sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Direito à greve ou capricho dos deuses ?


O calendário das greves paralisa o Porto de Lisboa por cerca de um mês, sem perdas para cada categoria profissional envolvida. Os pilotos param dois dias; os transportadores desses pilotos param outros dois, impedindo a actividade dos primeiros; seguem-se os estivadores; e não faltam à greve os trabalhadores da administração. Todos concertados para a inactividade.
Resultado: o pequeno ou médio produtor de pêra rocha do Oeste perde a mercadoria por falta de escoamento e perde o mercado de destino pela insegurança na entrega.
Diga-se que os instigadores da greve - entre pilotos e estivadores - ganham mais do que o Presidente da República. Simplesmente, como dominam as portas do País, tudo podem, tudo paralisam, tudo conquistam exclusivamente para a sua abastança.
O Povo não se revolta porque há anos que a opinião mediática decreta que os portos não são lugares de trabalho, mas sim de recreio; que roubam as cidades aos rios e ao mar; que os contentores são feios e os navios de cruzeiro bonitos, e por aí fora.
Portugal está na mão de poucos que operam na ignorância de muitos e na falência dos que querem trabalhar.
  

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quarta-feira, 26 de setembro de 2012

O silêncio dos decentes

Cada um tem os seus gostos, mas tenho de abrir com uma confissão. Sempre tive sentimentos francamente mistos em relação a Cícero. Cícero é uma das personagens mais dificilmente qualificáveis da História. Homem de acção e de pensamento, rico na primeira mas pouco frutuoso, menos rico no segundo, e porém muito mais eficaz. O que desejou na acção, a república, perdeu. Mas no pensamento, se não pode ser considerado um imenso pensador, foi dos que mais contribuiu para a nossa linguagem filosófica, científica, erudita. Qualquer pensador europeu é em certa medida um ciceroniano, nem que seja pelos conceitos que usa.

Tradutor rico e infatigável de conceitos gregos, deu-nos para o bem e para o mal um tesouro conceptual com o qual ainda nos debatemos hoje em dia. Em todas as áreas da existência. É evidente que a moral e a política não escapou a este pensador, algo menos moldado para áreas mais especulativas ou científicas.

Uma das suas contribuições é a do conceito de decência. Derivou-o de “decet”, “o que é conveniente”, “o que vem com”. Verbo ligado a “dignus”, que traduzimos ainda hoje por digno. Fê-lo para tentar traduzir o grego “euprepeia” de um verbo “prepo” (perdoem-me por transliterações simplificadoras os eruditos). “Prepo” significa aparecer distintamente, convir, parecer-se com. Está ligado a “preptos”, distinto, famoso.

As palavras não são irrelevantes e muito menos o que elas nos trazem. Os usos alargam-se, casam-se e estreitam-se de forma algo elástica ao longo dos tempos. Mas o que é espantoso é que restem quase sempre resíduos dos seus sentidos originais.

O pequeno burguês, o apertadinho, entendeu sempre a decência numa perspectiva de contenção sexual, de gestos, de palavra. A única forma de ser digno, decente, era a de conter a sua natureza. Essa uma diferença de marca que o separa dos que são dotados de grandeza. A sua marca de decência é a de se expandirem. Quando o pequenino, o remediado, se começa a querer libertar da sua forma possível de decência liberta-se igualmente do seu estado possível de decência. Acha que a libertação sexual, de costumes, de gestos passou a ser indecente e para ele a indecência excita-o, é a sua forma de liberdade. Como todos os que são pequenos fez da sua menoridade uma lei universal e sente-se liberto, mas quer obrigar os outros a “libertar-se” pelas mesmas vias.

O problema é que o homem de grandeza já é livre dos seus gestos e atitudes e faz dessa liberdade a sua forma de decência. A indecência para ele não é picante, excitante, porque para ele a decência é o seu estado natural de liberdade.

O decente é por definição o que tem uma presença distinta, evidente. Ele é o que é. O indecente é o que aparece difuso, sempre de presença incerta, de existência questionável. O indecente é assim o desconexo, o desarticulado. Aquele em que os movimentos e os eventos se cruzam por mero acaso, ou pelo menos segundo regras distorcidas, geralmente porque mero sintoma da sua monotonia.

Quando no espaço público navegam as contradicções podemos ver algo de bom ou de mau nisso. Se as contradicções se encontram só em relação ao oponente, faz parte da lógica das coisas, é uma tensão saudável numa sociedade, sobretudo se ela é democrática. Quando a contradição é interna aí é que podem surgir problemas. Durante décadas tivemos de assistir à técnica da obnubilação. Os apoiantes do capitalismo escondiam os crimes que cometiam ao impor ditaduras, destruindo economias emergentes, favorecendo a corrupção, invocando para os outros o livre comércio e para si o proteccionismo. Os comunistas obnubilavam a total ausência de liberdade, as ditaduras, os crimes cometidos em nome de nobres ideologias. O jogo da obnubilação convence quem quer; mostrar alguma indecência, alguma desarticulação, mas nem que seja pelo efeito de habituação, gerou-nos alguma anestesia. Se não é uma sua atenuante é pelo menos um paliativo.

Questão diversa nos aparece quando a desarticulação é bandeira. Quando se quer uma coisa e a sua contrária abertamente e se defendem as duas cegamente em público. Este um fenómeno que na sua gravidade é relativamente recente. No mesmo discurso se defendem os altermundialimos, a democracia, os direitos do homem e da mulher e culturas confrangedoras na sua capacidade de repressão. No mesmo discurso se diz que a cultura muçulmana é deplorável e depois se defende o acesso de países muçulmanos à Europa. No mesmo discurso se diz defender os direitos do homem e se financiam terroristas islâmicos turcófonos. No mesmo discurso se diz que é de armas de destruição em massa no Iraque que se trata para de seguida falar em democracia e direitos humanos. Não há países santos, nem governos santos, nem partidos santos neste aspecto hoje em dia. Uns mais que outros, mas todos colaboram nesta glorificação do desarticulado.

O espaço público que é configurado pelos indecentes apresenta a marca da sua triste identidade.

É um espaço público nebuloso, onde se atira permanentemente poeira para os olhos dos auditores, onde impera a manipulação da verdade. O decente sabe-se paradigma, o indecente apenas se toma teimosamente por tal. O primeiro impõe-se por si mesmo, o segundo vive de se impor aos outros. O espaço público não é protagonizado por quem se apresenta distintamente, fulgurantemente, perante os seus concidadãos, mas por intrusos que irrompem, sem pertinência nem mérito, na ágora. Espécime intratável, a sua norma é a indignidade tanto quanto se referem ao seu contrário. Não convêm para coisa nenhuma, não se parecem com nada que valha a pena. Desarticulados por natureza, arvoram a desarticulação em lei universal. O inculto, o plebeu, o enfático, o repetitivo são os seus atributos maiores.

Os indecentes tomam por estúpidos os povos. Vêm o paradigma nas respectivas famílias. Eivados do espírito de irmandade, julgam que ser fraternos implica achar que todas as famílias são como as suas. Grosseiras, pouco inteligentes, em suma, indecentes.

Quando os analfabetos opinam, os cultos calam-se. Seria necessário devastar todo um mundo para contra-argumentar. Vício da preguiça, desprezo aristocrático, sensação de impotência? Talvez de tudo um pouco se explique este silêncio. Mas quem cala não consente, apenas se ausenta. Falando com os pés quem nem isso merece, vota com os pés quem mereceria outra coisa. O êxodo, a emigração profunda é a dos esclarecidos, que, ou escorraçados ou auto-exilados, se refugiam cada vez mais nas suas casas. Que estímulo existe a participar na discussão dita democrática se esta assumiu a forma da feira e da conversa das três vias romanas, do trivial? Quando entrar na discussão significa fazer parte do confrangedor espectáculo dos vendedores de frangos podemos realmente condenar quem se afasta com repulsa? Quando o solecismo se faz estilo e a inépcia estandarte de heráldica podemos culpar quem não se presta à mistura?

O problema é que de tanta justa decisão individual o espaço público fica deserto, não fora o grasnar dos incultos e dos grosseiros. A participação no espaço público pelos decentes tem assim de ser vista, não como um gozo, mas como um sacrifício, mesmo que daí se possam retirar prazeres múltiplos. São os heróis da vida contemporânea, os que largando a paz da sua decência aceitam entrar na liça, mesmo que precisem de tomar um forte banho de seguida.

Não refiro nomes de indecentes, não identifico criaturas, não fora eu correr o risco de imortalizar medíocres. Mas para a tristeza infinda dos indecentes, existem seres humanos que não o são, e é a estes últimos que cabe mostrar a humanidade na glória da sua existência. O destino talvez seja injusto, mas se o for, é-o bem menos que os indecentes.

Quando os decentes apenas entram a contragosto na pública arena é sinal de que a mesma se encontra em degradação, que se anuncia alguma queda. Fiquemo-nos com esta lição, a de que demos espaço aos desarticulados e assim andamos desarticulando o mundo. E mais outra: a de que respeitar esses heróis é uma oportunidade a não perder. Se a última, cada um julgue por si.



Alexandre Brandão da Veiga




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segunda-feira, 24 de setembro de 2012

O que move Marcelo Rebelo de Sousa ?

Tenho uma teoria sobre Marcelo Rebelo de Sousa que foi talvez confirmada ontem na TVI: acredito que Marcelo é tanto mais responsável quanto maiores responsabilidades tem. E que, se deixado de lado, no campo da observação, se torna diletante, traiçoeiro, injusto, perigoso, unilateral. E, o que é pior, quase sempre com graça.
A teoria prova-se na sua respeitabilidade como Professor de Direito. Perante a educação milhares de juristas, o mestre cumpre. A mesma «categoria em missão» se observa nos livros que publica, no ritmo e qualidade de trabalho e, até, no apoio que dá a causas fora do círculo mediático.
Prova-se ainda na forma como liderou a Oposição e o PSD nos idos anos 90. Provocou os Referendos ao Aborto e à Regionalização e ganhou. Bateu-se contra o Totonegócio e ganhou. Por duas vezes, exigiu dois terços dos votos nos Congressos do PSD e ganhou. Do mesmo modo, saíu imediatamente quando se sentiu abalado pelo parceiro, Paulo Portas, numa entrevista a Margarida Marante. Não foi a eleições, nem perdeu a face. Assumiu a Oposição em Lisboa melhorando as opções de Sampaio, o que não terá sido difícil, e tem tido uma relação modelar com o poder local na terra dos seus antepassados, Celorico de Basto.
Neste sentido, comparem-se as duas últimas intervenções de Marcelo na TVI e descubram-se as diferenças. Bastou a gravitas de ter participado entretanto num longo Conselho de Estado, para transformar a quezília, num sentido crítico útil, clarividente, patriótico.
Pode ser que pese, nas suas fases da «pirataria», o amor à liberdade de falar sem vínculos a nada e a ninguém. Ou ainda o facto de saber que a imprivisibilidade lhe dá mais poder. Entendo isso como jornalista. Mas tem de haver sempre mais verdade do que cálculo.

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segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Contradições

Os tempos estão confusos e andamos ao ritmo de equívocos.
Dou três exemplos que me surgem sem esforço:
  1. Manuela Ferreira Leite propõe uma insurreição do Grupo Parlamentar do PSD apelando à consciência política individual de cada Deputado. Lembro o dia em que sugeriu a suspensão da Democracia em Portugal, por seis meses, para se poderem concretizar medidas difíceis. E lembro também o empenho que a líder do PSD pôs na aprovação do PEC I socialista, obrigando os Deputados do PSD a uma disciplina férrea. Até o amigo Pacheco Pereira se contorceu em público, mas obedeceu.
  2. A este propósito, Marcelo Rebelo de Sousa critica o apelo à insurreição de MFL e diz que não fica nada bem, do ponto de vista institucional, a uma ex-líder do partido ser tão agreste com a actual liderança do partido. O maior critico de sempre das várias direcções do PSD esquece-se, talvez, que ele próprio também foi Presidente do PSD e que raras vezes fala com a postura que recomenda.
  3. Por falar em postura institucional, Paulo Portas justificou a intervenção do passado Domingo por ser um «institucionalista». Terá sido por respeito institucional que veio a público, depois de uma espera de seis dias, dizer o que não quis dizer em privado ao parceiro de coligação? Terá sido por isso que exibiu os louros do congelamento das pensões mais baixas entregues a um Ministro da sua cor num Governo que é uno? Terá sido por ser institucionalista que disse, em público, que não concordava com o seu Primeiro-ministro?

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quinta-feira, 13 de setembro de 2012

I can't get no satisfation


Em Democracia, a maioria do Povo encanta-se com uma força política, vota nela, desencanta-se, e vota noutra. Tal como numa paixão, aposta tudo na esperança de um líder para depressa se desiludir e dar maioria a outra força. Os mandatos seguram o divórcio por quatro anos mas a verdade é que, mantendo a atitude hedonista, sobretudo em tempo de crise, passado um ano já o eleitor alimenta sondagens de sinal contrário.
Ora um projecto não se testa à la minute, por sondagem, tal como um grande amor não cede a desilusões porque não assenta em ilusões. É preferível acreditar a ser crédulo; construir a fiscalizar; ter rumo a obedecer a um vento, tantas vezes alimentado por ventoínhas com lama. A comparação, reincidente, entre a paixão e o voto prejudica o melhor dos piores sistemas.
Dito isto, nada se sobrepõe à liberdade de poder escolher. Mas escolher não é guinar «ao sabor do último sabor». É fazer caminho esclarecido, valente, generoso com as futuras gerações.

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terça-feira, 11 de setembro de 2012

Poder Maior



A médica do post anterior quer sair de Portugal, para tratar noutros corpos, as mesmas doenças, num lugar distante. Lembra-me as palavras de Adriano Moreira, na passada 6ª feira, segundo as quais há coragem em partir mas é preciso mais coragem para ficar. E Portugal pede-nos hoje essa coragem de fazer aqui aquilo que estamos dispostos a fazer fora.
Os versos de António Pereira (1914-1978), autor de «Notícias do Mar», desfazem o dilema do Velho do Restelo, entre os que partem e os que ficam:

«Aqui,
Nesta aldeia do Algarve onde nasci,
Nesta rua que tem o mar ao fundo,
Onde nasceram meus pais
E nasceram e morreram
Antepassados que eu não conheci,
Aqui
Há um Poder-Maior que pode mais
Que aquela voz que me chama
Da outra banda do mar...
- Que me namora e me chama
Da outra banda do Mundo».

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segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Uma fotografia

Fotografia da Net, com a legenda Eleições Legislativas em Timor-Leste.
Fala de quê? Da força de uma Nação; da força de duas, se olharmos as Quinas; da liberdade cívica do voto; da criança que herda a escolha; do azul que promete outro horizonte; do selo de plástico que evoca a fragilidade da democracia.
Hoje, num hospital de Lisboa, cruzo-me com uma médica, breve de palavras e simpatia. Sem propósito, Timor-Leste entra na conversa. Diluem-se resistências. Estaríamos ali horas se o trabalho não nos chamasse. Timor resgata o melhor que há em nós. Talvez Portugal também inspire no mesmo sentido.

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quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Partir falsa porcelana

Partir falsa porcelana é a mais poderosa expressão para descrever o clima da opinião que, neste tempo, corre em Portugal. Reli-a hoje no Público, pela pena notável de Pedro Lomba, a propósito do combate de Nuno Crato contra os gurus do ensino superior em Portugal. Na verdade, vertem-se lágrimas de crocodilo sobre o Ensino Superior; a Televisão Pública concessionada a privados; a nova Organização Administrativa; e o corte de alguns Feriados.
Concordo com as lágrimas. Se a todas as reformas acrescentarmos o novo Acordo Ortográfico, assiste-se a uma reviravolta da nossa identidade sem uma revolução - de rua ou de quartéis - que a sustente. Mexer, ao mesmo tempo, na Língua, na pertença ao território, no serviço público da comunicação comum e nas datas simbólicas da nossa História e de relação com o Transcendente constitui uma frente violenta, assustadora.
Será o Governo insensível às ligações identitárias mais fortes do seu Povo? Creio que não. Isso seria autofágico, senão suicidário. Prefiro acreditar que, com ineficaz comunicação, aproveitou a crise para «aggiornar» ou desinstalar falsos símbolos. À excepção da mudança da ortografia - que, a meu ver, mais separa do que une ao Brasil - há muito que o ensino deveria ser mais profissionalizante, que a RTP-1 pouco ou nada tem de serviço público, que a maioria das Freguesia urbanas se deixaram enquistar em clientelas endógenas; e que me parece ilusório valorizar feriados como o 5 de Outubro, o 10 de Junho ou mesmo o 25 de Abril - em vez de consagrar a Independência do País num só dia. Recupere-se a porcelana, mesmo com «cabelo», e não os cacos sagrados dos interesses e ideologias instalados.

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segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Preconceito, mente aberta e limitações

Habituados que estamos a repescar pelas esquinas o que a plebe vai cochichando, entendendo que onde mais esquinas há existem hoje em dia universidades, ministérios e centros culturais, e por plebe o que invade o espaço público, podemos ouvir com algum sorriso o que por lá se vai dizendo.

Uma das frases mais ouvidas é a seguinte” eu não tenho preconceitos, tenho mente aberta, procuro ver as coisas sem limitações”.

Como os gregos nos ensinaram, uma das formas de ver lucidamente as coisas é ver os seus fundamentos, a sua forma, os seus efeitos e as suas finalidades. Para o leitor mais atento facilmente se reconhece aqui algo próximo da teoria das quatro causas de Aristóteles.

Vejamos os fundamentos deste dito popularucho. Porque diz a plebe que tem mente aberta? Porque tem memória de as antigas classes dominantes viajarem. Ou os peregrinos. Quem viajava estava rodeado de uma aura especial. Ou era senhor, que partia para a guerra ou para o matrimónio, ou era aventureiro cruzado, peregrino que via o que era mais importante ver: Roma, Jerusalém, Santiago de Compostela. O que viaja viu outras coisas, não é o que fica preso à gleba, ao pedacito de terra em que se instala o servo, o simples agricultor. O fundamento desta frase é medieval e mesmo antigo. Quem diz que tem mente aberta está a dizer que não é servo da gleba, mero sedentário sem alternativa. Diz-se nobre ou peregrino, pronto para a viagem.

Mas qual é a forma que adopta para fazer essa viagem que lhe dá tanta abertura? A do turismo. Quem o afirma é geralmente consumidor passivo de viagens pré-formatadas, com destinos bem seguros. Faz as vacinas impostas por lei quando viaja para países com risco de malária e não larga nunca o guia turístico. A sua abertura está enquadrada por padrões pré-definidos, em que o risco é reduzido ao mínimo. Abre-se ao mundo, mas desde que o mundo seja feito à sua imagem e semelhança. Exagero meu? Entre as pessoas ditas abertas que encontramos? Procuremos entre elas os grandes estudiosos de hieróglifos, de sânscrito, de grego clássico. O vazio. Tentemos ver entre essas pessoas ditas abertas se se abrem à História do cálculo infinitesimal. Nada veremos. Ou as que se abrem ao estudo do Madhyamika... Nem sabem o que isso é. A que se abrem estas pessoas? Ao que já está aberto, disponível. A forma é da abertura própria, mas não alheia. Não abrem tesouros escondidos porque já se consideram um tesouro escondido. Quem se diz aberto é em boa verdade quem se considera um tesouro por explorar. Forma presunçosa da modéstia pública.

Quais são os efeitos desta abertura? A passividade, para começar. Sendo eu aberto, basta-me esperar sentado o vento que passa. Pode ser que este me atire à cara uma banana caída de alguma árvore. Mas numa cabeça totalmente aberta entra todo o disparate. Aberto a tudo, tudo lhe entra, aceita sem critério. Um dos outros riscos de se ser demasiado aberto é que quem o é não retém as ideias. Assim como elas chegam, assim se vão embora. Por isso, o homem dito aberto não tem noção da consistência, da coerência. Defende uma coisa e a sua contrária, mas nem tem consciência de o estar a fazer. É natural. Porque a coerência é sempre o resultado de uma procura e não de uma passividade.

E quais as finalidades desta abertura? É que a pessoa que se diz aberta não tem de se comprometer. Ouve uma parte e a outra, mas termina sempre o seu discurso por um non liquet, uma indecisão. Não sabe. Parece ser assim modesto. Mas impõe aos outros que não saibam. Se ele não sabe, mais ninguém pode saber. Ele é aberto e todos os outros têm de ser abertos... como ele. O homem aberto é antes do mais um pequeno ditador. Sentado numa cadeira do seu alpendre, fica ofendido quando outros lhe dizem que há outras formas de vida, em que se calcorreiam as ruas.

Quando Marco Pólo chegou da sua viagem pelo Oriente contou que havia sociedades matriarcais, e outras em que era de boa educação oferecer as mulheres aos visitantes. Foi dado como ridículo e mentiroso. Da mesma forma a pessoa de “mentalidade aberta”, aceita relatos de viagens, mas apenas se a confirmarem na razão. Se dos relatos alheios constar a glória de sociedades mais fechadas, ou conclusões que lhe desagradam, rapidamente vira a cara, ou se ri, ou condena por blasfémia. A criatura sem preconceitos é o herdeiro do transeunte de Veneza, fascinado com o exótico, mas descrente de outras reais possibilidades de vida.

Ortega y Gassett dizia que um homem sem preconceitos era um orangotango. Nenhuma pessoa realmente culta se posta perante o mundo com olhar virginal. E quem o pretende apenas está a querer esconder a sua ignorância sob a capa da abertura. Quando ouço criaturas afirmar que não querer um país asiático na Europa é questão de preconceito temo bem que nos mais altos postos do Estado tenhamos... orangotangos.

Da parte que me toca eu sou muito limitado. Os gregos também o eram e isso não os prejudicou, a avaliar pelos resultados. Antes de me expressar, antes de julgar, rodeio-me de limitações. Sem isso não há justiça possível. Tanto o juiz como o cientista limitam os factos que são relevantes, definem um método, vinculam-se às conclusões. Toda a ciência e a justiça, bem como a melhor filosofia, releva de limitações. Se alguém estabelece o ser como o centro da sua especulação, tem de trabalhar com essa limitação. Quem se atreveu a ler a Crítica da Razão Pura facilmente repara que aquela imensa obra é um contraponto, uma arquitectura de uma ou duas questões dadas como fundamentais, como uma máquina de uma infinita limitação. É evidente que a criatura de mente aberta recusa isto. Porque a sua mente é lassa, não aberta. O esforço de concentração é-lhe penoso, cansa-se com facilidade, e quer impor o seu cansaço como paradigma de todo o julgamento. Como juiz absolveria porque é mais prático, mas estaria igualmente disposto a condenar sumariamente se fosse mais simples. E fácil perante o contexto social.

Mas são assim tão abertos estes espécimes? Fecham os olhos, quando algo lhes afecta a passividade. São passivos e reaccionários. Se além lhes mostra um site de uma embaixada oficial do Estado turco na Dinamarca a fazer propaganda ao Islão como “a mais perfeita das religiões”, fecham os olhos e continuam a dizer que a Turquia é um país laico. São repetitivos, fechados em círculos de que não saem.

Que implicações tem este espécime na política? Como se comporta esta fauna na arena pública? Começam por ser desistentes. O paradigma da sua política é o da desistência e do conformismo. Discutem o que se aceita ser discutido. Os temas, os tópicos argumentativos que aceita, são os que se vão recolhendo na praça pública. Está ansioso por receber Marco Pólo, mas não por viajar. E recebe-o com desconfiança, desprezo e inveja mal disfarçada.

Continuam sendo arbitrários. Sem limites, tudo lhes é permitido. Mas sem preconceitos conscientes nada lhes é sindicado. Não é por acaso que idolatram culturas primitivas, e quanto mais indiferenciadas sob o ponto de vista sentimental, mais enlevados ficam por elas. Aceites pela democracia, necessitando dela para poderem florescer, não contribuem para a mesma, são seu parasitas. Postam-se em alpendres a ver indignidades e tudo pelo facto de ser espectáculo lhes merece o respeito. Só porque se posta à sua frente.

Finalizam sendo tirânicos. A sua mente não é aberta, mas apenas ponto de passagem de correntes de ar. Têm menos preconceitos e por isso mais enquistados e difíceis de extirpar, mais atávicos. São em boa verdade apenas limitados, não tendo por isso que se impor limites. Apenas se impõe limites quem se sabe apto para o infinito, e quem com ele se confronta.

É esta fauna que deixámos invadir o espaço público. Deixámos incautamente abrir as portas da cancela e a maralha tirânica invadiu o espaço da seriedade. Manada desembestada que destrói tudo no seu caminho, fruem de uma liberdade que não conceberam, e que são incapazes de sustentar. Esquecem-se que a liberdade começou no dia em que alguém se conteve, porque sendo mais forte não se impôs. Impôs-se limites, em suma. Tiranetes produzidos pela democracia, idolatram-na por necessidade de sobrevivência. Enquanto vão criando o espaço para toda a espécie de desvios à mesma.



Alexandre Brandão da Veiga


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