segunda-feira, 1 de junho de 2020

Eu e sim






Lembro-me que quando aprendi alguma coisa de gramática polaca o meu professor ficava muito espantado porque «sim» em polaco era «tak», mas os bons dos polacos quando queriam dizer «não», por vezes diziam «nie tak». Para ele pareceria querer dizer «não sim». Sabia bem mais de polaco que algum dia hei-de saber, mas nisto o bom do latim ajudou-me.


Em latim «sim» traduz-se em geral por «ita». Mas «ita» originalmente não quer dizer «sim». Mas «assim». Em boa verdade, a negação, do que consigo perceber, é sempre muito mais primitiva que a afirmação. Pelo menos nos advérbios, entenda-se. Em bom rigor, tanto um polaco como um romano não está a dizer «sim», mas «é assim, é assim como dizes». Apenas confirmam através do modo.


Por outro lado, a palavra «eu» não é notada na sua estranheza pela maioria dos falantes. «Ego» em latim e grego, tem sempre formas muito diversas no nominativo (forma do sujeito) e nos outros casos.


Pode-se dizer que com a terceira pessoa se passa o mesmo. Em boa verdade, «ele» não é necessário nas línguas indo-europeias, porque são línguas ricamente flexionadas. A própria flexão do verbo em geral já nos mostra de que pessoa estamos a falar, se da primeira, se da segunda ou da terceira.


A segunda aparece-nos como mais natural. «Tu» é sempre um chamamento natural. Quando digo algo, não preciso de dizer «eu digo algo». (O francês com a sua absorção dos sons finais tornou mais importantes os pronomes pessoais, mas essa é uma outra história: em «je dis», «tu dis», «il dit» diz-se «di» em todas as formas).


A terceira pessoa nasce muitas vezes de uma indicação, de um «aquele» para o qual se remete.


A verdade é que a primeira pessoa não é tão evidente. Apontar para mim quando sou eu a dizer algo, quando em acréscimo a língua separa claramente pela flexão que é a mim que me refiro, não parece muito necessário.


Por isso o «sim» e o «eu» são das mais complexas construções da língua que podem existir. Pressupõem uma consciência do discurso (sim) e das pessoas que o pronunciam (eu). Requere um grau de abstracção, no fundo, uma teoria, sobre a comunicação e a acção que não são simples.


A questão é que o que é primitivo nos invade a todo o momento. O estado natural é o estado precisamente: natural. Uma casa constrói-se sobre terrenos não civilizados, um jardim sobre terras não cuidadas, todos nós assentamos sobre a selva, o deserto, a savana. Que o homem com o seu trabalho nos tenha dado a ilusão de que a natureza está no passado, apenas é sinal de que nos esquecemos que a camada de civilização em geral é muito estreita, fina e frágil.


O mais difícil é sempre dizer «sim». Dizer «não» apenas define o que afastamos, não o que acolhemos. Afastando agora uma coisa, há mil que podemos estar a afastar ou a receber ao mesmo tempo. Mas acolher uma coisa, significa integrá-la em nós, fazer-nos uma com ela na nossa vida.


Dizer «eu», significa que não posso apelar em tudo para um mundo que está fora de mim. Havendo um eu, sou obrigado a responder por ele. O caminho mais fácil é dizer que «eles» são culpados, ou «tu» és culpado, que sou apenas uma peça flutuante no mundo a quem não podem ser atribuídas culpas. Dizer «eu», significa que existe quem acolhe partes do mundo, que se fazem escolhas, e essas escolhas são feitas por alguém: eu, precisamente.


O verbo «esse» em latim quer dizer «ser» e «comer», como aliás em alemão. Há quem queira fazer nascer o verbo «ser» da ideia de comer. Que seja. De novo a mesma ideia: somos apenas quando temos a faculdade de acolher o mundo.


Os sinais de barbárie encontram-se quando dizemos que os outros são sempre culpados. O sistema capitalista, o sistema político, os políticos, quem seja. Estamos a dizer que não. Que não somos responsáveis por nada. Estamos a dizer que o eu não existe, ou é fraco, mera folha ao vento sem poder próprio. Estamos a dizer que nada somos, porque nada podemos acolher como nosso. Quando a culpa é dos outros, é sempre dos outros, é de nós que falamos, de como somos pouco, fracos, não acolhedores. De como somos folhas ao vento, facilmente levadas pela mais pequena lufada. Se calhar quem o diz tem razão. Pode-se dar o caso que esteja apenas a confessar quão primitivo é. Ter razão, sem ser, sem ser eu, sem ser capaz de dizer que sim. Instrumento negador atirado por qualquer brisa, vale o que vale a folha caída. Recordação poética, mas apenas para quem pode dizer eu, sim, e que é.



Alexandre Brandão da Veiga




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