segunda-feira, 20 de maio de 2019

A dita filosofia islâmica IV






No Ocidente a astronomia elimina a angelologia, que se mantém no islão persa (pp. 294, 383). São os mestres do avicenismo que conduzem o islão xiita à sua mais alta consciência filosófica (p. 247). A obra de Ghazali mais influente é a mais afastada da filosofia (p. 262).

Um dos «filósofos» mais influentes do islão, Sohravardî, faz uma obra contra a filosofia grega (p. 399). O islão nunca foi capaz de fazer uma «suma» (p. 375). O próprio Corbin reconhece que a filosofia no islão dificilmente se separa da gnose (p. 323). E acaba por confessar, usando um adjectivo em relação a Averroïs que não usa em relação a quaisquer outros filósofos muçulmanos: «filósofo autêntico» (p. 335). A contrario

«Quelque chose a fini avec Averroès, un quelque chose qui ne pouvait plus vivre en islam, mais qui devrait orienter la pensée européenne, à savoir cet averroïsme latin…» (p. 345). Sim, mas este «quelque chose» não seria… a filosofia propriamente dita? Incomodado com a sua própria equivocidade, diz (p. 492) que se tem de acabar com a equivocidade do conceito de filosofia que está a usar a propósito de autor… místico. Ou fala em filosofia para continuar frase anterior que se refere apenas às «ciências» islâmicas (p. 479).

Que um tão largo encómio não vele afinal tão funda censura.



Alexandre Brandão da Veiga


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quinta-feira, 16 de maio de 2019

A dita filosofia islâmica III






Podemos dar ainda outro passo.

E o que se passa precisamente com a gnose, mística e teosofia cristãs? Têm mais variantes que a muçulmana ? A resposta é simples: sim.

Com efeito, as variantes desencarnadas que existem no islão são as que a Europa desde sempre teve, seja com os hermetismos, os neopitagorismos, os neopaganismos. Marcílio Ficino e Boehme, e mesmo até um certo Camões do « Sôbolos rios que vão» («Mas ó tu, terra de glória. | S'eu nunca vi tua essencia, | Como me lembras na ausencia? | Não me lembras na memoria, | Senão na reminiscencia: | Que a alma he taboa rasa, | Que com a escrita doutrina | Celeste tanto imagina, | Que vôa da propria casa, | E sobe á patria divina»).

Mas a Europa tem mais uma variante, que o islão não tem. A variante que assenta na Incarnação. Santa Teresa de Ávila, São João da Cruz e Mestre Erckhart não irão menos longe que os místicos muçulmanos. No entanto, têm mais uma possibilidade: a de uma mística incarnada.

Podemos dar ainda outro. É que mesmo a teologia racional nunca teve um lugar eminente no islão. Este oscilou entre o legalismo e a teosofia (termo que aparece obcecantemente no autor). Já são três dimensões culturais que faltam à tão rica cultura islâmica.





Por outro lado, enquanto no Ocidente a separação clara entre a teologia e a filosofia ocorre com a escolástica, esta separação nunca ocorre no islão (pp. 14-15).

As palavras mais usadas são as de teosofia ou teosófico e variantes (v.g. pp. 47, 106, 220, 246, 289, 299, 300, 301, 346, 356, 360, 403, 404, 412, 419, 425, 430, 431, 433, 435, 448-449, 454, 456, 473, 481, 493, 494), gnose ou gnóstico (v.g. pp. 46, 136, 201, 208, 209, 220, 244, a ideia do Anjo que assustou o «dogma» islâmico é em si mesma gnóstica a pp. 245-246; pp. 269, 299, 301; na Andaluzia a pp. 307, 313, 322, 323; pp. 356, 404, 412, 428, 434, 435, 439, 447, 454, 456, 461, 473), esotérico (v.g., pp. 64, 68-69, 429, 443), profético (pp. 64), maniqueu (p. 296), hermético (p. 331), precisamente para afirmar que a filosofia continuou depois de Averroïs (p. 64).

O próprio Corbin reconhece que a filosofia deixou de ser uma escola viva no islão sunita, só sobrevivendo entre os xiitas (p. 65).

Mas se sobreviveu foi como teosofia, tendo esgotado a fecundidade como dialéctica (p. 86). A filosofia acaba por se tornar gnose (p. 121). Entre os xiitas há tendência apofática que torna difícil um discurso sobre os atributos de Deus (pp. 169, 472).

Mas, se o apofatismo não é incompatível com a filosofia (tudo depende da dose certa, São Tomás de Aquino tem a sua dose de apofatismo), a suspensão do juízo é erigida em regra quando se manda «ter a fé mas sem perguntar como» (pp. 170-171).

Pode-se mesmo perguntar se a filosofia se encontrava em casa no islão (é o próprio Corbin quem o pergunta a p. 181). Ou ainda, é o próprio Corbin a colocar a hipótese da incompatibilidade entre o islão legalista (sobretudo sunita) e a filosofia, fazendo com que a verdadeira oposição seja entre o exoterismo (legalista) e o esoterismo (místico) (p. 234). A gnoseologia de Avicena é antes do mais uma angelologia (p. 241).


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terça-feira, 14 de maio de 2019

A dita filosofia islâmica II






Um exercício permite mostrar isto. Só na página 426 CORBIN, Henry, Histoire de la Philosophie Islamique, Gallimard, Paris, 2014, vai além do século XIV. 426 páginas para oito séculos. 74 páginas entre o século XV e XX (oito séculos). Ocupa 12,3(3) páginas por século no segundo período enquanto ocupa 53,25 por século no primeiro período (entre o séculos VII e o XIV).

Isto diz algo de negativo em relação ao que pretende demonstrar. Não é determinante, mas é sugestivo. Façamos outro exercício. Usando a sua periodização, com a morte de Averroïs no século XII, termina na página 348. Sobram 151 páginas até ao século XX. O que dá 49,7 páginas por século para o primeiro período e 18,875 para o segundo.

Saliento: isto não que dizer que seja falso o que pretende demonstrar, ou seja, que existe filosofia fecunda no islão depois da morte de Averroïs. Quer apenas dizer que Corbin não demonstrou a sua tese.

Imagina-se o que seria uma História da filosofia europeia que dedicasse uma dezena de páginas por século entre Nicolau de Cusa e Heidegger depois de ter dedicado cinco dezenas por século entre Raban Maur e Oresme.

Corbin só consegue chamar de filosofia a islâmica alterando o conceito de filosofia (p. 219). Chega mesmo a falar de obra filosófica que mais não é que um comentário do corão (p. 468), o que em si não é impeditivo, mas seria necessário demonstrar em que termos este comentário seria filosofia e não mera exegese.


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sexta-feira, 10 de maio de 2019

A dita filosofia islâmica I


Henry Corbin tenta demonstrar que existe filosofia islâmica depois de Averroïs, e acaba por demonstrar que, em boa verdade, quase não existe filosofia no islão, nem antes nem depois dele.

Só existe filosofia quando se preenchem ao menos dois requisitos: a) se admita a autonomia da razão (sempre relativa, seja em relação aos instintos, seja em relação ao corpo, ao espírito, seja em relação ao que for, mas real), b) o objecto não seja o livro revelado, mas a realidade como um todo. Quando só se verifica a primeira condição podemos ter teologia, filologia, crítica literária, mas não temos forçosamente filosofia.

Ora é o próprio Corbin a reconhecer que a dita filosofia islâmica mais fecunda é antes do mais uma teosofia, uma gnose, quando muito uma teologia. Acaba, assim, por cair na mesma anfibologia que ocorre em relação à dita arte islâmica. A arte móvel europeia fora da pintura e escultura (móvel, porque se excluiu a arquitectura) chama-se de arte decorativa. Quando se refere ao islão, fala-se de arte sem mais. O que é meramente decorativo na Europa passa a ser arte de pleno direito no islão.

Da mesma forma, tudo passa a ser filosofia, quando na Europa seria tratado em sede de História do sentimento religioso, da teologia, da teosofia ou da gnose, em suma, no âmbito da História da religião.

Uma religião não tem de ser acéfala. A História da teologia europeia está aí para no-lo demonstrar. Nada mais difícil que a teologia de um Santo Agostinho ou de um São Tomás de Aquino. Mas, se entram na História da filosofia, não é por falta de melhor. É que também entram na História da teologia, mas a transcenderam pelos problemas que colocam na metafisica, na ética, na estética. Não estão limitados à gnose dos textos sagrados, têm validade para além deles.

Já entre o islão, fora do texto sagrado pouco sobra, salvo o que é expulso pelo islão (como Averroïs), ou o temporâneo. Os mesmos que tratariam com desprezo a teologia, a gnose e mística europeias já ficariam satisfeitos em falar da grande filosofia islâmica, quando na Europa estariam a falar das tão desprezadas… teologia, gnose e mística.


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