segunda-feira, 26 de março de 2012

O homem rígido

“Temos de ser flexíveis”. Quantas vezes já ouvimos nós esta frase? Mas ao mesmo tempo vemos pessoas que nunca se arrependem de nada. Vejamos que espécie zoológica é esta que invade o espaço público.


Quem está permanentemente a lembrar que temos de ser flexíveis está a confessar que não o é. A repetição em ladainha de tal imperativo ético apenas enuncia uma lacuna e não uma realização. Ao mesmo tempo, lembro-me de ser criança e de se considerar na altura que das maiores virtudes de que um ser humano se poderia orgulhar era a de ter coluna vertebral. A posição erecta era considerada atributo maior de um ser humano digno desse nome. Hoje em dia a erecção tende a ser apenas diversão assistida terapeuticamente.


Pessoas que de nada se arrependem são pessoas que pressupõem um ser humano rígido, que não é capaz de arrepiar caminho, de mudar.


Que imagem do ser humano existe hoje em dia, por contraste com a nossa tradição europeia? A nossa tradição é de se ter coluna, de se manter por si mesmo uma posição erecta. Mas, sendo o caso, a de poderemos mudar de caminho, modificar-nos. Falamos de um homem sólido mas plástico e, quando necessário, elástico. Uma imagem de ser humano a que a linguagem se adaptava.


Hoje em dia, pelo contrário, a imagem do ser humano que a linguagem carreia é a de um ser sem coluna e por isso impotente de erecção: é flexível. De uma criatura de centro rígido, que nada faz mudar. Elástico como uma bola de pingue-pongue. Para quem estudou algo de topologia é uma figura interessante, mas muito mais uniforme matemática e biologicamente que o ser humano comum. A figura mais próxima que se encontra é a da roda de um carro. Actuando sempre em plano baixo, rasteira, monofuncional.

A frase que melhor o caracteriza é a “eu não me arrependo de nada”. Nada mostra melhor a sua incapacidade de adaptação à mudança. O seu paradigma é o da antena parabólica, aberta, mas mero veículo de comunicação e em suma instalada no solo. Aberto às flutuações no ar é em boa verdade fechado a uma interioridade que não possui e que teme mais que tudo.

O homem rígido detesta a teoria. Quem lhe conhece a etimologia sabe que é cognata à ideia de visão. Ao dizer-se prático apenas está a dizer que detesta quem vê. O seu mundo ideal é o da miopia ou mesmo da cegueira, que não o contesta.


O homem rígido diz que detesta julgar mas fá-lo. A sua frase “quem sou eu para julgar alguém?” releva de um cristianismo mal digerido, em que, mais que mostrar generosidade ou probas intenções, revela o desejo de que ninguém seja julgado, para que ele não o seja. É ditatorial. No fundo não se abstém, mas quer proibir a competência alheia para julgar.


Detesta a História mas usa-a de forma manipulada. A História é a condenação ao movimento, à mudança. O homem rígido detesta a mudança. Julga-se instalado num mundo sem tempo, feito de verdades eternas. A democracia, os direitos do homem, a igualdade entre homens e mulheres, a prosperidade, tudo lhe parecem dados que nada poderá mudar. Daí que ouçamos altos responsáveis europeus afirmar que a União Europeia é uma construção anti-histórica porque a História é guerra. Triplo disparate: nada está isento de História, se a União Europeia é possível é graças à História e a guerra não é realidade finda no mundo. O homem rígido vive de mitos. Antigamente (advérbio sempre mal definido) existia um mundo que ele caricatura como sendo autoritário, desigual, torpe, e finalmente somos hoje em dia esclarecidos, humanos, livres. Mito feito para mentes infantilizadas que acreditam piamente em contos de fadas. O homem rígido diz amar o futuro, estar virado para a novidade, mas apenas se estes forem mera reprodução do que já existe. O futuro é adorável, não por ser futuro, mas porque nada muda. A democracia é eterna, a economia de mercado perene, o acquis communautaire, a Tradição em crescimento.


O homem rígido detesta a História porque detesta os mortos. Acautele-se o leitor, porque o sorriso benevolente que lhe lança acaba de vez caso morra. Vira a cara e passa o sorriso para outro. Tendo horror à mortalidade, odeia o que mais inere a todo o homem: morrer. Odeia o ser humano. O seu amor à humanidade é apenas uma forma de parêntesis, uma condição suspensiva. Apenas dura até se instalar o desprezo definitivo e irrevogável pelos mortos. Apenas conhece uma forma de amor condicional, porque a mais não foi habituado.

Detesta os mortos porque detesta os vivos. Quer forçar a existência a ser um eterno presente, que é o único que sabe permitir a sua existência. Depois sabe que será apagado. Sabe que será morto, apenas morto, e não lembrado. Detesta os mortos e os vivos porque se sabe condenado e merecedor de esquecimento.


Odeia a complexidade e ao que está fora dos lugares comuns. O Islão é rico (onde o aprendeu?), todas as culturas são iguais (é natural, desconhece-as por igual), só a paz gera cultura (logo, a Grécia foi terreno de medíocres e os bosquímanes são génios naturais), etc. Odeia a oposição e a destrinça. Cultiva a igualdade como forma de justificação, porque só pode ser belo na neblina. O tempo fosco convém-lhe porque nada se distinguir.


O homem rígido diz amar as fracturas. Toma este conceito por inovação, renovação. Mas é curioso que use um conceito que apenas se aplica a corpos rígidos. A sua linguagem trai-o. Fracturas... quando alguém diz que gosta de fracturas dá-me o impulso de generosidade de lhe oferecer algumas. Deveria ser um dever social temos de ser uns para os outros e não podemos deixar de lhes fazer do que eles gostam.


Que o homem rígido seja um poço de contradições releva apenas do seu estatuto de homem. Que estas sejam particularmente fortes releva apenas do seu dilaceramento. Mas que odeie a contradicção mostra o seu horror à própria vida. Se insiste na ideia de que temos de ser flexíveis, é apenas porque tal qualidade efectivamente lhe falta.


Quais são as consequências das decisões políticas do homem rígido? É um reaccionário, que odeia a mudança, e quer manter a História num eterno presente. Isolado da sua História e do seu espaço quer fazer da política uma perpétua emigração, e transformar todos os cidadãos em exilados no seu próprio país. Agarra-se a princípios que considera eternos como a democracia, a economia de mercado e o acquis communautaire e obriga a que a vida dos outros seja destituída de real coloração. Orienta a política para uma vida meramente técnica, estatística, sem sabor. Nado-morto, odeia tanto só mortos como os vivos, querendo fazer da política acto de mera suspensão. Parasita e meramente condicional impõe uma vida condicionada aos seus concidadãos.


O homem rígido, por ter como paradigma o espantalho, espetado no campo e obrigado a escolher entre a eficácia da repulsa que provoca aos outros ou o ridículo ou indiferença que lhes suscita, vê o mundo à sua volta como um misto de repulsa, ridículo ou indiferença. É sobre esse paradigma que quer fazer política, é sobre esse solo que quer assentar o discurso público. Um discurso hirto que fala da flexibilidade sem arrependimento, uma repetição de uma mesma ladainha morna, em que da boca saem palavras como respeito por outras culturas (salvo a própria), apelos à prudência, à contenção sem disciplina nem finalidade sustentada.


O homem rígido é o revolucionário institucional ou o arauto da modernidade cantante, seja ela a do mercado, seja da amizade dos povos, da abertura de todas as fronteiras do mundo, dos altermundalismos, do capitalismo selvagem. Enquistado num mesmo discurso, sem opinião em estado identificado, seja sólida seja vaporosa, vive no que os químicos chamam de transição de fase. No caos. Um caos em que o medo o separa seja da ordem passada seja de alguma vindoura. Por isso rigidifica. Porque sendo um triste é igualmente um desesperado. Não apenas não compreende o mundo, como o assusta a simples hipótese de não o compreender.


No seu discurso a palavra liberdade junta-se a mercado, ou fronteiras, ou sexo, porque ignora que a liberdade não se junta nunca a coisa nenhuma, apenas está presente ou ausente. A liberdade banha, não se cola. Destituído da arte do banho, as suas rezas apenas mostram a sujidade do seu pensamento e da sua situação.


O homem rígido é um dos paradigmas do homem público actual. Oficiante de minarete em dias errados, lança o grito de uma mesma cantilena por todos sabida e que julga a todos apaziguar, mas que apenas visam a sua pacificação. É uma triste figura, mas a anestesia do hábito levou-nos a já não sentir repulsa por esta desgraça de vida. Quando o leitor se deparar com um destes espécimes aconselho-o a dar do que ele diz gostar: um futuro sempre igual, e uma fractura ou mais, dado que ele diz delas gostar.


Alexandre Brandão da Veiga

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sexta-feira, 9 de março de 2012

Paradoxos da igualdade

Cada época tem os seus mitos e as suas contradições. Quando hoje em dia o suburbano sorri condescendentemente para problemas levados a sério pelo homem antigo ou medieval apenas demonstra a sua menoridade. Não significa espírito crítico, ao contrário do que julga, mas tão simplesmente que está integrado num mito diverso e dele é incapaz de se desligar. A condescendência, ao contrário do desprezo, só é legítima quando é acto de generosidade, o que não é o caso.


Heródoto conta num episódio célebre como os gregos se escandalizam com os corpos abandonados às aves, perante escândalo igual de mazdeístas perante corpos queimados em piras funerárias, hábito dos gregos. Os gregos cedo se habituaram a essas diferenças e, não tanto ao relativismo dos hábitos e desejos humanos (senão seriam todos convencionalistas como os sofistas), mas à sua diversidade.


O mito do suburbano é o de uma igualdade invasiva, que tudo atinge. Assim como o espaço natural de um homem do século XVII era o direito divino do soberano, espaço natural, mas não necessário, porque bem conheciam a república de Veneza, outras repúblicas italianas, cidades livres do Norte da Europa e o caso suíço, o espaço natural do suburbano europeu é o da igualdade. A igualdade é vista como natureza, como o contexto evidente de inserção do ser humano.


Mas se bem pensarmos, esta igualdade tem tudo menos de lógico e evidente.

Vejamos em primeiro lugar sob o ponto de vista lógico. A igualdade apresenta dois imensos paradoxos, um espacial, e outro temporal.


Espacialmente imagine-se a seguinte frase: a cultura americana tem igual valor em relação à europeia. Se assim for, a cultura alemã é inferior à americana, porque é apenas uma parte da cultura europeia, e a parte tem sempre menor potência que o todo. Mas aí os cultores da igualdade levantam-se e dizem: horror dos horrores, não se pode dizer que uma cultura é inferior às outras. Logo, a cultura alemã é igual à americana. Mas se assim é, a cultura bávara é inferior à alemã, porque a parte vale menos que o todo. Levanta-se de novo tumulto contra esta desigualdade, e a bávara tem de ser igual à alemã. Numa perspectiva lógica, levada às últimas consequências, esta ladainha faz com que a cultura americana tenha o mesmo valor que a cultura de um remoto bairro, ou de um casebre isolado da Saxónia.

Temporalmente tenhamos em conta o seguinte argumento: temos A e B, duas pessoas exactamente iguais sob todas as perspectivas num primeiro momento. Com o tempo, A cultiva-se, dedica-se aos outros, cresce e fica uma beleza deslumbrante, adquire todas as qualidades. B, pelo seu lado, mantém-se como era no momento primeiro. Encontram-se passados 20 anos. A aperfeiçoou-se em tudo o que era possível ao ser humano fazer, e B nada fez. Logo, se continuam iguais, apenas há que retirar uma consequência: fazer ou nada fazer para se melhorar é inútil, o aperfeiçoamento é impossível, tudo o que o ser humano faça irreleva porque faça o que fizer estará sempre postado no magma da igualdade.


Estes paradoxos apenas têm duas soluções possíveis. A primeira é matemática. O único caso em que conheço em que as partes têm a potência do todo é o do transfinito, ou em linguagem mais simples, a do infinito. Isso significa que o valor de cada ser humano, de cada cultura, de cada dado que respeita ao homem, é infinito. Se assim for, pode-se fazer tudo, porque tudo terá o mesmo valor. Qualquer hierarquia entre o melhor e o pior fica anulada, tudo tem valor infinito, desde o cantar no duche a uma cantata de Bach. A outra solução é física. Pressupõe que cada acrescento de potência num sistema leva, por contradição de forças, a anular o acréscimo ao sistema como um todo. O problema é que esta solução pressupõe definir quais são as fronteiras de cada sistema (Europa VS Estados Unidos, ou casebre da Saxónia VS Alemanha?) e carece de demonstração. Nesta perspectiva o acréscimo ao sistema anula potência às partes do sistema, o que significa, contra toda a visão empírica, que uma França sem a Itália, ou uma Inglaterra sem a França teria exactamente o mesmo valor.


Avancemos um pouco mais e vejamos que a coisa viola não só a lógica, mas igualmente o sentimento das pessoas. Sob o ponto de vista sentimental verifique o leitor se se sente exactamente igual ao seu vizinho. Se não se lhe sente superior em certas coisas ou inferior noutras e se não faz um balanço total dessa comparação que lhe é favorável ou desfavorável? Pense se os sentimentos de que é provido não tem graus e se a morte de um desconhecido de Antalya o afecta menos que a de um familiar amado.


A igualdade impõe-se como uma realidade jurídica na nossa época, mas sai das suas fronteiras quando se intromete no sentimento, na arte, na cultura, na vida profissional, na competência técnica. Sendo sobretudo jurídica, a igualdade é uma imposição, uma contrariedade imposta por coacção. É uma escolha de uma época, mas uma escolha que, com todos os seus méritos, tem uma capacidade opressiva, fomentadora de injustiça, e serve facilmente de esconderijo para ressentimentos e frustrações.


Piaget mostrou relativamente bem, usando a teoria dos grupos, que a ideia de identidade na criança surge com a ideia de reversibilidade. Porque a primeira noção é sempre a da irreversibilidade (o papel caiu no chão e não sobe de novo, o cão morre e não volta a nascer) a ideia de igualdade é sempre esforço de imaginação e consequência de uma recusa, e mesmo de revolta.


A procura de igualdades gera sempre uma compressão. Dizer que uma soma é igual a um resultado é uma fundamental conquista da matemática, mas obscurece o facto de uma coisa ser uma soma e outra ser um resultado. Serei a ultima pessoa a negar a grandeza à matemática e bem pelo contrário sou dos que mais deplora a incultura neste campo. Mas da mesma forma que não usaria pautas musicais para estabelecer uma linha de produção, por mais que goste de música e de produção, não aceitaria nunca que o que é meramente algébrico seja a visão total da realidade.


A igualdade, quando sai do seu campo, ou seja o campo da redução, da compressão e da imposição não é apenas tirânica. É mito. Uma das histórias infantis que se contam no espaço público é exactamente o da que antigamente (advérbio indefinido por excelência) não havia igualdade mas hoje em dia há. Um taxista francês afirma que é contra a reforma da lei laboral porque isso viola as conquistas da Revolução Francesa. Como se a Revolução Francesa tivesse sido muito positiva para a situação dos trabalhadores. O grave é que o homem público não apresenta um grau de diferenciação maior que o taxista francês. A igualdade é uma espécie de fada madrinha num conto infantil que lança com a sua varinha de condão encantos por sobre toda a realidade. Os cultores da igualdade são assim uns aspergidos com pós mágicos em cuja eficácia acreditam, mas que em boa lucidez bem sabemos que não lhes retira o estatuto de abóboras.


Da próxima vez que ouvir alguém dizer que todas as culturas são iguais e que todos os homens são iguais melhor perceberá o leitor que afinal está a criatura a afirmar que tem medo da morte e se sente revoltado pela mudança e pela diversidade do mundo. Não profere juízo de facto, mas impõe um diktat. Tem alma de ditador instalado, que impõe aos outros o que apenas devia estar nas leis e em algum comportamento social. Visa instalar no coração alheio os seus medos e as suas revoltas. Está falando da sua fada madrinha, o que é comovente, mas que deve deixar as mentes adultas preocupadas com tanta falta de lucidez. E apenas quer impor o império do seu ressentimento. Olhando para ele, temos de lhe dar razão. Tem boas razões para o sentir.


Alexandre Brandão da Veiga

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