terça-feira, 31 de dezembro de 2013

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Para que serve a tradição?

Como de costume apanho no espaço público frases que dizem muito mais que algum dia o seu locutor poderia imaginar. Uma adorável criatura com perfil de maçaneta, deputada nas suas horas, afirma: «Não gosto de tradições». Do que ela não gosta serve-lhe de critério para a vida, mas julga – temerário da sua parte – que tem de ser critério para a dos outros.
 
No que me respeita, nunca respeitei uma tradição apenas por o ser. Há tradições repugnantes, selváticas, medíocres. Nada na vida humana é destituído de grandeza, nada de degradação.
 
O que a pobre criatura, que em tempos defendeu que os chouriços pendurados eram uma tradição, tal como os crucifixos (o que ela associa a pendurezas diz algo das suas carências), não percebeu é que a tradição é algo de inelutável e, mesmo, para nosso contragosto, de positivo.
 
Vejamos.
 
«Fgtghhdjlan gdfdf ghhts nmmf». Ficou confortado o leitor com tal frase? Porque não? Talvez não a perceba? Pensemos porquê... Exactamente. Porque não se encontra na nossa tradição comum. Criei uma linguagem só minha e por isso nada do que digo é percebido pelo meu interlocutor. Sem tradição comum não é possível comunicação. Afinal, um infante português que fosse atirado para a China seria um fluente falante de chinês e nada saberia de português. Que mudou? Foi imerso numa tradição diversa.
 
Primeira conclusão, portanto: sem tradição não é possível comunicação.
 
Mas vamos mais longe. A pobre coitada usa telemóvel, computadores, vai à televisão (bem sei, o nível de acessos não é muito exigente). Não gosta de tradições? Então que não use nenhum destes meios técnicos, porque estes resultam de uma tradição milenar europeia de matemática, física, engenharia... Use o seu corpinho sempre que quiser transmitir uma mensagem e gargareje. Ande a pé, não use transportes, abdique de todos os meios técnicos, deixe de viver numa casa, e passe a viver nua (longe de nós para não sofremos do horror).
 
Segunda conclusão: a deputada em causa tem de usar as suas pernas e andar em pelota – para nosso horror.
 
Mas a verdade que que os conceitos que usa, mesmo que em modo menor, resultam de milhares de anos de pensamento, filosofia e teologia europeus. A ideia de contradição, de antecedentes, de causa e efeito, de congruência, de conceito, de conclusão... Nenhuma das ideias é tão óbvia quanto nos aparece. Muitas delas levaram milénios a estabelecer-se. Quando vemos a forma de pensar de Homero (e bem sabemos que o senhor – ou senhores – estava bem longe de ser burro) bem vemos como, mais que os seus valores, a sua forma de discursar sobre o mundo é muito distante da nossa. A sua tradução existe desdobramentos e contorções do discurso para que pelo menos algo do que ele disse nos seja perceptível.
 
Terceira conclusão. A nossa deputada que não gosta de tradições nada quer a ver com um discurso coerente e estruturado transmitindo um significado.
 
Lembro mais uma vez. Se há pessoa que se agasta com tradições só porque o são sou eu. Talvez por as conhecer melhor que a senhora deputada, bem sei dos seus podres (dos das tradições e dos da deputada, feliz anfibologia). Mas por isso mesmo sei como são inevitáveis indispensáveis e o que lhes devo.
 
A senhora deputada mostra em suma – sejamos conclusivos – que não quer comunicar, que apenas usa as suas pernas e se nos apresenta em pelota e que nada do que diz tem significado. Nova Eva primordial, teria sido destino bem diverso o da humanidade fora ela a original. Adão não a teria tocado, e teríamos um futuro sem pecado original, mas também sem humanidade.
 
Alexandre Brandão da Veiga

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terça-feira, 10 de dezembro de 2013

A insignificância de um gesto tardio

Voltei a Cuba 22 anos depois. Tinha lá estado durante três semanas numa reportagem sobre a oposição a Fidel, dentro da ilha. Levara uma mala cheia de literatura anti-castro e uma lista de cubanos bravos e teimosos que não desistiam da democracia improvável.


Nesse tempo, secavam as verbas da União Soviética e o embargo dos Estados Unidos apertava a níveis que pareciam insustentáveis. O Regime racionava comida e combustível. E defendia as bandeiras da educação, da saúde e da independência como cantil para a travessia no deserto a que chamava «período especial». A Igreja passava a ser tolerada pela obra social e abria-se o caminho para o turismo. Mas sem infecções capitalistas para o Povo.

À saída do avião, fui recebida por um bafo de ar quente e um soldado forrado de armamento. Fiquei no Havana Livre, o quartel de Fidel na Revolução de 1959 e andei pelas casas dos cubanos mais ilustres e desfavorecidos. A reportagem foi capa e conteúdo de toda a revista de O Independente. Estávamos em 1991 e, a par da falência do sistema comunista, havia combate político.

Agora o tempo estava mais ameno e quem me esperava à saída do avião era um grupo de funcionários solícito que apenas quis ver o passaporte, sem carimbar. O Havana Livre foi remodelado e, do tempo da revolução, sobra apenas uma parede com imagens dos soldados sentados no chão com um desenho dos anos 50, entretanto apagado. Um desconsolo.

Há itinerários e praças de Havana recuperados mas a mancha do Património Mundial permanece em pré-ruína. Nos resorts toca-se agora, sem pudor, a música/hino dos dissidentes de Miami: «Quando sali de Cuba, dejé mi vida, dejé mi amor; quando sali de Cuba dejé enterado mi coraçón». Com a mesma indiferença, o homem do táxi leva no rectrovisor um tira-cheiros com a bandeira dos EUA. «Não faz mal?», pergunto. «Ninguém liga», responde. As ruas enchem-se de canadianos, russos e chineses. O Floridita já não é intransponível pelo preço. Nem o dólar e o consumo, para os da terra. Estão autorizados restaurantes privados que usam palácios a cair como cenário de luxo. Há mais carros novos e as velhas «banheiras», que então tinham 30 anos, parecem funcionar melhor com 50, como se fossem mulheres bem recauchutadas. O Turismo massificado mina a politização do Povo. Torna a ditadura e o embargo numa brincadeira dolorosa de gigantes agastados. E faz de Cuba apenas uma peça de leilão na geo-competição do turismo.

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sábado, 7 de dezembro de 2013

MANDELA 1992


Foi há 21 anos. Mandela tinha sido libertado mas não eleito. No terreno, travava-se uma nova batalha: entre pretos do Inkata, do ANC e outros. A Mulher de Mandela estava acusada de instigar à violência, de raptar e espancar adolescentes desavindos com a sua causa. Também falei com ela. Triunfalista. Sem fixar o olhar. O seu coração já não estava com Mandela.Tirando um punhado de Boers, que treinava a autodefesa num deserto perto da Namíbia, os brancos opressores passavam agora por ser o seguro de vida para uma gente que não tinha condições para se entender. Afinal, a África do Sul sempre foi uma colecção de tribos guerreiras que ali coincidiu. Afinal, para que servia a libertação de Mandela? Nem a anterior decisão de recusar a libertação condicionalmente exigiu tanto de um líder como este período do início da década de 90. E aqui só Mandela pôde valer. Como? Impôs perdão na vingança; verdade, na reconciliação e determinação numa agenda contaminada por violência de origem difusa. Uniu com o voto, o desporto e o exemplo do seu sorriso. Bem haja. 

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