Vamos continuar a meter água
Estou nesta altura a reler a Relectio de indis (1539), na qual Francisco de Vitória, fazendo a defesa dos indíos das Américas, afirma que estes têm, ex natura rei, direitos iguais aos de todos os homens, facto pelo qual o padre dominicano é hoje muito justamente considerado um dos fundadores dos direitos humanos e do direito internacional.
Na primeira parte deste livro, a propósito da conquista das Américas – a qual, sendo um facto, pareceria, talvez, inútil discutir –, Vitória diz que para que essa acção seja boa (como certamente o é, em vista das pessoas que a determinaram, nomeadamente os cristianíssimos soberanos Isabel e Fernando e o justíssimo e religiosíssimo imperador Carlos V), deve ter sido levada a cabo por pessoas com competência para tal – isto é, responsáveis –, pelo que, quer em vista das suas consciências, quer em visto da autoridade que representam, importa discutir a bondade dessas acções.
É o que faz neste – e noutros – livros, onde, sem comprometer a conquista e o progresso da humanidade, reconhece o direito natural dos índios à sua soberania tanto política quanto religiosa.
E se a intervenção de Carlos V, que, na altura, indignado, ordenou o seu silêncio, poderia parecer destinada a calar essa inicial defesa da dignidade da natureza humana, o facto é que quando os motivos são justos conseguimos mover montanhas, como mostra o facto de, poucos anos depois, na famosa Junta de Valladolid (1550-1551), o mesmo imperador ter ordenado a interrupção das conquistas até que a questão da sua legitimidade fosse resolvida na disputa aí entretida entre Bartolomeu de las Casas (defensor dos direitos dos índios) e Juan Ginés de Sepúlveda (defensor dos direitos da conquista).
É um facto extraordinário que a história teima em esquecer. E eu aqui apenas incidentalmente o lembro, para introduzir o tema que quero tratar. Não deixa de ser fantástico, porém, lembrar que tudo isto se passou aqui, nesta espanhola e portuguesa península onde responsavelmente se inaugurava um novo mundo.
Pouco mais de 500 anos depois, de facto, na área metropolitana de Lisboa, cairam umas fortes chuvadas, seguidas de inundações e de cheias, que mostraram a grande fragilidade das nossas cidades, resultando mesmo na morte de algumas pessoas. O que aqui quero notar, contrastando-o com aquilo que é expresso no texto de Vitória, é a atitude dos nossos governantes perante os acontecimentos que surgem importantes na vida do seu país.
O ministro do Ambiente, em primeiro lugar, prontamente afirmou que só uma peritagem poderia apurar as razões das consequências das cheias. Quanto ao resultado dessa peritagem, porém, e certamente melhor informado do que nós, imediatamente antecipou que, sendo as infra-estruturas urbanas uma competência autárquica, a responsabilidade do que aconteceu de nenhum modo pode ser imputada ao seu governo, sendo obviamente das autarquias.
O raciocínio, como veremos, é brilhante, pois, apesar de parecer muito contestado por todos os outros intervenientes, é liminarmente seguido por todos eles, assim se conseguindo atingir o objectivo que forçosamente lhes é comum, a saber: a total desresponsabilização de todos os governantes.
Se não vejamos. Os autarcas, na verdade, indignaram-se. Mas porquê? Porque morreram algumas pessoas nos seus concelhos? Pelo caos que nas suas cidades se instalou? Pelo estado de degradação das obras públicas? Não. Por causa das palavras do do Senhor Ministro, a partir das quais decidiram manifestar-se publicamente, falando todo o dia nas rádios e participando à noite naquela série da televisão que entretém diariamente os portugueses, chamada telejornal. E o que disseram? Já o vimos. No fundo, o mesmo que o Senhor Ministro: eu não sou responsável!
O Senhor Presidente da Câmara de Loures disse que o Senhor Ministro é um ignorante. A Senhora Presidente da Câmara de Setúbal que as suas afirmações são vergonhosas. O Senhor Presidente da Associação Nacional de Municípios que o Senhor Ministro deu um tiro no pé. E todos estavam de acordo que a culpa era do Senhor Ministro.
O Senhor Presidente da Câmara de Sintra mandou negar categoricamente qualquer responsabilidade da sua autarquia, não querendo, porém, adiantar mais nada, por não querer envolver-se em polémicas com o Senhor Ministro.
O Senhor Presidente da Câmara de Oeiras, mais prudente, disse que os Municípios não são responsáveis pelos acontecimentos, embora, em rigor, também o Ministério do Ambiente não o seja. Porém, se o Instituto da Água tivesse feito atempadamente o seu trabalho no que diz respeito ao ao alargamento do leito da ribeira de Algés, talvez muita coisa se pudesse ter evitado.
A Câmara de Lisboa, pela voz do seu Vice-Presidente, dá mesmo razão ao Senhor Ministro, assumindo inteiramente toda a responsabilidade dos factos decorrentes das cheias. Esclarece, no entanto, que essas mesmas responsabilidades são absolutamente alheias ao actual executivo, devendo ser inteiramente imputadas aos executivos anteriores, com excepção, talvez, para o trabalho que, em tempos, desenvolveram os vereadores do PCP na área do saneamento.
A Senhora Vereadora do movimento cidadãos por Lisboa, por fim, radicalizando a tese do Partido Socialista, esclarece que a culpa, no fundo, é de todos.
Tudo espremido ficamos com um único responsável por esta catástrofe, apontado, há que dizê-lo, pelo Senhor Presidente da Câmara de Oeiras e pelo Senhor Presidente da Câmara de Loures: a natureza, que, segundo disseram, voltou ontem a mostrar toda a sua força.
Contra este argumento, porém, surge a voz voluntariosa dos ambientalistas, que, afirmando que a construção desenfreada nos leitos de cheia dos rios resulta na impermeabilização do solo e, consequentemente, em cheias como as de ontem, responsabilizam por esta tragédia não a natureza, mas os seres humanos, nomeadamente aqueles que promovem a especulação imobiliária a mando dos interesses do capital.
E nós até estaríamos tentados a acreditar nestes bons homens, defensores da natureza, amigos dos pinguins e primos dos activistas do greanpeace, se eles, de facto, nos dissessem que o responsável deste mal é um agente moral – e não físico. Mas temos que ficar desconfiados quando nos dizem, afinal, que o responsável é um agente económico.
De facto, porque é que um partido do ambiente há-de ser de esquerda? E, já agora, porque é que há de ser um partido? Não deveria o ambiente ser defendido por todos os partidos? E será mesmo verdade que as pessoas de direita são ricas e capitalistas que querem fazer mal ao ambiente e as de esquerda são pobres e, digamos assim, cristãs, estando dispostas a tudo para preservar a criação? Não sei. Mas desconfio sempre daqueles que, na sua obstinação idealista, reduzem tudo a um mesmo princípio com o qual indiferentemente explicam toda a realidade, seja a seca no Verão ou a chuva no Inverno.
E posto isto, nós, que neste país existimos e andamos à chuva e queremos viver sossegados... que aqui nascemos e crescemos e até pagamos impostos... perguntamo-nos: Podemos estar sossegados? Podemos confiar em quem nos governa? Estamos, de facto, seguros? A degradação generalizada do nosso espaço público, afinal, não é só o fruto da incipiência da nossa economia, mas o reflexo da ruína das nossas instituições? É a chuva que, em Portugal, quando nasce, é para todos? A resposta, meus amigos, é o silêncio, ou o barulho que não se eleva a voz humana. Porque não há hoje, em Portugal, um D. João, ou um D. Manuel, uns reis Fernando e Isabel, ou um Carlos, imperador, que nos oiçam e nos mandem calar; que nos oiçam e nos mandem falar; que decidam e que nos falem. Não. Nos nossos políticos, infelizmente, não há ordem. Há apenas confusão.
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