quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Bento XVI um papa mal amado? II

2. Tempo e ingratidão.

A nossa ligação ao tempo é por outro lado geradora de ingratidão.

Bento XVI é um pensador, e um pensador leva tempo a exprimir-se. E leva tempo para ser ouvido. Leva tempo a ser compreendido. A nossa época prefere o slogan. O slogan é o primo pobre da fórmula. A fórmula produz efeito pelo que carrega, o slogan produz efeito exactamente por não carregar nada consigo. É o mero efeito fácil.

Os pensadores podem ser capazes do efeito fácil, mas apenas para provar como é fácil o efeito. Quando Diógenes Laércio mostra Aristóteles a destruir a piada de mau gosto de Diógenes o Cínico, não mostra a grandeza da obra de Aristóteles. Apenas demonstra que mesmo sob o modo menor Aristóteles lhe é superior.

Heidegger dizia que Denken ist Danken. Pensar é agradecer. Como católico extraviado que era, sabia bem que o pensamento é duplamente agradecer: porque é um dom, e porque se dirige sempre a uma graça. E isso leva tempo.

Peter Seewald disse-o bem. O papa Bento XVI não é um político: para ele não existem as próximas eleições, apenas o juízo final. O espaço curto, o tempo apressado não são os seus.

Este papa exige tempo para ser compreendido. E nós não estamos agradecidos por isso. Que nos lembre que o tempo é o dom para a compreensão.

3. Igreja como ONG

Encontro católicos que se queixam de que muitos querem transformar a igreja numa ONG. Mas esta pergunta tem de ser levada mais longe. O sujeito é indeterminado. E é preciso determiná-lo.
Quem? Quem torna a igreja católica junto do espaço público numa ONG? Os próprios católicos, para começar. Porque falam sempre de João Paulo II e de Madre Teresa de Calcutá. A pergunta a colocar é: quantos católicos têm um discurso legitimador fora da acção humanitária da igreja?
Imagine-se um dito laico (conceito militar, se o há como mostra a etimologia (1)) que lhes lembre a simpatia pela grande figura mediática que é João Paulo II e a grande figura humanitária que é a Madre Teresa de Calcutá (2). Mas que pergunte a um católico para que servem as inúteis das carmelitas e os misantropos dos cartuxos. Que dizem hoje os católicos em resposta? Quando os católicos tiverem um discurso legitimador da contemplação e da mística escusam-se de achar a igreja uma ONG. Enquanto não o fizerem, são os primeiros a veicular a ideia de que a igreja é uma ONG.

Creio que boa parte da origem desta ideia é a incompreensão sobre o que é a santidade. O católicos pós-Vaticano II têm sobre esta uma visão muito popular. Os santos são bonzinhos. Quanto mais bonzinhos mais santos.

Devemo-nos interrogar. Seria simplificador, mas qualquer das seguintes frases tem uma boa parcela da verdade. Santa Teresa de Ávila era uma obstinada. São Bernardo irascível. Santo Agostinho um exaltado. São Gregório de Nyssa um vaidoso. São Basílio Magno um prepotente. São Tomás de Aquino um obcecado com o pensamento. Não é por acaso que os santos falam dos seus pecados. Não é mero exercício de retórica. Sabem por que região a energia da sua santidade alimenta igualmente as suas falhas.

Ser santo não é ser “bonzinho”, ser santo é ter uma obsessão com a Verdade sem compromissos, sem concessões. É ser radical no verdadeiro sentido. Mesmo que se pelas leis da entropia isso gere uma dissipação de energias desagradável às nossas sensibilidades. Ou talvez por isso mesmo (3).

Bento XVI não toca viola, não aparece junto dos pobres, não apresenta ar desportivo. Não é por isso um ícone mediático nem um humanitário, nem faz relações públicas. Não faz concessões para agradar. E a época que se diz arauto da sinceridade, afinal prefere o agrado à primeira. A época não lhe perdoa, em suma, que não tenha um ar inofensivo.


1 Uma rápida consulta do velho Chantraine conforta esta acepção.
2 Uma das análises mais apressadas sobre a Madre Teresa reside na valoração das suas dúvidas, demonstrando a muitos laicistas que seria apenas uma humanitária. Esta perspectiva apenas pode decorrer de uma absoluta ignorância do processo da fé. De que fala a longa noite da alma de João da Cruz senão disto? Como se o processo da fé residisse num permanente sorriso alvar.
3 Por isso uma época com medo da Verdade apenas pode ser radical no sentido desportivo, com capacetes de segurança e elásticos protectores. Não me lembro que santo dizia “entrego-me totalmente ao Espírito Santo”. O comentário profundo e humorístico de Jung a esta frase foi: “que imprudência”. Jung viu bem o que estava em causa.

1 comentários:

Ana Gabriela disse...

Alexandre

Descobri estes seus dois posts sobre as razões do desamor (talvez seja mais do mundo laico do que propriamente dos crentes) em relação a Bento XVI.
Vemos aqui expressas de forma clara as dificuldades que uma reflexão profunda encontra numa sociedade virada para o ruído, a superficialidade e o tempo fugaz.
E ainda faltam 7 razões que iremos acompanhar...

Esta análise muitíssimo interessante, perspicaz e oportuna acaba por incidir e retratar as tendências recentes da Igreja (popularidade e fraternidade a sobrepor-se à santidade e à discrição) e as dificuldades de compreensão de um Papa que reflecte de forma profunda sobre o mundo actual.
Não resisto, pois, a linká-lo no meu próximo post.
Ana