muita tinta sobre as eventuais dificuldades de negociação entre Bruxelas e Ancara, sucessivas evoluções e consecutivos impasses. E, no entanto, sobre o interesse de Portugal e consequente posição em todo o processo, quase nem uma palavra, como se mais não nos restasse senão seguir mimeticamente directrizes emanadas de instâncias superiores, i.e., do douto Conselho Europeu.

Todo o caso da Turquia, i.e., das dificuldades de negociação entre Bruxelas e Ancara resultam e são um bom exemplo, em grande parte, do desnorte da própria União Europeia nos dias de hoje, sem saber exactamente o que é e o que pretende ser. Sem pretensão de qualquer exaustiva exposição, não podemos no entanto deixar de apontar dois ou três exemplos para que se entenda exactamente do que estamos a falar.

Por um lado, rejeita hoje a Europa as suas raízes cristãs, revelando em simultâneo um profundo pavor de qualquer efectiva afirmação civilizacional, até acabar num relativismo tão patético quanto conceptualmente vazio. Por outro, a obsessão federalista também não ajuda a esclarecer seja o que for, como bem revela o famigerado projecto de uma Constituição Europeia, disfarçado e emendado ou não em Lisboa. O que se pretende? A formação de uma espécie de Pátria Europeia que não existe nem vez alguma, nos tempos que se vislumbram, poderá vir a existir? Se as raízes cristãs da Europa não contam para nada, fará sentido referir as raízes muçulmanas e a consequente prática actual, como dificuldade para o avanço das negociações? Se afirmação civilizacional não há hoje na Europa, quanto se opõe em relação à Turquia? A Carta dos Direitos Humanos e o Iluminismo? E tal não significa, afinal, a sempre a mesma ilusão ou real consciência de uma mínima superioridade civilizacional, hoje talvez referida apenas, em mais humilde modo, como superioridade moral? E não é exactamente essa suposta superioridade moral, como sempre o foi, que permite e justifica impor uma muito europeia visão do mundo a terceiros?

Fora a União Europeia menos ambiciosa e mais realista, restringindo ao que deveria ser, um Comunidade Económica e Política, sem as disparatadas veleidades federalistas, embora se compreendam as suas raízes e propósitos, dos quais discordamos, e talvez tudo fora não apenas mais fácil como também mais profícuo. Basta pensar que os mesmos especiosos pruridos que hoje se colocam nas negociações Bruxelas-Ancara, não se colocam, como nunca se colocaram, em equivalente plano no seio da NATO. Haja realismo e sentido estratégico.

De qualquer modo, para nós, portugueses, deve-nos preocupar, antes de mais e acima de tudo, Portugal, e devemos, consequentemente, pensar tudo isto independentemente de todos os mais mas com plena consciência também das profundas interdependências dos dias de hoje. Isto mesmo o que parece faltar-nos na actualidade: pensamento e consequente doutrina estratégica. E sem pensamento e consequente doutrina estratégica, não estamos senão condenados a desaparecer, mais ou cedo ou mais tarde, inexaravelmente: como Pátria, como Estado, como Nação, perdurando talvrz, como fantasma, por algum tempo, uma vaga República, sem verdadeiro destino nem substância.

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Be nice to America

Uma pequena contribuição para a campanha eleitoral americana. Amenidades como esta, ou a do post anterior, podem encontrar-se neste local bizarro e alegremente infame.

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Camels

Escolha clínica. Ah, boca linda.

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sábado, 23 de fevereiro de 2008

Condenado a dividir



No cinema, a fronteira que separa a comédia inteligente da farsa primária e burlesca é por vezes muito ténue. Demasiado ténue para não ser ultrapassada. E conseguir não pisar o risco com Owen Wilson no «cast» é obra. Mas o que é verdadeiramente extraordinário é juntar, num mesmo filme, momentos de humor «non sense à la Python» com cenas de uma tristeza pungente (recordo, com um arrepio, o ritual de lavagem do corpo do menino indiano morto) e dar ao todo uma surpreendente coerência.

«The Darjeeling Limited» é um filme que desafia catalogações. Talvez por isso não tenha conquistado nem a crítica nem o «box office». Ninguém gosta de ser «desconcertado». E é precisamente isso que Wes Anderson propõe. Um desconcertante delírio. Que o afirma como um dos cineastas mais originais do momento.

Condenado a dividir. Eu estou do lado dos rendidos.

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sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Real than fiction...

Foi preciso um artigo do The Guardian para eu me recordar do paralelismo mas ele é claro. Nas últimas duas temporadas da série televisiva West Wing (Os Homens do Presidente) alguém antecipou a história de Barak Obama: um candidato democrata jovem, hispânico e com pouca experiência política entra na corrida à Presidência norte-americana. Tratado inicialmente como um outsider, desconhecido e com poucas possibilidades de vitória vai, pouco a pouco, crescendo e ganhando espaço eleitoral. A sua mensagem de uma nova América, capaz de transcender barreiras sociais e raciais vai conquistando adeptos. Primeiro, vence as primárias do partido democrático face a dois ex vice-presidentes (os homens do e no poder). Nas eleições gerais defronta e vence um candidato republicano fora do comum: pouco popular com as bases conservadoras e famoso pela sua independência e frontalidade. Alguma diferença com a realidade? O estratega de Obama terá dito ao argumentista da West Wing que estava a viver o que ele tinha escrito. O argumentista já veio dizer que se tinha inspirado no Obama da convenção democrática de há quatros anos para conceber a personagem da história. A ficção inspira-se na realidade? A realidade copia a ficção? A ficção prepara a realidade? Só tenho mais uma pergunta que o artigo do The Guardian não suscita: na West Wing o candidato republicano derrotado aceita ser o Secretário de Estado do novo Presidente… Será que?….

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Francisco Lucas Pires: um bloguista antes dos blogs

Conheci Lucas Pires como professor de Direito. Não foi meu professor mas fez parte do meu júri de doutoramento. A partir daí iniciámos uma relação de amizade alimentada pela partilha da mesma curiosidade intelectual face aos desafios do direito no mundo actual e, em particular, na Europa. Francisco Lucas Pires era uma das mentes mais criativas e originais que conheci. E, em muitos aspectos, antecipou vários dos desafios e questões com que hoje nos confrontamos no espaço público. Dez anos depois da sua morte é possível confirmar isto num blog (http://franciscolucaspires.blogspot.com/) que os filhos criaram para o homenagear e recordar o seu pensamento. O que é espantoso é que a sua forma de pensar, profundamente original, provocadora e de rasgo ensaísta antecipa a energia intelectual dos blogs. Se os textos não tivessem data original e o nome do autor pensaríamos estar perante um dos blogs do momento! Através deles damo-nos conta que Francisco Lucas Pires foi um bloguista antes dos blogs!

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Vocação Atlântica de Portugal


Alexandre Brandão da Veiga, segundo entendo de quanto escreveu, defende a vocação Europeia de Portugal em detrimento da sua natural vocação atlântica. Embora sendo a tese que vingou com a dita revolução de 1974, afigura-se-me ser tão errada, grave e perniciosa que não posso deixar de a comentar.

Rui Fonseca - Açores



A vocação atlântica Portugal não se deve tão só a razões de proximidade mas, acima de tudo, a razões de Geoestratégia. Não fora a sua vocação atlântica e Portugal teria sido inexoravelmente absorvido por Castela, tal como sucedeu com os restantes reinos peninsulares. Todavia, não se entenda também essa mesma vocação como mera fatalidade. Mais do que fatalidade, a vocação atlântica foi obra da inteligência e da compreensão tida por verdadeiros portugueses do superior destino e dos designados interesses permanentes de Portugal.

A vocação atlântica de Portugal também nada tem de histórico no sentido usualmente atribuído a tal expressão, a não ser, evidentemente, quando se olha para o passado e aí se coloca essa mesma vocação. Mas quem se deixa prender demasiado ao «histórico» acaba por deixar de ser capaz de pensar e, por consequência, antecipar, o futuro.

Defende Alexandra Brandão da Veiga derivar a vocação atlântica de Portugal de um erro de sinédoque, ou seja, to mar pelo todo o que é apenas parte. No entanto, olho para um mapa e localizo a Madeira no Atlântico Norte; no entanto, olho para um mapa e localizo os Açores no Atlântico Norte; no entanto, olho para um mapa e nítida é, ainda hoje, a crucial importância estratégica desse nosso Arquipélago cravado no coração do Atlântico Norte. E olho de novo um mapa e nitidamente vejo ainda o erro patético de Cabo Verde não ser já Portugal porque, na ânsia de sermos Europa nos idos de 74, por terrível conjugação histórica, termo-nos esquecido, a determinado momento, de defender o interesse de todos os portugueses, como verdadeiros portugueses eram então todos os portugueses de Cabo Verde.

Não, não há erro algum de sinédoque nem Portugal explorou apenas, como afirma Alexandre Brandão da Veiga, «de forma consistente», o Atlântico Sul. Explorou o Atlântico todo. Se, por razões históricas, de interesse estratégico, foi nas margens do Atlântico Sul que estabeleceu as suas principais possessões ultramarinas no Oceano que fizémos «Mare Clausum», tal nada significa para a tese em apreço.

Acusa ainda Alexandre Brandão da Veiga quem defende a vocação atlântica de Portugal, de «saltos de raciocínio» e «ignorância de lógica». Ironias do destino quando, «saltos de raciocínio» e falha de lógica, é exactamente quanto manifesta ao referir, muito significativamente, ter sucedido «à França potência continental», «a França potência colonial». Não há qualquer relação de oposição, contrariedade ou polaridade entre ser «potência continental» e «potência colonial». A França sempre foi uma «potência continental», como ainda hoje o é. Foi-o tanto enquanto nação estritamente confinada ao seu território europeu como nação alargada a possessões coloniais ultramarinas. Mudança essencial, de «vocação» teria havido se a França, de «potência continental», em «potência marítima» se houvesse transmutado. Porém, nunca tal sucedeu. A prová-lo, se mais necessário fora, basta o modo como ingleses e franceses sempre lutaram no mar, tornando bem patente a inabilidade de uma potência continental, mesmo quando melhor armada, para lutar em tais circunstâncias com o arrojo de uma verdadeira potência marítima.

De qualquer modo, muito significativo afirmámos constituir-se tal incongruência lógica porque, de imediato, patente torna também a real incompreensão de quanto de essencial separa uma potência marítima, como Portugal e Inglaterra, de uma potência continental, como sempre o foram uma França ou mesmo, aqui mais próximo, Castela e, por extensão, Espanha.

Para compreender a necessária, indispensável e decisiva vocação marítima ou atlântica de Portugal bastará atender ao processo das lutas entre Legitimistas e Liberais. Primeira falha ou erro dos Legitimistas foi terem deixado um núcleo de combatentes acantonados na Terceira. A partir daí, aliados a, e com apoio da, Potência Marítima da época, puderam os Liberais derrotar os Legitimistas, não em terra mas no mar, quando Napier destroça e destrói, sem apelo nem agravo, ao largo do Algarve, a Armada de D. Miguel. Sem capacidade de defesa no mar, os dias dos Legitimistas ficaram inexiravelmente contados, não obstante ainda a sua superioridade em terra, não obstante o apoio popular, não obstante a fraca condição dos Liberais.

Por outro lado, para compreender as sempre nefastas consequências para Portugal de uma opção Continental, basta lembrar o disparate da participação na Guerra da Sucessão, acabando por conduzir, entre outros aspectos não menos graves, à famigerada assinatura do não menos famigerado Tratado de Methuen.

Quem «defende a vocação atlântica de Portugal logo afirma termos de ser aliados especiais dos Estados Unidos»?

Verdadeira é em parte a afirmação de Alexandre Brandão da Veiga. Mas nessa afirmação, em parte verdadeira, muita erronia e incompreensão se esconde também. Em verdade, em boa verdade, só translatamente afirma a importância de uma Aliança de Portugal com os Estados Unidos da América quem defende a Vocação Atlântica Portugal. Só translatamento o afirma porque quanto constata quem defende a Vocação Atlântica de Portugal, é a importância, crucial, de uma Aliança com a Potência Marítima. Hoje como no passado, i.e., desde que Portugal, a primeira verdadeira Potência Marítima da História, deixou de sê-lo. Por isso mesmo a importância da Aliança Inglesa. Por isso mesmo, hoje, a importância de uma Aliança com os Estados Unidos. Seja através da NATO ou seja de que forma for.

Pagámos já com língua de palmo, como em bom vernáculo soe dizer-se, tal necessidade, tais alianças? É indiscutível que sim. Todavia, não obstante tudo quanto nos custou, tudo quanto pagámos, tudo quanto perdemos, foi quanto nos permitiu continuarmos independentes. Pesada independência, sem dúvida, mas independência e independentes, apesar de tudo. E isso não deixa de ter, de ser, valor supremo .

Alexandre Brandão da Veiga defende, acima de tudo, e antes de mais, a Europa _ só depois Portugal. Defendemos, acima de tudo, e antes de mais, Portugal _ e apenas Portugal verdadeiramente defendemos, até ao limite das nossas capacidades. Por isso defendemos também a Vocação Atlântica de Portugal. Vocação que tanto menosprezo e desdém lhe merece.

Infelizmente, vitoriosa é hoje a afirmação da vocação europeia de Portugal. Infelizmente, com os resultados que a todos estão patentes, sem sofismas. Só não entende quem não quer entender, só não vê quem não quer ver, só não preocupa a quem Portugal, antes de mais e acima de tudo, não preocupa

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quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

O atlantismo português

Os que defendem a vocação atlantista de Portugal afirmam logo de seguida que temos de ser aliados especiais dos Estados Unidos. Os saltos de raciocínio que se expõem nestas afirmações apenas mostram a ignorância de lógica por parte da classe política e respectivos comentadores. Querem transformar em necessidade o que mais não é que escolha.

A vocação atlântica de Portugal é geográfica e histórica. Portugal está virado para o Atlântico. E a sua História esteve ligada ao Atlântico. Mas de forma consistente apenas para o Atlântico sul. Primeiro vício, a sinédoque. Não é todo o Atlântico que no envolveu, mas sobretudo o sul, onde deixámos colónias. Os Estados unidos não estão no Atlântico sul, ergo...

Em segundo lugar, o facto de historicamente ter havido uma vocação não quer dizer que ela exista sempre. Há inércias históricas que são muito fortes. As da mentalidade as mais fortes de todas. A razão de ser é simples. O ser humano pode mudar de lugar, mas não de cabeça. Já as inércias geográficas podem ser aproveitadas em moldes bem diversos. O mesmo Japão que esteve séculos fechado sobre si mesmo tem mais transacções durante mais de um século com o mundo ocidental que tem com os vizinhos. Portugal dá ênfase à Índia e depois ao Brasil. À França potência continental segue-se a França potência colonial. Da mesma forma, Portugal mais centrado para o seu oriente na Europa é seguido por um mais virado para o Atlântico até ir para o Oriente asiático. Onde está um país pode ser fatalidade. Para onde ele se vira, não.

Em terceiro lugar ninguém se pergunta se é do interesse dos Estados Unidos para onde se vire Portugal. Foram bem conhecidos os constrangedores episódios em que os Estados Unidos se esqueceram de sequer colocar o nome de Portugal entre os seus aliados e um triste chefe do governo se pôs de bicos de pés a dizer “eu estou aqui”. Concedamos: não se esqueceram por mal, o que é ainda mais grave, porque objectivo. Simplesmente, irrelevamos para os Estados Unidos. Se eu fosse americano também esqueceria Portugal naturalmente. Querer que o nosso principal aliado seja alguém que se esquece da nossa existência mostra algo da falta de amor-próprio de quem o afirma.

Basear uma política externa numa sinédoque mal travestida, numa fatalidade não fundamentada e aceitando ser irrelevante, eis o que nos oferecem os que se consideram atlantistas.

Daí a dizer que temos de ser inimigos dos Estados Unidos vai um grande passo. Mas só pode ser aliado quem existe e releva. Aliada dos Estados Unidos pode ser a Europa e Portugal nela. Ter a presunção de que sozinhos o podemos ser não é pôr-se em bicos de pés: é dar um salto para o oceano. Meter-se na água.






Alexandre Brandão da Veiga

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O Baile de Sócrates

Tenho especial apreço por Ricardo Costa e Nicolau Santos e mais ainda por aquilo que este último representa para o jornalismo económico no “Expresso” e no país. Logo, não há aqui lugar para divertimentos com teorias da conspiração. Mas a verdade é que os dois levaram um baile do Primeiro-ministro na entrevista de segunda-feira passada. Esse baile podia ter acontecido a si ou a mim e resultou simplesmente do facto de que Sócrates era o mais preparado do grupo. E o “amaciamento” dos entrevistadores a partir de certa altura deveu-se ao facto de eles terem inteligentemente reconhecido a desvantagem, algo onde – perdoe-se-me o eventual machismo – as entrevistadoras femininas mais dificilmente cedem (isto dos blogs é óptimo porque até a psicologia barata nos permitimos).

A impressão com que fiquei da entrevista é que Sócrates está bem preparado para os temas da governação porque é com isso que mais gasta o seu tempo: preparar-se. A impressão que dá é que delega competências e tarefas aos seus ministros e “ajudantes”, concentrando-se na organização do funcionamento do governo, na obtenção de resultados e na sua análise e interpretação. E isto fá-lo com algum saber, como se fosse um CEO de um empresa.

Estas coisas mostram-se melhor com um exemplo. Um dos entrevistadores arrancou com a pergunta segundo a qual o governo queria criar 150 mil postos de trabalho mas nos últimos anos tinham desaparecido uma ou duas dezenas de milhar. Nada disso, retorquiu Sócrates: nos últimos anos foram criados 90 e tal mil postos de trabalho, acrescentando, com grande prazer, “líquidos”. Isto é certo e é um dado de polichinelo. Os entrevistadores enfraqueceram e tentaram emendar a mão mas foi tarde e mote estava dado.

Quem sabe menos que o Primeiro ministro pode todavia ainda confrontá-lo com os pressupostos em que o mesmo está envolvido e onde a sua defesa será mais fraca. No caso acima mencionado a pergunta seguinte deveria obviamente ser: "Mas, senhor Primeiro-ministro, em que é que se baseia para atribuir a criação desses postos de trabalho à acção do seu governo?" É que Sócrates está a conseguir fazer passar a mensagem de que tudo o que acontece de bom se deve ao governo e que tudo que acontece de mau se deve à pesada herança que recebeu do PSD e do PP.

Sócrates parece um daqueles alunos que se esforçam todos os dias para serem os melhores da turma e que ficam furiosos quando recebem um 13. Na entrevista de segunda-feira recebeu seguramente um 15 (o 16 ainda está reservado só a Cavaco).

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terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Vamos continuar a meter água

Estou nesta altura a reler a Relectio de indis (1539), na qual Francisco de Vitória, fazendo a defesa dos indíos das Américas, afirma que estes têm, ex natura rei, direitos iguais aos de todos os homens, facto pelo qual o padre dominicano é hoje muito justamente considerado um dos fundadores dos direitos humanos e do direito internacional.
Na primeira parte deste livro, a propósito da conquista das Américas – a qual, sendo um facto, pareceria, talvez, inútil discutir –, Vitória diz que para que essa acção seja boa (como certamente o é, em vista das pessoas que a determinaram, nomeadamente os cristianíssimos soberanos Isabel e Fernando e o justíssimo e religiosíssimo imperador Carlos V), deve ter sido levada a cabo por pessoas com competência para tal – isto é, responsáveis –, pelo que, quer em vista das suas consciências, quer em visto da autoridade que representam, importa discutir a bondade dessas acções.
É o que faz neste – e noutros – livros, onde, sem comprometer a conquista e o progresso da humanidade, reconhece o direito natural dos índios à sua soberania tanto política quanto religiosa.
E se a intervenção de Carlos V, que, na altura, indignado, ordenou o seu silêncio, poderia parecer destinada a calar essa inicial defesa da dignidade da natureza humana, o facto é que quando os motivos são justos conseguimos mover montanhas, como mostra o facto de, poucos anos depois, na famosa Junta de Valladolid (1550-1551), o mesmo imperador ter ordenado a interrupção das conquistas até que a questão da sua legitimidade fosse resolvida na disputa aí entretida entre Bartolomeu de las Casas (defensor dos direitos dos índios) e Juan Ginés de Sepúlveda (defensor dos direitos da conquista).
É um facto extraordinário que a história teima em esquecer. E eu aqui apenas incidentalmente o lembro, para introduzir o tema que quero tratar. Não deixa de ser fantástico, porém, lembrar que tudo isto se passou aqui, nesta espanhola e portuguesa península onde responsavelmente se inaugurava um novo mundo.

Pouco mais de 500 anos depois, de facto, na área metropolitana de Lisboa, cairam umas fortes chuvadas, seguidas de inundações e de cheias, que mostraram a grande fragilidade das nossas cidades, resultando mesmo na morte de algumas pessoas. O que aqui quero notar, contrastando-o com aquilo que é expresso no texto de Vitória, é a atitude dos nossos governantes perante os acontecimentos que surgem importantes na vida do seu país.
O ministro do Ambiente, em primeiro lugar, prontamente afirmou que só uma peritagem poderia apurar as razões das consequências das cheias. Quanto ao resultado dessa peritagem, porém, e certamente melhor informado do que nós, imediatamente antecipou que, sendo as infra-estruturas urbanas uma competência autárquica, a responsabilidade do que aconteceu de nenhum modo pode ser imputada ao seu governo, sendo obviamente das autarquias.
O raciocínio, como veremos, é brilhante, pois, apesar de parecer muito contestado por todos os outros intervenientes, é liminarmente seguido por todos eles, assim se conseguindo atingir o objectivo que forçosamente lhes é comum, a saber: a total desresponsabilização de todos os governantes.
Se não vejamos. Os autarcas, na verdade, indignaram-se. Mas porquê? Porque morreram algumas pessoas nos seus concelhos? Pelo caos que nas suas cidades se instalou? Pelo estado de degradação das obras públicas? Não. Por causa das palavras do do Senhor Ministro, a partir das quais decidiram manifestar-se publicamente, falando todo o dia nas rádios e participando à noite naquela série da televisão que entretém diariamente os portugueses, chamada telejornal. E o que disseram? Já o vimos. No fundo, o mesmo que o Senhor Ministro: eu não sou responsável!
O Senhor Presidente da Câmara de Loures disse que o Senhor Ministro é um ignorante. A Senhora Presidente da Câmara de Setúbal que as suas afirmações são vergonhosas. O Senhor Presidente da Associação Nacional de Municípios que o Senhor Ministro deu um tiro no pé. E todos estavam de acordo que a culpa era do Senhor Ministro.
O Senhor Presidente da Câmara de Sintra mandou negar categoricamente qualquer responsabilidade da sua autarquia, não querendo, porém, adiantar mais nada, por não querer envolver-se em polémicas com o Senhor Ministro.
O Senhor Presidente da Câmara de Oeiras, mais prudente, disse que os Municípios não são responsáveis pelos acontecimentos, embora, em rigor, também o Ministério do Ambiente não o seja. Porém, se o Instituto da Água tivesse feito atempadamente o seu trabalho no que diz respeito ao ao alargamento do leito da ribeira de Algés, talvez muita coisa se pudesse ter evitado.
A Câmara de Lisboa, pela voz do seu Vice-Presidente, dá mesmo razão ao Senhor Ministro, assumindo inteiramente toda a responsabilidade dos factos decorrentes das cheias. Esclarece, no entanto, que essas mesmas responsabilidades são absolutamente alheias ao actual executivo, devendo ser inteiramente imputadas aos executivos anteriores, com excepção, talvez, para o trabalho que, em tempos, desenvolveram os vereadores do PCP na área do saneamento.
A Senhora Vereadora do movimento cidadãos por Lisboa, por fim, radicalizando a tese do Partido Socialista, esclarece que a culpa, no fundo, é de todos.
Tudo espremido ficamos com um único responsável por esta catástrofe, apontado, há que dizê-lo, pelo Senhor Presidente da Câmara de Oeiras e pelo Senhor Presidente da Câmara de Loures: a natureza, que, segundo disseram, voltou ontem a mostrar toda a sua força.
Contra este argumento, porém, surge a voz voluntariosa dos ambientalistas, que, afirmando que a construção desenfreada nos leitos de cheia dos rios resulta na impermeabilização do solo e, consequentemente, em cheias como as de ontem, responsabilizam por esta tragédia não a natureza, mas os seres humanos, nomeadamente aqueles que promovem a especulação imobiliária a mando dos interesses do capital.
E nós até estaríamos tentados a acreditar nestes bons homens, defensores da natureza, amigos dos pinguins e primos dos activistas do greanpeace, se eles, de facto, nos dissessem que o responsável deste mal é um agente moral – e não físico. Mas temos que ficar desconfiados quando nos dizem, afinal, que o responsável é um agente económico.
De facto, porque é que um partido do ambiente há-de ser de esquerda? E, já agora, porque é que há de ser um partido? Não deveria o ambiente ser defendido por todos os partidos? E será mesmo verdade que as pessoas de direita são ricas e capitalistas que querem fazer mal ao ambiente e as de esquerda são pobres e, digamos assim, cristãs, estando dispostas a tudo para preservar a criação? Não sei. Mas desconfio sempre daqueles que, na sua obstinação idealista, reduzem tudo a um mesmo princípio com o qual indiferentemente explicam toda a realidade, seja a seca no Verão ou a chuva no Inverno.

E posto isto, nós, que neste país existimos e andamos à chuva e queremos viver sossegados... que aqui nascemos e crescemos e até pagamos impostos... perguntamo-nos: Podemos estar sossegados? Podemos confiar em quem nos governa? Estamos, de facto, seguros? A degradação generalizada do nosso espaço público, afinal, não é só o fruto da incipiência da nossa economia, mas o reflexo da ruína das nossas instituições? É a chuva que, em Portugal, quando nasce, é para todos? A resposta, meus amigos, é o silêncio, ou o barulho que não se eleva a voz humana. Porque não há hoje, em Portugal, um D. João, ou um D. Manuel, uns reis Fernando e Isabel, ou um Carlos, imperador, que nos oiçam e nos mandem calar; que nos oiçam e nos mandem falar; que decidam e que nos falem. Não. Nos nossos políticos, infelizmente, não há ordem. Há apenas confusão.

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segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Tesourinhos deprimentes

Portugal no seu melhor - in Anjos e Demónios


1 - O Presidente do Vitória de Guimarães anunciou hoje que vai processar a Polícia de Segurança Pública que, horas antes, anunciou em comunicado a intenção de processar ... o Presidente do Vitória de Guimarães. Pelo caminho Emílio Macedo foi dizendo que o treinador do Nacional da Madeira devia ser «radiado» (sic) do futebol português.



2 - Um conjunto de autarcas da zona da Ota exigiu ao governo um pacote de «medidas de compensação» que visam minorar os efeitos da construção do aeroporto em Alcochete. Ao que adianta a TSF, entre estas medidas contam-se a construção de dois hospitais e cinco centros de saúde (!).



Com um país assim quem é que precisa dos Gato Fedorento?

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domingo, 17 de fevereiro de 2008

Fazer coisas belas a mulheres belas

Li com interesse e gosto as inteligentes (como sempre) considerações do João Luis Ferreira sobre o cinema. Mas não encontrei lá o cinema. Vi que havia uma bem arquitectada teoria que se basta a si própria (Não sei se o João está de acordo, mas há também uma “indústria da teoria”...), sem precisar dos filmes.
Para mim, os filmes são o cinema. Não deixo, ainda assim, de ter uma teoria. Em boa verdade emprestada por Truffaut: “O cinema é fazer coisas belas a mulheres belas.” É esta a teoria.
Enumero algumas provas de indesmentível carácter científico: a trémula e ingénua Lilian Gish do “Lírio Quebrado” de Griffith; o calor torrencial da dança de Rita Hayworth na “Gilda” de Charles Vidor; o amor obsceno e metafísico de Gene Tierney pelo fantasma de Manckiewicz; o obscuro objecto do desejo que Buñuel descobriu em Carole Bouquet; a involuntária sexualidade de Marylin no “Pecado Mora ao Lado” de Billy Wilder; a luz intensa e mágica do olhar de Elizabeth Taylor em “Um Lugar ao Sol”; os lancinantes pedidos de socorro de Natalie Wood em “Esplendor na Relva”; os shorts brancos de Jean Seberg em “Bonjour Tristesse”. A Monica Vitti de Antonioni, a Fanny Ardant de Truffaut, a Karina de Godard, a Liv Ullman de Bergman, a Loren de De Sica, a Nastassia Kinski de "Tess" e "Do Fundo do Coração", a Grace Kelly da "Janela Indiscreta". Todas as estrelas que os produtores amaram. O rosto, o corpo, os seios, as ancas de Ava Gardner, ponto final.

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A América de Peixoto

O sucesso de José Luis Peixoto é o nosso sucesso. Com contactos e contratos, uma passagem pela Bloomsbury, uma edição do gigante Random House, a temporada de 2008 em digressão pelos Estados Unidos, críticas internacionais muito favoráveis, publicação em mais de uma dezena de países, o início da carreira norte-americana de José Luis Peixoto deveria deixar todos os que escrevem, e todos os que gostam da palavra escrita, satisfeitos. O gosto pelos labirintos e cumplicidades específicas à prosa e poesia deste autor é, no momento, secundário - confesso, aliás, que conheço mal ambas. Mas alguém que dedicou metade de uma vida de 33 anos a lutar pelo que acredita - viver pela escrita e, mais difícil, viver dela - deve ser celebrado num país difícil onde o pesar mais comum é a dor de cotovelo.

Nada há mais distante de mim do que os piercings, as tatuagens, a santa despida por palavras numa língua remota - o finlandês -, a pátria literária de Faulkner macerada na pele. São os versos secretos e o rosto público do homem José Luis Peixoto, e ambos inspiram o respeito próprio a qualquer versejar secreto e a qualquer identidade pública. Mas há nos olhos dele um sentido de confiante optimismo, de esperança artística e humana, que deveria ser marca de água de qualquer criador. O facto de este ser português, e de se aventurar no grande mito ocidental contemporâneo - a América - põe-me orgulhoso. E, claro, com dor de cotovelo.

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Pentimento: "Haverá Sangue", de Paul Thomas Anderson

As primeiras imagens são magníficas: um homem, os músculos, fibras, ossos, veias de um homem, confundem-se com a rocha, a lama, o cascalho, fundem-se com a terra, nascem dela e combatem-na logo, na força e no mistério dos primitivos: Griffith muito, Walsh, mas também Murnau, numa terra de ninguém onde pode surgir uma planta viçosa, mas tudo é ainda improvável. Daniel-Day Lewis está enfiado num túnel que ele próprio escavou, à procura do futuro: o petróleo. É o melhor arranque deste ano.

A seguir parte uma perna, arrasta-se (elipticamente) por vales e colinas de pedra, regista o esforço, do buraco no chão faz nascer uma plataforma, da plataforma tira um lago negro e uma criança orfã, da criança tira a simpatia dos pequenos proprietários e capatazes que vai enganando, destes arranca a localização de investimentos futuros, de um deles conquista a informação de um jazigo poderoso, e chega à terra de ninguém, carro movido pelo que arranca das profundezas, num deserto que será, cem anos depois, a mais próspera região do planeta: a Califórnia. São 20 minutos de uma intensidade surda, como um terramoto prestes a levar tudo e todos, um cinema telúrico, por vezes visceral, sem palavras, só pancadas braçais, consentimentos entre homens de vida precária e fidelidade inquestionável, eles e a rocha, e a lama, e o cascalho do princípio, e no princípio de tudo. Aqui, nestes 20 minutos, Paul Thomas Anderson compreende Hawks e Welles, mas sem a delicadeza dissimulada do primeiro e as tentações estéticas do segundo, funde-se com o King Vidor de "O Pão Nosso de Cada Dia" mas recusa todo o juízo moral, e confirma-se um talento à altura dos grandes, sem paralelo na sua geração (Terrence Malick é um poeta, não é um prosador como Anderson, e tem mais 25 anos).
Depois, bem, depois chegam os problemas (esse tipo de problemas, Hawks resolveria-os; Welles não, que era demasiado disperso para as argamassas narrativas).
P. T. Anderson, como os artífices visionários que cegam com a intensidade da sua visão, não sabe transformar o imenso poder das suas imagens de suor, sal e sangue na poeira, e vai perdendo - como uma fonte que seca lentamente, ao ritmo de um balde por dia - o sentido narrativo do seu imenso cometimento: quando damos por ela, o que há para contar não é tão importante como o que há para sentir, e o protagonista - a personagem de Lewis, esse pioneiro de mãos nuas, auto-criado do nada - muda de natureza, que é a pior coisa que pode acontecer a uma personagem.
Apesar da ambição, apesar da cegueira, apesar da rudeza, a personagem de Daniel Day-Lewis é um homem suficientemente simples (no que a simplicidade tem de mais nobre) e compassivo para submeter a sua voracidade e a sua inteligência à preocupação pelos seus ajudantes, a um mínimo sentido comunitário e, sobretudo, a um amor crescente e inexpugnável pelo filho adoptivo, cujo pai morrera nas entranhas da terra. Mas, de súbito, pelo diálogo - é uma conversa entre Lewis e um "irmão" recém-chegado - descobrimos que a sua natureza é mais deslocada de um sentido mínimo de humanidade do que as acções da personagem sugeriram até então. E o filme descamba. Devido a um acidente com o filho - cujas consequências na relação entre os dois, são apesar de tudo, recuperáveis -, o man of oil de Lewis transforma-se num man of hate: tudo abomina, tudo devora, matando e pilhando por uma raiva que a primeira metade do filme nunca justificou inteiramente. Resultado: as imagens - sobretudo as do primeiro acto - são tão impressionantes e indeléveis como algumas imagens de "Greed" de Von Stroheim. O filme, esse, termina em farsa, como um poço abandonado do qual não sai nem mais uma gota. A culpa? É do argumentista (chama-se Paul Thomas Anderson).

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sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Cinema como pós-Arte (2)

O cinema é uma arte que surge num tempo em que todas as outras artes tinham já atingido os seus apogeus e as suas renascenças, os seus declínios e novos apogeus. O cinema não seria preciso para a expressão do espírito humano.

Mas surgiu, como já referimos, numa forma inicialmente não artística à qual se foram acrescentando possibilidades expressivas e artísticas (como também já referimos, por empréstimo das outras artes) até que adquiriu uma expressão própria. Ao atingir essa expressão própria, o cinema, seja o de autor, ou seja o chamado cinema comercial, é um resultado de uma máquina de produção que tem na indústria a sua classificação. A crueldade da indústria revelou-se em muitos momentos. Revelou-se cruel para os autores que regimes políticos condicionaram ou silenciaram, revelou-se cruel para os autores cujos filmes foram falhanços comerciais (E. von Stroheim, P. Bogdanovich, M. Cimino). Ou seja, o controle da indústria em que o cinema se insere silenciou, perverteu ou dispensou autores por razões políticas ou comerciais. Por ser uma indústria o cinema cria uma série de dependências que vão da produção à distribuição da crítica ou merchandising, que enfraquecem ou esvaziam o seu sentido artístico.
Numa perspectiva certamente controversa e provocatória afirmamos que o cinema veio contaminar e alterar as condições da arte e é mesmo o paradigma do modo como toda a arte hoje se afirma. Um paradigma que esvazia a arte das suas formas de afirmação e as faz incorrer e singrar no seu processo industrial. Ou seja, apanhando a boleia do que se chamava arte o cinema veio afirmando-se como arte subvertendo o conceito de arte e fazendo as artes transfigurarem-se para o seu paradigma de afirmação. O cinema é a arte do fim da arte, uma pós-Arte, uma produção que vem substituir o vazio que criou. Dizemos vazio que criou, porque a arte deixou de ser uma actividade diferenciadora, centrada na genialidade de seres excepcionais para se constituir, também, numa indústria que forma e recruta pessoal para alimentar um mercado gerado para escoar os seus produtos, que deles não carece verdadeiramente mas apenas por uma necessidade induzida por potentes meios de publicitação e propaganda que ocupam um lugar desde sempre legitimado por uma necessidade de progresso e renovação.
Todo o encorajamento da arte levou à proliferação de escolas, bolsas e prémios, onde enormes quantidades de neófitos são chamados a singrar como artistas, sem que muitos deles não tenham mais do que um simples jeito mas o qual é ampliado por galeristas, editores, críticos e curadores até ao estrelato que convém ao mercado de arte. Deixou de importar a arte em si e passou a importar a sua legitimação. O monstro chama-se indústria. O carrasco também.
Se juntarmos pose (imagem de um estereotipo), ambiente (social) e indústria (economia) verificamos que a arte que se fina ressurge num paradigma de estética industrial. O cinema é a arte cuja industrialização serve de paradigma a todas as outras artes. Como o cinema, todas tiveram de passar a existir dentro das finalidades da indústria. É nesse sentido que o cinema é o mote da nova forma de toda a arte ou do seu fim. Não há sinceridade que resista a uma indústria. Primeiro porque o público é substituído pelo consumidor. Depois, porque o artista, que carece sempre do seu público, não tem onde se espelhar. Sem artista e sem público a arte decai numa forma de consumo pelas piores razões. Assim a arte, ou serve para validar ideias e não é livre mas meio de propaganda; ou é para decorar sentimentos e não é autêntica mas frívola.
O surgimento do cinema no final do século XIX pelo processo de registo que se desenvolveu não veio anunciar uma nova forma de arte mas aquela forma de arte que iria influenciar, condicionar e substituir as artes que sempre existiram. Os novos processos artísticos aportados pelo cinema tornam obsoletos os processos tradicionais da criação artística. Um equivalente ao processo aportado por uma debulhadora de trigo que faz logo a separação do joio por comparação ao trabalho manual com que desde sempre se fez a respectiva colheita.
O cinema é uma equipa de intermediários: um escreve, outro adapta, outro contrata, outro realiza, outro monta, outro paga, outro dirige actores, outro faz a fotografia, outro decora a cena, outros representam, outros figuram, enfim é uma produção. O mercado da arte é também uma vasta equipa numa linha de montagem onde tudo está programado sendo o artista o elo mais fraco porque é apenas uma peça num certo momento e num certo lugar. Se o artista fosse legitimado pelo seu valor intrínseco o tempo da sua afirmação não dependia de um golpe de sorte mas de uma consistência reconhecida em dado momento. Era o artista que se afirmava. Era um público que o reconhecia. Porém, hoje em dia não é assim porque quem legitima o artista é a própria indústria da arte (não deve haver expressões que mais se oponham — arte e indústria). O artista é apenas uma peça no sistema e o sistema tem de produzir, com a mesma urgência que as colecções da moda, ao ritmo das grandes feiras, mostras, bienais e trienais. A própria existência de um promíscuo sistema legitimador dos artistas e das obras perverte o objecto de procura e afirmação individual do artista. O artista se quer ter o reconhecimento do sistema tem de adequar a sua agenda à agenda do sistema.
Mesmo assim, todos pensamos que apesar de todas as manipulações, condicionantes e injustiças, a arte ressurgirá sempre e o tempo será o seu grande definitivo legitimador depois de assente a poeira dos dias e dos interesses imediatos. Podemos até, no fundo, pensar que será assim, porque em todos os tempos houve esquemas, desvios, injustiças, etc... Mas o que não houve noutros tempos foi a industrialização da arte. E essa industrialização não existe com mercados paralelos que a possam por em causa. A indústria só se satisfaz com a total absorção da cota potencial de mercado. As artes estão por isso reduzidas às mesmas limitações do cinema: na sua produção, no seu objectivo e na sua venda. Tornadas áreas de uma indústria as artes morrem. Morrem no seu valor e interesse genuínos. Transformam-se naquilo a que o cinema não foi capaz de resistir: numa indústria.


Improviso no Deserto in Alegria do Mundo I, escritos dos anos de 1965 a 1969 deAgustina Bessa-Luís, Guimarães Editores, Lisboa, 1996, pág. 38
Alberto Sartoris, Introduzione alla architettura moderna, Editore Ulrico Hoepli Milano, 1949, pág.23

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