quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Bento XVI um papa mal amado? VII

5. Razão

Mas se há aspecto em que este papado se destaca é o da problemática da razão. A modernidade tem uma relação francamente doentia com a razão. Por um lado, considera que tem o seu monopólio, mas por outro lado sente o maior desprezo por ela. Invoca a ciência para fora dela, mas internamente mostra a sua inanidade. A modernidade desemboca no pessimismo, no relativismo, nos altermundalismos, nas teorizações transeuntes.
O discurso de Ratisbona é, quanto a mim, um dos actos fundadores deste papado nesta matéria.
O que disse o papa em Ratisbona? Qual é o sumo do que disse? Que a ligação entre o Logos grego e o cristianismo não é ocorrencial. Que o cristianismo é a religião do Logos feito carne. Que a razão não é algo desencarnado. Mas esta conclusão aparentemente singela, para ser devidamente compreendida, tem de ser apreciada no seu contexto retrospectivo, em certo sentido mais teórico, e prospectivo, mais densamente prático.

Qual é o contexto retrospectivo deste discurso?

Para o termos presente é preciso perceber que o papa é alemão e falava para alemães, ou seja, pessoas que conhecem bem este contexto. Ou melhor, não se dirige apenas a alemães, dirige-se a todos, mas o público que tem é conhecedor. Está a actuar no seu magistério. Exerce uma pastoral para pessoas cultas, que foi sempre uma das glórias da igreja e uma das suas carências no passado recente (1).

A tendência desde o fim do século XIX na ciência alemã foi a da fragmentação das fontes do cristianismo. Nietzsche segrega nos gregos os pós-socráticos dos pré-socráticos, logo o cristianismo poderia vir de uma forma degenerada de cultura grega, mas não da pura, a pré-socrática. Von Harnack pretende demonstrar a total alteridade entre a cultura grega e a cultura cristã, nomeadamente com os seus estudos sobre Marcião, o gnóstico, e Porfírio (2). Overbeck pretende demonstrar que os Padres da Igreja criaram um cristianismo diverso do de Cristo, à revelia de certa tendência protestante de retorno à patrística como oposição à escolástica, que teria sido uma perversão medieval da pureza cristã. Estudos sobre os gnósticos pretendem mostrar a profunda alteridade entre o cristianismo e o judaísmo.

Ou seja, por todas as vias a genealogia cristã estava a ser fragmentada: a continuidade dos gregos entre si, a continuidade entre a cultura helénica e o cristianismo, a continuidade da tradição propriamente cristã, a continuidade da tradição cristã e o judaísmo (Antigo e Novo Testamento).
E o problema é que estas feridas não são pretéritas. Todo o século XX se teve de debater com estas cesuras, corrigindo umas para perceber que outras se abriam. É a isto que o papa responde mostrando a continuidade destas tradições e mostrando as suas implicações vitais. Ou seja, há uma e uma só razão incarnada. A sua posição é intelectual, mas é igualmente vital.
Qual é o contexto prospectivo?

O do curto prazo é o jornalístico. Que se disse? Que o papa ofendeu o islão, que não devia ter feito esse discurso. Se os muçulmanos entenderam que o seu discurso era uma ofensa ao islão, por o islão ser também afinal uma religião racional, o que se mostrou nos meios da comunicação social? Selvagens a ameaçar de morte, e a queimar cruzes… para mostrar a sua racionalidade. Sem retirar culpas às multidões, os espectadores pecaram por falta de sentido crítico (3).
A longo prazo quais foram os resultados? Os muçulmanos cultos (4) perceberam que este era um papa com quem se podia dialogar. Não constituiu surpresa. Porque para este papa, como aliás para João Paulo II, só dialoga quem tem identidade. Se eu começar por falar e disser que sou mulher, muçulmano, ou chinês, que isso afinal não tem importância, não me estou a abrir ao diálogo, apenas estou a recusar que dialoguem com o que sou. A concordância universal prévia é exactamente o inverso do diálogo, é a sua negação.

Repare-se que o diálogo das religiões é algo de bem diverso do ecumenismo, nunca é demais salientar. As religiões não dialogam entre si, são os homens que o fazem. Não se pretendem consensos ou sincretismos religiosos, ou negociar com os muçulmanos a divindade de Cristo, por exemplo, ou a adesão a certas formas de docetismo muçulmano.

O diálogo com o Islão não é importante pelo seu grande desenvolvimento intelectual, que tenha porventura desafiado a cristandade, mas por razões geoestratégicas que lhe dão uma importância muito superior à que a sua criatividade intelectual nos últimos séculos tem tido. Por isso é importante um desafio intelectual ao Islão.

E existem profundas diferenças entre o islão e o cristianismo. Ao islão faltam dados de complexidade fundamentais no cristianismo: a filiação divina, a santíssima trindade (5), a Incarnação. Na escatologia há um projecto de eternidade mas não de infinitude (6), na natureza de Deus as concepções são bem diversas (7). O islão é um abaixamento de exigências sob o ponto de vista civilizacional, intelectual e sentimental. É mais prático, mais sensato (8). O cristianismo é mais racional. São coisas bem diversas (9).

Mas este diálogo com o Islão é apesar de tudo secundário para o cristianismo. O seu aspecto mais importante é o que revela das falhas dos próprios cristãos, embebidos numa época que vive uma má relação com a razão. Com efeito, isto mostra que a nossa época odeia a razão como aventura, como diálogo, como efectiva descoberta, como o foi para os gregos e é herança cristã. E que a nossa época quer ver a razão como algo de seco, burocrático, e não algo vivo e incarnado como o cristianismo. O que este papa vem lembrar, e isto vem desde o Vaticano II da sua parte, é que o cristianismo é uma religião de razão, mas de uma razão que é aventura, é diálogo, é contacto humano.

Esta relação malsã com a razão vê-se em vários aspectos dos discursos dos próprios cristãos.

O primeiro é o da separação entre revelação e razão. Separação fria, seca, irrevogável, que mostra vários vícios vitais e de pensamento. Em primeiro lugar, antropologicamente. Pressupõe que o ser humano é fragmentado, com compartimentos estanques. A razão tem de ser algo frio e destituído de vida. Um teste simples destrói esta tese. Uma mãe que educa os filhos, precisamente por acto de amor, tem de ser muitas vezes racional. A razão é mais prova de amor que deixar-se guiar pelos sentimentos. Em segundo lugar, é pouco consistente com o Evangelho. Cristo não veio à terra para converter os peixes e as medusas, mas seres racionais. Quando fala por parábolas não o faz para nosso descanso intelectual. Em terceiro lugar, é um erro estratégico de grandes proporções. Quando um cristão faz essa separação demonstra que interpreta o cristianismo com base na modernidade, aceita-a plenamente. E portanto coloca-se na posição da modernidade entender a sua fé como entende o gosto, o hábito cultural, a idiossincrasia. Cada um tem a sua e nada mais há a discutir sobre a questão (10).

Outro vício de discurso dos católicos decorrente de uma errada concepção da razão é o da permanente referência a valores. Quando se fala de cristianismo, o cidadão mediamente culto fala de valores. Esquece-se de falar de fundamentos. Neste aspecto mostra-se rendido à modernidade (11).

Tomemos um exemplo. Não haveria ciência europeia, ou seja a ciência, sem três pressupostos cristãos:
a) A ideia do movimento linear e não circular, sem o qual a ideia de inércia não seria construída (12);
b) A ideia positiva do infinito sem a qual não haveria análise infinitesimal, instrumento fundamental da ciência e imensa conquista científica em si mesma (13);
c) A dignidade da matéria no cristianismo (Cristo tinha corpo, há ressurreição dos corpos) sem a qual não haveria física (14).

A ciência é feita de bloqueios. Poincaré viu toda a teoria de relatividade, mas faltou-lhe dar um pequeno passo. Os números imaginários foram malditos. Geometrias não euclidianas foram feitas durante séculos e abominadas e exorcizadas
Se dou o exemplo da ciência é para mostrar que até o campo mais aparentemente distante do cristianismo, mais “neutro” sob o ponto de vista dos valores, foi moldado pelo cristianismo. O cristianismo não são apenas valores, é um alargamento de horizontes, novas possibilidades de vida em geral, de pensar, sentir, viver.

Este papa lembra à modernidade de forma clara que falece por si mesma, que não é o seu próprio fundamento. Que só por si não tem fundamento. Por isso a modernidade não gosta dele. Não é por ele não gostar de modernidade, mas por lembrar-lhe de onde vem e do que carece. Ou seja, do seu pai: o cristianismo.

Este erro mais uma vez não é apenas lógico, intelectual, tem efeitos estratégicos. A discussão sobre os fundamentos cristãos da Europa foi envenenada pelos próprios cristãos quando se apressaram a falar de valores cristãos. Assim fazendo, colocaram-se nas mãos da argumentação modernista: os valores são relativos, são como os gostos. Cada um tem os seus. Mesmo admitindo o pluralismo axiológico da nossa época, mesmo admitindo que o cristianismo fenece (hipótese apressada que nem interessa discutir aqui), há uma verdade insofismável: a Europa foi construída sobre o cristianismo, juntamente com o paganismo indo-europeu. Não há segunda opinião sobre isto que mereça discussão. A prova do erro estratégico é que os supostos modernistas recusaram-se a discutir os fundamentos (15).

Esta recusa em discutir fundamentos demonstra um profundo cansaço intelectual e espiritual, um medo de se aventurar para além do espaço da modernidade, das suas fronteiras seguras. Tudo o que vá para além do passeio seguro e com guia turístico assusta o homem contemporâneo. Esquerda e direita, liberais e intervencionistas fazem planos, tentam antecipar o futuro, o que em si não é incorrecto, mas se torna uma obsessão doentia em exagero. A modernidade tem medo, não pretende dialogar, exactamente porque guarda a razão como um sultão guarda a concubina no harém. Acredita que tem o seu exclusivo, mas por isso enfada-se dela.

E esse é um dos maiores erros dos cristãos contemporâneos. É o de não enfrentarem a modernidade nos seu próprios termos, ou nos que diz serem seus: os da razão. Sempre que um cristão invoca a Bíblia, sempre que invoca o santo nome de Cristo, desautoriza o seu discurso e descansa a modernidade. Afinal é a apenas um exemplar de uma tribo, um exemplar idiossincrático.

Neste aspecto, o pensamento de René Girard é importante sobre a forma que têm os cristãos de pensarem a modernidade. Em síntese, a antropologia científica nasceu com ingleses e com duas bases: a ideia do primitivo, e a ideologia imperial. Toda a antropologia do século XX tem girado à volta disto. Agora para dizer que os primitivos não o são e a ideologia imperial é criminosa, execrável, pecadora. E eis que nos EUA um francês estuda antropologia e muda os dados de base da antropologia: o centro não é o primitivo e a ideologia imperial. São outros dois: o arcaico e o cristão.

O cristianismo como base de ciência. É verdade, parece chocante a ouvidos modernos. Mas o que diz Girard é que a maior revolução na cultura humana foi a Paixão. Porquê? Todas as culturas se fundaram na violência exercida em relação à vítima, e todos os sacrifícios tem marcas sangrentas, mesmo que atenuadas, dessa vítima. Isto não é novo no cristianismo. Que apareça um deus que se sacrifique não é igualmente novo. Desde os mitos astecas às figuras de Hércules podemos encontrar deuses que se sacrificam ou deuses vítimas (16).

Que há de novo então, de revolucionário? Uma ideia muito simples e por isso inesperada: a vítima, a vítima é inocente. Estranho, absurdo: a vítima é inocente. E isto fundou, não apenas novas civilizações, mas possibilidades de ser humano completamente novas. Passa-se do bode que é expiatório, para o cordeiro que é de Deus.

Este papa lembra mais uma vez que ser cristão não é ter mais uma entre outras religiões, entre outros mitos, entre outros rituais. Ser cristão é não ser arcaico, é usar da razão, mas uma razão que nos lembra a todo o momento uma e uma só coisa: Deus é amor e por isso a vítima é inocente. Mas isto só pode acontecer porque a razão de que falamos é uma razão viva, a vida por excelência, e não uma razão meramente mecânica, morfológica ou dialéctica. Por isso pode ser fundamento e por isso exige fundamento. Só assim consegue ultrapassar uma civilização do medo (17).

1 Um dos equívocos de certo catolicismo popular é o de menorizar a pastoral das pessoas cultas. O desprestígio intelectual da igreja deve muito a este erro de pastoral. No caso português o facto de não existir nada equivalente a uma “Cerf” francesa só mostra até que ponto esse desprestígio tem algum fundamento.
2 Porfírio continua a ser para mim o mais fascinante escritor anti-cristão. Plotino dá uma atenção distraída ao cristianismo, Juliano o Apóstata não consegue fugir a um tom publicista por mais culto que fosse, Celso é demasiado exaltado, Proclo parece quase ignorar o cristianismo, representando um paganismo tardio que se fecha em si mesmo, Símaco é elegante e comovente na sua dignidade, mas pouco profundo.
3 O discurso citado pelo papa, de Miguel II Paleólogo, é bem mais elaborado e menos faccioso do que se disse na comunicação social. Trata-se de um imperador culto, em acréscimo vassalizado pelo sultão, humilhado na sua grandeza de “basileus”, que tem de discutir teologia com um persa num diálogo que em grande medida foi de surdos.
4 Uso a expressão “cultos" e não a irritante “moderados” porque o Islão é uma religião de limites e moderação, embora não de amor. Os extremismos têm a sua fonte, mais que em condições socio-económicas em frustração civilizacional.
5 Por isso alguns movimentos sufis falam da solidão de Deus. O deus cristão não está só. É uno e trino ao mesmo tempo. Daí que a mística cristã nunca tenha dado ênfase à solidão de Deus.
6 O homem é inferior a Deus e apenas tem de ter limites – não tem um projecto de divinização como os ortodoxos lembram bem – “sede perfeitos como o Pai é perfeito”, o que é uma insensatez para o islão. O islão é uma religião mais sensata que o cristianismo. Mas o cristianismo não é religião de sensatez, mas de razão.
7 A misericórdia de Deus é comum – mas Deus É amor para um cristão, enquanto é apenas justo, mas nunca amor, para um muçulmano. É blasfémia definir Deus como amor. É limitá-Lo e é absurdo que o infinito e omnipotente ame uma criatura, seria uma diminuição.
8 Alguns historiadores definem o Islão como a ultima civilização da antiguidade, no que em certa forma têm razão. A afinidade muçulmana com a ética e a filosofia grega, mas já não com a literatura e a arte, explica-se em parte por esta via.
9 Bem sei que estes tópicos são os clássicos da apologética cristã, nomeadamente a oriental, por pressão muçulmana, pelo menos desde São João Damasceno. Curioso o facto de um dos argumentos, invocados desde o século VIII e que vai até ao persa que dialoga com Miguel Paleólogo é o do sucesso terreno do Islão como prova da sua superioridade e verdade. É evidente que, falhando este argumento desde há meio milénio, a argumentação islâmica de recurso se encontra fragilizada.
10 Um dos corolários desta premissa é uma tendência de muitos cristãos para acharem que o Estado de Direito Democrático é a realização do cristianismo, quando é apenas uma das suas realizações. Sua realização sem dúvida, mas apenas uma entre outras. É constrangedor ver como muitos se dirigem às constituições para interpretarem a vontade divina.
11 Partilho em grande medida da irritação de Heidegger em relação à discussão dos valores como alternativa da discussão dos fundamentos, na medida em que acaba por ser uma desistência da própria razão. A História da filosofia dos valores mostra a sua limitação. Trata-se de uma filosofia acossada que tenta estabelecer para si um pequeno feudo de legitimação perante o império da ciência na segunda metade do século XIX. Teve o mérito da existência mas são as suas próprias regras de legitimação que mostram as suas limitações.
12 A luta de Santo Agostinho contra o "falsus circulus" é disso significativa. É evidente que a linha recta é generalizada em geodésica. Mas sem a enunciação primária não se chegaria à secundária. Antes de se poderem pensar números complexos é necessário admitir os imaginários.
13 Entendamo-nos. A suposta incapacidade de pensar o infinito pelos gregos já de há muito foi bastante contestada por Mondolfo, e creio que de forma convincente. A questão não é a da incapacidade de pensar o infinito. A questão está na sua valorização positiva. Zenão, Eudoxo e Arquimedes pensaram de acordo com mecanismos de recorrência, mas nunca foram capazes de elaborar um cálculo infinitesimal. Não é uma questão de falta de inteligência, mas de horizonte vital. Afirmar que “Deus”, ou “o divino” é “apeîron” soa a ouvido helénico a algo como “Deus é informe, desordenado, sem estrutura”. A ideia de indução infinita de Poincaré não se compreenderia fora de espaço cristão. De igual forma está por estudar a influência do cristianismo na álgebra dos transfinitos de Cantor (excepção feita à obra de George Warren Dauben).
14 Mais uma vez não é por acaso que a matematização grega ocorre sobretudo na astronomia, quando o mundo supralunar era entendido como tendo uma constituição diferente da matéria do mundo sublunar. Neste aspecto as investigações de Pierre Duhem são muito esquecidas. A tendência neoplatónica dos espíritos moventes dos astros impedia a possibilidade de leis da Natureza imposta por Deus desde a criação, de acordo com Étienne Tempier, bispo de Paris no século XIII. Ora a física baseia-se na existência de leis físicas. As relações entre platonismo, aristotelismo e cristianismo têm efeitos variados na História das ciências modernas. O fragmento 89 do “Contra os Cristãos”de Porfírio é bom exemplo da perenidade da mentalidade pagã.
15 O argumento grosseiro que vi redito em vários países foi o de “não tenho raízes porque não sou um legume” o que é sintomático, porque estão prontos a discutir a relatividade dos valores, mas não fundamentos, ou seja, a dimensão racional.
16 Que uma figura divina ou divinizada seja vítima é quase trivial. Cronos mata os seus filhos, Rómulo e Remo são sacrificados. Os exemplos multiplicam-se até ao infinito.
17 Citando um autor preferido deste papa: “ama et fac quod uis”. Ama e faz o que quiseres. Só um Santo que chora perante a Razão (nos Solilóquios), que se entrega a ela, que está obcecado com o conhecimento, poderia ter expresso a mais bela fórmula da moral. Uma moral como liberdade fundada no amor.

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quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Bento XVI um papa mal amado? VI

3. Herança grega esquecida

A herança grega tornou-se particularmente estranha ao espaço público. Quanto mais é citada, mais se percebe que é vista apenas em lampejos, em pequenos fragmentos, que lhe retiram todo o conteúdo (1).

O esquecimento da herança grega tem efeitos na concepção que se tem da Europa e da união das igrejas. E isto duplamente: a herança grega pagã e a herança grega cristã.

Os católicos ocidentais, e nisto os portugueses têm acrescidas culpas, comportam-se como se não houvesse cristianismo oriental ou como se fosse mero exotismo. Esquecem-se que a sua base da sua fé foi definida por sete concílios que ocorreram todos no oriente e em língua grega.

Esquecem-se que quando falam em São João Crisóstomo, São João Damasceno, São Basílio Magno, São Gregório de Nyssa estão a falar de santos da igreja católica. Quando ouvem “o Verbo fez-se carne” muitos devem pensar que foi uma categoria gramatical que passou a ter estatuto de talho. Sem saber que é de “Logos" e “sarx”que se fala fica toda a enunciação da fé por perceber (2).

Este papa tem falado insistentemente nas suas catequeses destes santos gregos (3), demonstrando aos católicos que são ortodoxos ocidentais, é verdade, mas ortodoxos, que o que nos une é bem mais fundamental que o que nos divide (4).

A dupla herança é fundamental, somos herdeiros do Logos grego e do Logos cristão. É no cristão que vivem plenamente os dois, ou melhor, é nele que se fazem um só. E lembrar esse facto tem sido uma das lutas deste papa.


4. Batalha da inteligência

Este papa percebeu que a união das igrejas tem de passar pela inteligência também. Estudos sobre o filioque (importantes para os ortodoxos) (5), ou sobre a sola scriptura e a relação com a Tradição (importantes para os protestantes) têm sido essenciais para aproximação entre igrejas.

Este papa percebeu que o trunfo da modernidade é a confiança que diz ter na razão. Pelo menos publicamente (não é por acaso que há niilismos). Que não é lutando pelo lado afectivo que se mostra à modernidade as suas contradições, os seus axiomas pouco fundados.

Percebeu que o gesto humanitário é essencial, mas não basta porque passa pela grelha de leitura da modernidade como mero humanitarismo. As Madres Teresas são tratadas no fundo apenas como grandes humanitárias. Ou seja, que escapa o essencial. O cristianismo não é um humanitarismo e não é só afecto.

Percebeu que a grande luta contra as pretensões da modernidade à sapiência (não contra a modernidade) trava-se no plano da inteligência. Ir à igreja não é uma forma de descansar a cabeça. A igreja descredibiliza-se quando é só o pagador de promessas que vai a Fátima. Quando é só a pessoa que se ajoelha na missa. A modernidade tem grelhas de leitura para isso: são superstições, falta de cultura científica, folclore, mito, neuroses. E a modernidade fica descansada. Não se pode espantar que muitas vezes o católico contemporâneo se sinta algo coberto de ridículo. Lê os seus gestos e palavras com a luz da modernidade.
A modernidade só é afectada se for defrontada na sua falência intelectual e espiritual. Se se mostrar que nasceu do cristianismo e que, ao esquecer isso, funciona em mera inércia de movimento, rotineiramente e sem capacidade criativa (6).

O mal não está no que a modernidade trouxe, mas o facto de achar que se funda a si mesma. A discussão sobre os fundamentos cristãos da Europa é significativo disso. A Europa seria anti-histórica, nasce da mera vontade, ou seja da birra.


1 Sintoma significativo a citação do discurso de Péricles em Tucídides no projecto da Constituição europeia, como se a cultura grega se reduzisse ou tivesse tido o seu apogeu em Atenas e durante uma crise bélica. Citar Péricles como epítome do pensamento grego seria o mesmo que citar Símaco ou Libânio como auge do pensamento tardoantigo.
2 A frieza e indiferença com que os cristãos ocidentais tratam as perseguições dos orientais, seja no Egipto, actualmente no Iraque, na Palestina, na Turquia, no Paquistão ou no Sudão, por exemplo, é um dos sinais desta profunda ignorância e submissão aos ditames de uma modernidade apressada.
3 Referiu mesmo Santo Ephraim, o que não é espantoso tendo em conta a sua imensa cultura teológica, mas não deixa de ser corajoso de fazer em público.
4 Muitas vezes os católicos instalam-se na plenitude do depósito da fé, esquecendo-se que frequentemente quem tem parte dos tesouros os usa melhor. As ortodoxias orientais desenvolveram temas com maior profundidade que a tradição latina, nomeadamente o da divinização do homem, o da ligação entre a essência e o acto (São Gregório Palamas é exemplar neste aspecto), o esicasmo. E usam com frequência uma bela expressão,”nascido para o Céu”, para significar algo mais que a morte.
5 Neste aspecto gostava de referir um grande teólogo pouco conhecido, Bruno Forte, que tem algumas das mais inspiradas páginas sobre a questão.
6 Sob o ponto de vista secular este papa apresenta um traço marcante. O da superação da luta entre teólogos e pastores para o exercício do magistério que ocorreu entre os séculos III e IV sobretudo, e que deixou marcas na Igreja. Trata-se de um papa que não é apenas teólogo, o que sendo paradoxalmente raro não é novo, mas de um papa que se assume publicamente no seu magistério como teólogo.

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terça-feira, 28 de setembro de 2010

Bento XVI um papa mal amado? V

C. Que tem de positivo este papa?

1. Diálogo com os ortodoxos. União das igrejas

Alguns comentadores políticos disseram que o papa foi à Turquia porque era favorável à adesão da Turquia. A verdade é que quem lê os seus discursos nunca viu essa declaração e vê exactamente o contrário. Se o Papa foi à Turquia é em grande medida porque essa é uma das portas de entrada na Rússia, a maior comunidade ortodoxa do mundo (1).
Uma das preocupações maiores deste papa é a da união entre os cristãos, não confundindo diálogo de religiões com ecumenismo, que são realidades profundamente diversas (2).
Nesta matéria João Paulo II tinha um problema: era polaco. Por isso a sua relação com os russos estaria sempre envenenada, independentemente da sua boa vontade. O que este papa está a fazer nas fronteiras orientais do catolicismo, na Polónia, na Ucrânia, com os uniatas, directamente com os russos, é fundamental para a paz na Europa.

Estamos pouco atentos a isso, mas este papa se tiver anos de vida para isso é o que mais hipóteses tem de visitar a Rússia.


2. Europa

Quando o papa assumiu o nome de Bento percebeu-se logo a mensagem dupla: Bento XV e São Bento o patrono da Europa, como Cirilo e Metódio.

Bento XV foi o papa da I Guerra Mundial. E enquanto os laicos franceses e portugueses, os anglicanos ingleses os luteranos e calvinistas alemães e os católicos italianos (3) e austríacos destilavam discursos de ódio, foi dos raros, juntamente com o imperador Carlos de Habsburgo, a afastar-se do discurso de ódio. Apenas via a Europa que se dilacerava.

São Bento é o grande organizador, o criador de Monte Cassino, o homem que percebe que não morreu apenas um mundo, mas nasceu um novo que continua o anterior. E o homem que percebe que a Europa se constrói pela cultura, pela memória e pela disciplina.

São estes os paradigmas deste papa: o fim das divisões da Europa e a importância da memória nisso. A grande mensagem deste papa dirige-se para a Europa e a ligação com os ortodoxos é um seu forte sinal.

Mas que interessa a Europa para o catolicismo? A maioria dos católicos está fora da Europa e este papa sabe-o. E dá importância ao cristianismo nas Américas, na África, mas igualmente na Ásia, onde está a crescer, nomeadamente na China.

É que para o mal e para o bem é na Europa que está o centro intelectual do cristianismo e do catolicismo. Os americanos adquiram à Europa tecnologia, mas estão a anos-luz da Europa na teologia e na filosofia.

O islão precisa de juristas. O judaísmo de rabis. O cristianismo morre sem filósofos e teólogos. Ou passa a ser mera rotina e ritual. A Europa pode já não ser o membro mais forte do cristianismo, mas é ainda a sua cabeça e pode ser por isso o seu coração. E este papa trabalha para isso (4).
Este papa é talvez um dos últimos papas europeus nos próximos tempos e o que nos dá uma oportunidade disso. Se não a aproveitarmos pagaremos o preço disso. Também religiosamente a Europa se secundarizaria.


1 A eclesiologia ortodoxa apresenta obviamente contradições entre a teoria e a prática como todas as eclesiologias. É humano. Os conflitos de jurisdição entre os patriarcados são conhecidos. Não há pois que tornar angélicas as relações entre o patriarcado de Moscovo e o patriarcado ecuménico. No entanto, a primazia de honra de Constantinopla não é discutida por nenhum ortodoxo oriental.
2 Quando foi entronizado Bento XVI usou um pálio com cruzes vermelhas e não pretas. Como se fazia no tempo em que as igrejas estavam unidas.
3 Não tão católicos, se pensarmos no governo laico da altura.
4 A História de alguns dos cristianismos orientais minoritários, em que o patriarcado se tornou hereditário e se deu uma ruralização da vida intelectual cristã, mostra os riscos de um cristianismo sem pensamento.

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segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Bento XVI um papa mal amado? IV

7. Ódio à inteligência

Os intelectuais oficiais odeiam a inteligência e o estudo. Bom é gostar de futebol e de salsa. Só com vergonha dizem que ouvem música clássica e nem têm vergonha de dizerem que não sabem latim.

A igreja católica teve a sorte de ser a única soberania que teve num século só homens inteligentes e cultos à sua frente. As nossas democracias não podem dizer o mesmo. O que diz muito sobre os nossos critérios de escolha como povos e a nossa falta de exigência.

E este é manifestamente um homem de inteligência. Se os intelectuais oficiais detestam a inteligência e o estudo em Ratzinger é porque no fundo sentem-se confrontados com o que é realmente inteligência e estudo ao serviço não do efeito, mas de uma substância (1).

8. O mito do trânsfuga do progressismo

O mito é o seguinte: Ratzinger era um revolucionário, mas com a idade começou a ficar conservador. No Concílio Vaticano II era um modernista, mas tornou-se com a idade um reaccionário. Pior, tornou-se no Grande Inquisidor. Finalmente Ratzinger adquire algum picante como figura.

O problema é que este mito é falso em geral e no caso específico.

É em geral falso: os mesmos fundamentos que levaram ao aggiornamento foram os que justificaram o conservadorismo. O aggiornamento vem de figuras como Lubac e Congar que tentaram separar o que seria a tradição rotineira, do que era a verdadeira tradição. Os Padres da Igreja, e nomeadamente os Padres Gregos, foram fundamentais para isso. Como tudo o que é verdadeiramente original, foi às origens. Tentou-se distinguir o que tinha sido alterado com Trento, com a tradição medieval, e ir às raízes mais antigas da igreja.

Mas é igualmente falso no caso específico. Já no Concilio Vaticano Ratzinger foi contra o abandono da liturgia e a anarquia litúrgica. Percebeu que sem liturgia o catolicismo se desfigura. O centro da vida cristã é a eucaristia e a eucaristia não é um concerto pop. A liturgia é simultaneamente um sinal e um instrumento de mediação. Sem linguagem pertinente não há comunicação.

9. O equívoco do Concílio Vaticano II

Em síntese, o Concílio Vaticano II quis fazer um aggiornamento, pôr a igreja a dialogar com a modernidade. Mas não quis dizer que a igreja seja filha da modernidade.

Ora, a modernidade não quis diálogo, quis submissão. Quis que a igreja dissesse que não há a Verdade, mas verdades, ou que afinal isso não tem importância. Quis que a igreja dissesse que Cristo é apenas um entre os deuses, e que a moral é o que um homem quiser. Resta descobrir quem é esse homem.

É evidente que o problema não vem de agora. Já com Paulo VI a modernidade se agastava quando ele falava do preservativo, com João Paulo II quando disse que há uma só Verdade (o culpado foi logo Ratzinger, é bom de se ver) porque isso mostrava falta de respeito por todas as outras religiões (2).

No fundo, nenhuma novidade existe. A modernidade tenta mais uma vez com este papa a submissão e não o consegue. Por isso anda exasperada com ele. Já é o terceiro papa com que o tenta debalde.

10. Ódio de si europeu

O papado tem o defeito de ser uma instituição europeia. Daí que padeça de todos os pecados, porque como é consabido a Europa é culpada de todos os erros e tragédias do mundo, segundo os aforismos dos transeuntes.

Este ódio de si apresenta-se sob um sintoma recorrente. O da assimetria de discursos e de valorações.

Este ódio de si gera assimetrias de discurso. Se a igreja perde perdão seja aos judeus, seja pelas vítimas de pedofilia, seja pelo colonialismo, quem ouve apenas pensa: “afinal eu tinha razão, a igreja é culpada”. Mas isso gera um discurso assimétrico. Ninguém pede perdão pela escravatura praticada pelos negros e muçulmanos, nem pelas ditaduras islâmicas, porque não há tribuno autorizado para o efeito nem estas culturas admitem o perdão obrigatório. Não se percebe que o pedido de perdão é medida de grandeza e não de culpa.

No espaço público a igreja é culpada e a Europa é culpada. É uma forma estranha e doentia de se dizer que no fundo nós europeus nos identificamos com a igreja: nós temos motivos para nos odiar, e por isso temos de odiar a igreja porque faz parte de nós. É uma forma de intimidade doentia, no fundo.

Por exemplo, quando pensamos no Dalai-Lama temos boa comparação. Tal como visto pelo Ocidente é configurado como uma imitação de segunda linha do catolicismo medieval: vem de um regime feudal, de um sistema teocrático e monacal, chamam-no de Sua Santidade, título a que nunca teve direito, porque é exclusivo do papa (3), imiscui-se alegremente na política e todos acham natural que o espiritual e a política se misturem nele. Mas fora o papa tal já não se admitiria.

Para esta duplicidade de discurso concorre a profunda ignorância dos ocidentais, nomeadamente de muitos católicos, que manifestam simpatia pelo budismo tibetano. Se o comum percebesse que o budismo Mahayana não é um humanismo, que o conceito de pessoa é-lhe absolutamente estranho, talvez pensasse duas vezes antes de simpatizar com ele. Pessoalmente prefiro o budismo Theravada, mas não imponho a terceiros as minhas simpatias. O que é relevante é que o que leva a simpatizar com o Dalai-Lama é no fundo um profundo equívoco: atribui-se-lhe o que de bom se vê no cristianismo, com a vantagem de não ser vinculativo. Acumula o lado simpático ao aspecto turístico. Mas no fundo quem mais diz com ele simpatizar, mais desrespeita a efectiva diferença da sua cultura (4).

Nesta matéria João Paulo II tinha vantagens. Era polaco, por isso exótico. Vinha de um país comunista, por isso não era visto “como nós" no ocidente. Por isso, o que tinha de conservador era olhado com alguma condescendência, quase como algo de folclórico: “é natural não são tão sofisticados como nós no Ocidente”. No fundo, perdoava-se-lhe o conservadorismo, por se achar que era algo provinciano, sem os nossos deveres de sofisticação.

Ora, Bento XVI não tem essa vantagem, é demasiado ocidental para lhe perdoarmos. Não tem direito nem ao exotismo, nem ao folclore.

1 Uma anedota contada por Peter Seewald representa bem a inteligência em Ratzinger. Perante alguém que faz a crítica rotineira à tradição como reaccionária Ratzinger responde: “a igreja é uma verdadeira democracia, até os mortos votam”. Poucas vezes se sintetizou tão bem o sentido da História, a comunhão dos santos e a tradição de um só golpe. Apenas faltaria referir que votam igualmente os nascituros.

2 Seria um curioso exercício literário escrever encíclicas papais na versão dos pós-modernistas, cheias de certezas dubitativas.

3 Alguns patriarcas orientais têm direito ao título de Sua Beatitude.

4 Saliento que a minha crítica é feita aos que apreciam o Dalai-Lama e não à pessoa em si. Ele não tem culpa de a maioria das pessoas não perceberem que o budismo é fundamentalmente diferente do cristianismo.

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sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Bento XVI um papa mal amado? III

4. O Complexo do príncipe inocente

João Paulo II era papa benquisto, logo o sucessor não o é. Parece simples, mas mostra o primitivismo da nossa época. O curioso é que em todo o pontificado de João Paulo II houve uma tendência para se dizer que os aspectos mais criticáveis eram da autoria do Inquisidor geral.

Temo bem que isto seja esquecer que: a) Ratzinger foi convidado três vezes por João Paulo II, recusou duas, e só foi para Roma com ordem do papa; b) o papa João Paulo II estava bem longe de ser destituído intelectualmente, tinha ideias próprias, sabia bem quem era Ratzinger e quem estava a recrutar.

Tendemos a olhar com condescendência as ditas multidões medievais e ignorantes (1) que consideravam que os ministros eram culpados e o rei era inocente. Sorrimos quando vemos o povo de França ou da Rússia criticar os ministros, e apelar ao rei, que nada saberia. No entanto talvez estejamos a falar mais do comportamento da nossa época que do de épocas passadas.

Este é um entre muitos sinais da falta de sentido crítico da nossa época. No fundo comportamo-nos nós como as multidões “medievais” e analfabetas. O príncipe é inocente, é apenas mal aconselhado por maus ministros. E Ratzinger é um deles. Nunca o deixará de ser.


5. Não é romântico

O que é puro, o que é válido, nasce espontaneamente, é essa a herança romântica. Olhamos para Dom Quixote como um idealista e esquecemo-nos de olhar para Sancho Pança, que foi um servidor fiel. Generoso é o Pança, Quixote vive o seu sonho sem ter em conta o que pode custar aos outros, o que os faz sofrer.

A nossa época é romântica, neo-romântica se se quiser. As ideias de espontaneidade, de fluxo vital, de originalidade, de sinceridade são românticas. E isto são ideias muito saudáveis para uma época que não é romântica. E letais para épocas que o são. Fazemos chiste com os românticos apenas porque os vemos muito próximos.

Não é por acaso que este papa salientou a diferença entre a sinceridade e a verdade. Desde que as pessoas sejam sinceras, espontâneas, parece que tudo se justifica. Eu posso sinceramente odiar alguém, sinceramente ser injusto, sinceramente dizer inanidades. Desde que seja sincero, tudo se justifica.

O romantismo tem aspectos geniais, mas desemboca sempre em becos sem saída. Pressupõe um mito da perpétua criação, de que todos somos únicos na capacidade criativa, que fazemos coisas novas a todo o momento. No fundo é a teoria do “Bootstrap” do barão de Munchäusen, que pega nas suas próprias botas e segurando-as assim consegue voar. Não é por acaso que o romantismo acaba na náusea de viver (2).

O romantismo não gosta de instituições. Qual é o problema de ser membro de uma instituição? O que revela sobre a nossa época é o horror que tem da organização perene, do controlo do caos, da racionalidade, da memória (e é bem sabido que o horror e ânsia estão sempre juntas ). Uma instituição diz o contrário: diz que o ser humano não nasceu no vazio e alimenta-se da tradição. E que para criar é preciso uma fonte que nos alimente.

Ou seja, insuportável por ser optimista (3) e não ser romântico. Instituições e optimismo estão intimamente ligados, ao contrário do preconceito romântico diz. Uma instituição é opressiva se for apenas escora, mas libertadora se for projecto. O que não se suporta é que não participe da nossa náusea romântica de viver.


6. É alemão

Defeito incurável porque a nossa época sabe que a cultura alemã se reduz ao nazismo. Mas isso é esquecer a imensa dívida que temos à cultura alemã sob o ponto de vista intelectual, artístico e espiritual.

Pertenceu à juventude Hitleriana, diz-se. Pois: era obrigatório. Mas seria curioso ver quem o critica ter a coragem que ele teve na altura de não ir às sessões de endoutrinamento. É fácil ser herói de secretária. É aliás significativo como a modernidade rapidamente acha que uma criança de catorze anos deveria ter responsabilidade heróica, quando ao mesmo tempo choraminga pelo trabalho infantil e pela pedofilia. Onde estão os seus limites da infância?

Mas que seja alemão não deixa de ser importante. Sob o ponto de vista da caricatura podia-se dizer que traz o rigor alemão. Mas este sempre esteve presente na cúria e há outras escolas de rigor. Mais importante que isso traz outras coisas à igreja.

A Alemanha é o local onde a teologia mais cresceu por muitas razões: pela sua grande erudição, mas sobretudo pela necessidade de se confrontar com os protestantes. O católico alemão não é apenas afectivo, de lapa assente na rocha, como tradicionalmente o era o latino. É um catolicismo de convicção, de discussão, de luta, de pensamento.

A Alemanha fez estudos bíblicos com mais profundidade que outros países. As teorias críticas da bíblia foi na Alemanha que nasceram. É sobretudo graças aos alemães que percebemos que os textos não surgiram de uma assentada, que foram constituídos por camadas. Isto que afectou os protestantes e a sola scriptura, acaba por ter um efeito salutar entre os católicos e mais tarde os protestantes, ao fazer perceber a importância da Tradição.

Mas mais importante que isso, Bento XVI é alguém que conhece bem os riscos, tanto do vazio como da saturação teológica. Porque a saturação teológica tem os seus riscos, e a Alemanha conheceu-os melhor que ninguém. Feuerbach é mais corrosivo que La Méttrie e Nietzsche mais incendiário que Voltaire.

Não é por isso um obcecado com teologia. Daí que seja um dos seus teólogos favoritos Santo Agostinho. Não apenas o da Confissões, mas o dos Solilóquios (4). Que a sua palavra seja sobretudo teológica nada tem a ver com obsessão, mas com necessidade, pois na época impera o vazio teológico. É o vazio que parece dar imagem de excesso ao que mais não é que moderação.
Ratzinger lembra à igreja, como João Paulo II já tinha feito antes, mas agora com mais força, que a fé não é só afecto. É pensamento também. Essa a herança alemã.


1 A persistência de uma imagem de uma Idade Média ignorante não precisa de um cotejo com os seus grandes génios. Basta a leitura de homens cultos como Rémy d’Auxerre e Henri de Gand para se perceber a natureza intensamente técnica da sua cultura.
2 As teorias do tipo “bootstrap” não podem ser desconsideradas sem mais. Desde a física quântica à teoria da espontaneidade de Bergson existe um assento sério para reflectir sobre elas. Coisa bem diversa é usá-las para evitar a reflexão.

3 Não é por acaso que é próximo de Orígenes.
4 Sob o ponto de vista literário é obra a vários títulos peculiar. Usa a forma de diálogo clássica, mas é em boa verdade um monólogo da alma consigo mesma. E se no diálogo platónico os intervenientes podem ser mesmos grosseiros, longe da atitude dita clássica, em Santo Agostinho o dialogante chora, desespera, aparece em carne com as suas fraquezas.

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quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Bento XVI um papa mal amado? II

2. Tempo e ingratidão.

A nossa ligação ao tempo é por outro lado geradora de ingratidão.

Bento XVI é um pensador, e um pensador leva tempo a exprimir-se. E leva tempo para ser ouvido. Leva tempo a ser compreendido. A nossa época prefere o slogan. O slogan é o primo pobre da fórmula. A fórmula produz efeito pelo que carrega, o slogan produz efeito exactamente por não carregar nada consigo. É o mero efeito fácil.

Os pensadores podem ser capazes do efeito fácil, mas apenas para provar como é fácil o efeito. Quando Diógenes Laércio mostra Aristóteles a destruir a piada de mau gosto de Diógenes o Cínico, não mostra a grandeza da obra de Aristóteles. Apenas demonstra que mesmo sob o modo menor Aristóteles lhe é superior.

Heidegger dizia que Denken ist Danken. Pensar é agradecer. Como católico extraviado que era, sabia bem que o pensamento é duplamente agradecer: porque é um dom, e porque se dirige sempre a uma graça. E isso leva tempo.

Peter Seewald disse-o bem. O papa Bento XVI não é um político: para ele não existem as próximas eleições, apenas o juízo final. O espaço curto, o tempo apressado não são os seus.

Este papa exige tempo para ser compreendido. E nós não estamos agradecidos por isso. Que nos lembre que o tempo é o dom para a compreensão.

3. Igreja como ONG

Encontro católicos que se queixam de que muitos querem transformar a igreja numa ONG. Mas esta pergunta tem de ser levada mais longe. O sujeito é indeterminado. E é preciso determiná-lo.
Quem? Quem torna a igreja católica junto do espaço público numa ONG? Os próprios católicos, para começar. Porque falam sempre de João Paulo II e de Madre Teresa de Calcutá. A pergunta a colocar é: quantos católicos têm um discurso legitimador fora da acção humanitária da igreja?
Imagine-se um dito laico (conceito militar, se o há como mostra a etimologia (1)) que lhes lembre a simpatia pela grande figura mediática que é João Paulo II e a grande figura humanitária que é a Madre Teresa de Calcutá (2). Mas que pergunte a um católico para que servem as inúteis das carmelitas e os misantropos dos cartuxos. Que dizem hoje os católicos em resposta? Quando os católicos tiverem um discurso legitimador da contemplação e da mística escusam-se de achar a igreja uma ONG. Enquanto não o fizerem, são os primeiros a veicular a ideia de que a igreja é uma ONG.

Creio que boa parte da origem desta ideia é a incompreensão sobre o que é a santidade. O católicos pós-Vaticano II têm sobre esta uma visão muito popular. Os santos são bonzinhos. Quanto mais bonzinhos mais santos.

Devemo-nos interrogar. Seria simplificador, mas qualquer das seguintes frases tem uma boa parcela da verdade. Santa Teresa de Ávila era uma obstinada. São Bernardo irascível. Santo Agostinho um exaltado. São Gregório de Nyssa um vaidoso. São Basílio Magno um prepotente. São Tomás de Aquino um obcecado com o pensamento. Não é por acaso que os santos falam dos seus pecados. Não é mero exercício de retórica. Sabem por que região a energia da sua santidade alimenta igualmente as suas falhas.

Ser santo não é ser “bonzinho”, ser santo é ter uma obsessão com a Verdade sem compromissos, sem concessões. É ser radical no verdadeiro sentido. Mesmo que se pelas leis da entropia isso gere uma dissipação de energias desagradável às nossas sensibilidades. Ou talvez por isso mesmo (3).

Bento XVI não toca viola, não aparece junto dos pobres, não apresenta ar desportivo. Não é por isso um ícone mediático nem um humanitário, nem faz relações públicas. Não faz concessões para agradar. E a época que se diz arauto da sinceridade, afinal prefere o agrado à primeira. A época não lhe perdoa, em suma, que não tenha um ar inofensivo.


1 Uma rápida consulta do velho Chantraine conforta esta acepção.
2 Uma das análises mais apressadas sobre a Madre Teresa reside na valoração das suas dúvidas, demonstrando a muitos laicistas que seria apenas uma humanitária. Esta perspectiva apenas pode decorrer de uma absoluta ignorância do processo da fé. De que fala a longa noite da alma de João da Cruz senão disto? Como se o processo da fé residisse num permanente sorriso alvar.
3 Por isso uma época com medo da Verdade apenas pode ser radical no sentido desportivo, com capacetes de segurança e elásticos protectores. Não me lembro que santo dizia “entrego-me totalmente ao Espírito Santo”. O comentário profundo e humorístico de Jung a esta frase foi: “que imprudência”. Jung viu bem o que estava em causa.

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quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Bento XVI um papa mal amado? I

A. Introdução

Bento XVI é um papa mal amado, mesmo por muitos católicos (1). A comparação é sempre feita com o anterior papa, com o seu carisma, a sua aura.

Parece-me por isso importante perguntar o que leva ao que no fundo mais não é que ingratidão por um triplo sacrifício. Numa perspectiva de carreira civil e não de múnus espiritual, o cardeal Ratzinger investe-se numa nova carreira, muito mais exigente, numa altura em que o cidadão comum já é veterano da aposentação. Aceita essa nova função sabendo que iria ser sempre comparado em desfavor com o anterior papa. E como se não bastara, trata-se de um homem de estudo, discreto, para o qual o contacto com as multidões não é estranho (teve desde há muito funções pastorais), mas não corresponde a uma personalidade mais reflexiva, meditativa, pensadora.

Como explicar este desamor do espaço circundante? É essa a primeira questão que nos temos de colocar antes de analisar o que este papa traz de especialmente positivo para o papado.

B. Razões do desamor

Quando alguém é mal amado é sempre mais interessante olhar para quem não ama que para o mal amado. É a regra clássica da prestidigitação: olha-se sempre para a mão que não é objecto das luzes. Por isso é natural que se tenha de falar mais da época que o crítica que do papa.

Muitas das razões do desamor são comuns ao papado e à hierarquia em geral, por vezes estendem-se a toda a igreja. Mas neste papa aparecem com maior acuidade, ou com menores atenuantes que em relação a João Paulo II. Outras razões são-lhe específicas. Poderíamos descobrir mais, mas enuncio dez razões que me parecem as mais pertinentes.

1. Monocordia de instâncias

A nossa época conhece certas instâncias de análise e não sai delas: a) jornalística (diferente da informação, é feita de pressa, é a informação como substituto do pensamento); b) o comentário político (que pouco tem a ver com o pensamento político); c) a parasitagem científica (que mais uma vez é bem diferente da cultura científica).

A questão é que o que o papa faz é analisado nestas instâncias. Apanha-se uma pequena frase e é amplificada. Fala-se no plano jornalístico. O que interessa é a notícia, não a ideia, o pensamento. Critica-se a conferência de Ratisbona porque o papa teria sido politicamente infeliz. Fala-se no plano do comentário político. Critica-se o discurso sobre o preservativo em nome de parasitagem científica, como se a classe jornalística tivesse a profundidade em ciência de um Abbé Lemaître.

Os discursos teológico, filosófico, mas também o científico, são vítimas no nosso tempo. Ninguém os compreende nem tolera. A questão é que é esse é o discurso deste papa. Um espaço público monocórdico agasta-se com a complexidade de um discurso que não domina, que não percebe, cuja riqueza o insulta. Este desencontro de discursos agasta sempre quem não percebe. E é a época, cansada intelectual e espiritualmente, quem se agasta.

[1] Este texto foi apresentado em Abril de 2010. Na altura o que hoje pode passar por exagero passava por eufemismo.

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quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Pragmáticos, supersticiosos e concretos

É sempre elucidativo ter o ouvido atento para os dizeres de rua. Antigamente eram as varinas, os cantadores, as peixeiras que faziam correr as notícias. Como hoje em dia os seus filhos estão em postos de poder das mais diversas naturezas, é bom ver o que estes ilustres descendentes trazem para a praça pública.

Um dos dizeres mais comuns, porque de mero dizer se trata, como veremos, é o dos que se dizem pragmáticos, que dizem gostar de coisas concretas. Como a sua formação lógica e filológica é geralmente defectiva tenho de começar por fazer alguns reparos iniciais.

Pragmatismo vem do grego “pragmata”, as coisas, “o que está feito”. Na sua raiz aparece o agradável “prag” que também se encontra na palavra “prác-tico”. O pragmatismo é a ligação às coisas, ao que está feito. Ora são bem conhecidas duas explicações etimológicas, conjuntas ou oponentes, para a palavra religião. Para uns vem de re-legere (Jung sempre teimou nesta acepção), ter um especial cuidado, colher com particular atenção ou intensidade. A outra diz que vem de re-ligare, de ligar com particular intensidade.

A forma mais intensa e profunda de se estar ligado às coisas, de o fazer com cuidado e atenção, é por isso a religião. Em suma, a forma superior de pragmatismo é a religião. O que digo pode ser visto como um mero jogo de palavras. Mas nunca há “meros” jogos de palavras. O simples tom de desprezo de quem usa a palavra”mero" já mostra que está preparado a desprezar o que ainda não tinha sequer pensado.

Na verdade, se pensarmos o que significa a atitude religiosa, esquecendo agora o que seja o seu objecto, é sobretudo disso que se trata: um especial cuidado com as coisas, a forma mais intensa de ligação às coisas. Os tontos que se afirmam pragmáticos estão por isso a dizer que são particularmente religiosos. Mas o descuidado com que o dizem mostra apenas que não são, nem pragmáticos, nem consequentemente religiosos.

Os romanos, que tinham muitos defeitos, mas estavam bem longe de serem tontos – basta para isso ver os monumentos e ler os documentos que nos deixaram – opunham com veemência a religião à superstição. Também neste sentido o cristianismo foi herdeiro desta herança pagã da Europa. A superstição é o que “super-stat”, o que está sobre. É a superficialidade em bom rigor. Com frequência se ouve dizer que as religiões impuseram superstições, quando o simples conhecimento da História mostra que o cristianismo na Europa as tentou absorver ou compactuar com elas por razões de pacificação, mas sobretudo as combateu.

Os campeões do pragmatismo de pacotilha são assim meros supersticiosos, superficiais que dizem acreditar em qualquer coisa mas em boa verdade não sabem bem nem o que ela é nem porque acreditam. Acreditam no que chamam de pragmatismo apenas por superstição.

Agora a enunciação tem de ser lógica. Desde os gregos que se sabe que o concreto implica um número infinito de determinações. Ao separar cada classe das suas espécies operamos por diferença específica. Mas para chegarmos aos concretos, salvo para quem vivesse um mundo quadrangular, tipificado, a simples admissão de que existe o concreto implicaria a enunciação de infinitas diferenças específicas. Por isso o concreto é sempre o mais difícil de atingir. O que de mais concreto existe sob o ponto de vista conceptual é Deus, e só lhes ficaria bem gostar d’Ele, mas mais uma vez não percebem do que estão a falar.

Na linguagem popular, a que os homens públicos usam porque trazem na bagagem as suas heranças familiares, o “ser” e outras coisas quejandas são abstracções. Esquecem que não é por acaso que o problema do ser atravessa toda a cultura europeia. Fruto de uma vicissitude das línguas europeias, aquilo que começa por ser um mero verbo, discreto e quase invisível, mera muleta de um discurso, torna-se o centro da atenção dos melhores de dentre nós. E o “ser” é o que de mais concreto há, de mais intrusivo em toda a realidade, copulando-a gramatical e vivencialmente. Porque, o que mais uma vez esquecem os portadores de tão fresca bagagem, os extremos tocam-se realmente, e o que de mais concreto há acaba por ser sempre o mais abstracto também.

Quem desafia o ser desta forma turística, quem se aventura pela infinitude de determinações sem sequer delas ter consciência, apenas vive na indeterminação. Por isso os que se dizem pragmáticos e cultores do concreto na praça pública são apenas... supersticiosos que se lançam no infinito com a temeridade do imbecil.

Que consequências para a Europa e para o espaço público desta atitude? São mais uma vez fáceis de enunciar. O discurso transforma-se em tique nervoso, em obsessão compulsiva: temos de ser práticos, temos de ser pragmáticos, temos de ser concretos. As decisões tornam-se erráticas porque não assentam em nenhum critério, mas apenas na superstição. Como o infinito é tratado por esta gente como uma espécie de lixeira de resíduos industriais, deixa-se para as seguintes gerações a resolução de problemas ecológicos, esses sim realmente ecológicos no sentido de ordenação da casa, para as gerações futuras.

Como se dizem pragmáticos admitem-se todas as espécies de arbitrariedade. Não reconhecendo critérios profundos, nem exteriores nem interiores (é a mesma coisa no limite, mas esta é premissa funda demais para tão plácidas superfícies) agora são liberais ferrenhos, no dia seguinte intervencionistas estatais, amam loucamente o senhorio americano nuns lados assim como o odeiam noutros. Idolatram a natureza de um lado ou destroem-na noutro. Dizem que tudo é Europa para a destruir ou que pouco deve ser para a reduzir. Culpam o Estado ou o mercado com a mesma ligeireza. E ruminam abstracções que vão atirando à parede porque lhes desconhecem o modo de usar.

Se bem virmos não interessa muito a que conclusões chegam, porque mais não são de arbitrárias, sem critério, sem paradigma.

Em Teerão, se a memória não me falha, quando Roosevelt, Churchill e Estaline se encontraram, Estaline lançou graças de mau gosto sobre como destruiria os alemães depois de acabada a guerra. Roosevelt riu. Foi pragmático nesse momento, ou seja esteve num dos seus menos felizes momentos. Churchill não. Não achou graça, e não pode ele ser acusado de ser destituído de sentido de humor. Churchill não gostou dessas coisas concretas, nem foi pragmático. Foi algo muito mais importante, muito menos enunciável, mas não por isso menos essencial. Determinou-se pela decência.

É em conclusão o que são estes ignaros supersticiosos que se atiram para o infinito: indecentes.


Alexandre Brandão da Veiga







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quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Tagarelice e matemática III

Aristóteles tinha uma admiração especial por Sófocles. Ignoro qual fosse a preferência de Platão. A vida tem paradoxos aparentes e suspeito que tivesse um fraquinho por Aristófanes. O facto é que a multidão tagarela não se comporta como o coro da tragédia. Este expressa-se de modo fundamentado, porque tem a sua vida definida por um papel, uma função, já estabelecidos, e por uma métrica em que o pé limita o desvario incontrolado da expressão, mesmo que não o dos sentimentos. O coro pode nem sempre falar em uníssono, mas exprime-se de forma coordenada. A multidão tagarela que fala no ágora tem certezas absolutas que lhe vem do simples facto de ter direito a falar.

Podemos ir mais fundo. E eis que parece alguém que numa distância de cerca de vinte e três séculos dialogou com Platão. Um imenso matemático, um dos maiores domesticadores do infinito que a História viu. Falo de Cantor. Cantor sintetizou em poucas palavras o que sempre pensei: “a essência da matemática é a liberdade”. É evidente que o afirma com razão, porque sabe, e diz que a física se baseia em pressupostos, que são sempre metafísicos, que a limitam. Na matemática não existe essa limitação. Nem essa, nem a da experiência. Mas a matemática é liberdade também por outra via. É que, por força exactamente da disciplina que impõe, gera resultados bem mais livres que outras ciências. Pensar infinitos maiores que outros, espaços a infinitas dimensões, operações infinitas, por exemplo, disso são feitas as matemáticas. Saber que dois mais dois é verdade de merceeiro, mas não de matemático, que 1 ser menor que 2 não é uma evidência. Eis alguns aspectos da liberdade que a matemática dá, não por ser arbitrária, mas, bem pelo contrário, por ser disciplinada.

Todo o discurso pode ser responsável. E nem sempre o da matemática o foi formalmente. Euler é um dos melhores exemplos disso, Poincaré um pouco menos. Uns matemáticos podem ser mais sensíveis à forma e à fundamentação, outros podem ser menos. Mas em última análise o erro, a insuficiência e a trivialidade vêm ao de cima mais facilmente na matemática. A matemática é assim o paradigma do discurso responsável possível ao ser humano. Se segundo alguns, como Serres, nasceu a demonstração matemática no tribunal, tem a vantagem de estar isenta da distorção pelos interesses. O discurso responsável por excelência surge do desinteresse e da formulação. Deixa visível o resultado e o caminho. E é igualmente julgado por ambos.

Se na Academia não podia entrar quem não soubesse matemática, é porque se queria evitar a tagarelice. Ou seja, a falta de liberdade. A cacofonia em que todos falam ao mesmo tempo em função dos seus interesses, das suas formulações apressadas, das suas inépcias. É preciso saber algo para falar, e é preciso ter um discurso responsável. Só assim existe liberdade.

A limpeza de pele de que carece a democracia é exactamente a matemática, e não é por acaso que os regimes democráticos se mostram tão pouco à vontade com ela. Hoje em dia o prestígio e a visibilidade pública dos matemáticos é bem fraca, bem mais fraca que a que existia nas sociedades menos democráticos de séculos passados. É que a democracia gosta de liberdade de expressão, mas os parasitas gostam da oportunidade de tagarelice nobilitada que esta lhes dá. A impunidade passa a ser legitimação. E gostam da arbitrariedade punitiva que a tagarelice permite. Morre-se por uma frase, mesmo que todas as outras tenham sido profundas e sensatas. Destrói-se uma imagem com um slogan, ou um acto falhado, mesmo quem o fez tenha obra profunda atrás de si. A pequena frase assassina não é o dito de espírito, é o que foi dito sem ele, ou sobretudo sem auditório que o percebesse.

A repulsa de Platão compreende-se assim. Não é tanto o problema de ser o merceeiro a conduzir o povo, mas de querer fazer do Estado uma imensa mercearia, nos modos, na linguagem, na atitude de vida. E com a sua tagarelice confundir o mundo em vez de o iluminar. A sua organização mental é a da estante e da pipa de vinho, e a sua noção de mesura passa apenas pelo produto que não deve transbordar.

O tagarela faz perder tempo de vida aos outros e isso é-lhe indiferente. Esse o seu lado ético. Obscurece os caminhos da verdade. Essa a sua ciência. E parasita os privilégios da democracia, essa a sua forma de nobilitação à falta de outra qualquer.

Falei de Platão e esquece-me de falar da nossa época. Talvez. Deixo ao leitor a tarefa de fazer a transposição que achar mais justa.








Alexandre Brandão da Veiga

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quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Tagarelice e matemática II

Devo dizer que li Platão durante anos com alguma relutância. A sua repulsa pela democracia parecia-me suspeita, tão suspeita quanto o elogio dos estóicos médios, e tão divulgado por Políbio, do regime misto (de monarquia, aristocracia e monarquia). Mas não podemos esquecer que Platão não lidou com a ideia de democracia. Lidou com o que ela era no dia-a-dia, sobretudo depois da morte do seu aristocrático chefe, Péricles. A democracia entregue nas mãos do povo, em que o povo ficciona ser aristocrata e a grosseria se torna padrão, foi ao que assistiu Platão.

O comum é dizer-se que ele apresentou uma solução extrema na “República” e depois matizada nas “Leis”. De uma forma ou de outra, as suas utopias eram baseadas no controlo, e também as demais utopias, sejam de More ou de Campanella, me parecem espaços de horror, fundadas na ideia de que o ser humano é simples, e a felicidade se obtêm por vias lineares. O controlo e a uniformização aparecem em cada canto da utopia.

Mas este comum não é toda a história. Uma coisa é o que se diz, outra a que se fez. Não há memória que a Academia tenha tentado impor o seu monopólio em Atenas. O Liceu e o Pórtico e o Jardim mantiveram-se durante séculos lado a lado. Nem nada indica que a prática de Platão tenha sido controladora. Recolheu nas suas hostes o seu principal destruidor, Aristóteles, e tudo vai no sentido em que a admiração era profunda e recíproca. E os seus sucessores na Academia não foram platónicos ortodoxos igualmente.

Não foi o controlo censório que imperou na Academia, nem as sebentas do professor. Qual era o critério e qual, suspeito, foi a prática? Um velho adágio, mas cuja importância foi pouco sublinhada, entendido como mera anedota: “que não entre quem não souber geometria”. O controlo não era “que não entre quem não for platónico, quem não critique Homero e os poetas, ou a democracia”. O crivo estava na geometria, ou seja, e falando em linguagem actual mais generalizada, quem não souber matemática.

Porquê a matemática? Não porque a matemática não permita a discussão, por ser tudo certo nela. Essa é a mais uma via de lhe destruir a grandeza e a posição como cultura. A matemática não é mera técnica, ao contrário do que os visitantes das estantes livreiras portuguesas podem julgar. O seu papel na busca da verdade, e das verdades em geral, é essencial. Platão bem o soube. É que se existe o oposto da tagarelice é a matemática. Esta permite várias teorias, várias correntes (e Deus sabe quantas houve e há, e quantas se odiaram ao longo dos tempos entre si).

A matemática não é certa no sentido de ser uníssona, sem discussão, sem dialéctica. É exactamente oposto disso. Mas a matemática é o inverso da tagarelice. Cada coisa que se diz tem de se saber muito bem porque se diz. O inverso da tagarelice não é a conclusão certa, mas o caminho responsável. O que significa o aviso da Academia então? “Que não entre quem for tagarela”, quem usar a linguagem apenas para ocupar espaço, para encher o espaço sonoro e o tempo alheio com uma neblina que só obscurece a procura da verdade.

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terça-feira, 7 de setembro de 2010

Tagarelice e matemática I







Num maravilhoso e muito claro estudo sobre “O Politico” de Platão, Heidegger mostrou que o seu sentido geral era o de desmascarar a tagarelice. Bem sei que o adjectivo “claro” e Heidegger muitas vezes não vão de par, mas muita da má fama deste filósofo tem a ver com má tradução. É verdade que tem alguma tendência a partir palavras, naquilo a que Jung chamava de estilo esquizofrénico (referia-se a ele e a Joyce sem os nomear, se bem me lembro) o que mostra uma tendência da época algo agastante, reconheço-o. Mas algo não lhe pode ser imputável, porque sabia que tinha de usar a linguagem para falar do indizível, e não era poeta como Goethe.

A verdade é que a obra não é das mais estudadas de Platão e a abordagem, embora muito profunda, pode ser alvo de discussão. Mas as suas ideias parecem-me ainda hoje muito válidas. No espaço público impera a tagarelice, e isso tem implicações não só políticas, como éticas e de ciência.

Comecemos pelas últimas, porque isso nem sempre é mau. A tagarelice, em vez de desvelar, lança um nevoeiro sobre a realidade. Ocupa o tempo, é uma forma de matar o tempo. E mata-o efectivamente. Torna-o inútil. Mas obnubila o ser (continuo a sentir repulsa em maiuscular os conceitos filosóficos, porque me cheira demais a uma tendência para ênfase retórica que apenas esconde a platitude das ideias). Quanto mais se fala de forma desordenada, mais se esconde e desvia do que é essencial.

Eticamente faz nascer o irresponsável, que mais não é que o responsável por acaso, a título fortuito. Numa sociedade humana em que não haja a responsabilidade ética na construção do discurso, este torna-se aleatório e torna-se cada vez mais difícil perceber a diferença entre o sentido e o “flatus uocis”. Entre dois sujeitos falantes, ambos emitem ondas sonoras. Estabelecer os critérios que distinguem o que faz sentido e o que apenas o esconde torna-se cada vez mais difícil.

O ágora foi sempre o local do mexerico, do rumor, e em geral da tagarelice. Seja em que regime for. Mas a democracia inspira e instala um regime de desresponsabilização que tem os seus custos. A ideia é nobre e boa (a democracia é um ideal aristocrático por excelência, é bom de ser ver), mas a prática mostra que à liberdade se segue facilmente a cacofonia.

E é esse o sentido político desta obra. A democracia exacerba a tagarelice, dá-lhe um estatuto de discurso oracular, tende a tornar indistinto o discurso com valor do que o não tem. Não se trata mais uma vez de maltratar a democracia, trata-se tão simplesmente de a olhar com lucidez. A mais bela mulher já teve pontos negros. Esquecê-lo não ajuda em nada à sua limpeza de pele.

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quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Descarrilar

««- Mãe, quando chegamos?
- Ainda demora, aguenta, é a vida.
- O que é a vida, Mãe?
- A vida era nós as duas numa piscina, sinal que a Mãe era rica e não precisava de ir trabalhar.
- Oh Mãe, então isto não é vida?
- Não, Filha, isto não é vida».

Esta conversa, no banco de trás da 1ª classe / conforto do Alfa Faro - Lisboa, entre uma criança de três anos e a sua Mãe, deu-se no exacto dia em que saíram novos números sobre o desemprego em Portugal. A miúda era um amor, fazia uma conversa inteligente, animada, sem incomodar. Mas tive vontade de me levantar e de chamar todos os nomes que me ocorressem àquela Mãe. «Burra! Incompetente! Ingrata! Preguiçosa! Alienada! Mimada! Limitadíssima! A cair de parva!», e mais que viesse. Como é possível, com o País no estado em que está, ir para o trabalho depois de umas férias no Algarve e não dar Graças a Deus pelo emprego e pela possibilidade de passar uns dias na praia?! Como se desperdiça uma pergunta destas? «A vida era nós as duas numa piscina sinal que a Mãe era rica e não precisava de trabalhar».
Não vamos lá assim.
O amor salva, o trabalho regenera, a produtividade destribui, a ambição mobiliza e a educação prepara.

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