sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Para que serve a NATO?






Não pertenço a nenhum grupo. Nem aos que detestam a NATO, nem aos que a amam. A NATO é um instrumento e não uma identidade. Os que vêem a NATO como uma identidade sofrem de fetiche, os que a condenam sem mais sofrem de irrealismo. Como todo o instrumento, julga-se pela sua utilidade e riscos. Por isso, parece-me útil reflectir sobre o que é hoje em dia a NATO.

A NATO foi criada contra a União Soviética. Não é preciso ser muito arguto para perceber que a causa desapareceu. Nem tudo criado por uma causa tem de desaparecer por ter desaparecido a causa. Há templos romanos dedicados a deuses em que já ninguém acredita e não é por isso que têm de ser destruídos. Descobriu-se-lhes outras funções, nem que sejam de memória.

O que significa hoje em dia a NATO para a Europa?

Um meio de defesa. Sim. Mas com que objectivo? Caída a URSS o objectivo é incerto. Pode-se dizer que hoje em dia o seu mérito é a elasticidade, mas do mesmo golpe a obscuridade dos seus objectivos, a equivocidade das suas funções.

Os americanos não pretendem voltar a morrer em solo europeu. Só posso respeitar isso. Os americanos que morreram nas guerras mundiais tinham um pai ou avô europeu, pelo menos, sabiam que a matriz da sua civilização era a Europa, e a sua ligação mais forte era com a Europa sob todos os pontos de vista. Hoje em dia nada disso acontece. Isso significa que qualquer potencial inimigo da Europa sabe que a NATO tem limites no que está disposta a fazer pela defesa da Europa. Os americanos não virão dar o seu sangue, o que é razoável da parte deles, mas fragilizante para nós europeus. Temos uma defesa limitada, sob condição.

A regra do jogo é a de que qualquer conflito se deverá passar em território europeu. Desde a origem é assim. Os Estados Unidos não expõem o seu território à luta. A Europa é vista como terreno de guerra. Não centro de decisão e interesse, mas objecto de predação. É essa a regra da NATO e foi aceite pelos europeus. O primeiro território a defender é o americano e o europeu será defendido apenas e na media em que isso proteja os interesses americanos. Fazem bem os americanos em pensar assim, eu faria como eles. Problema dos europeus, se aceitam a dominação.

A NATO, como é paga pelos americanos, deixa uma de duas opções aos europeus: ou têm um nível de despesas militares iguais à dos americanos, o que não têm estado dispostos a fazer, ou então têm todo o incentivo de financiar directamente o complexo militar industrial americano. Vejamos: quando a Bélgica compra F 35, que todos dizem serem maus aviões, ganha duplamente: gasta em defesa um montante, e financia ao mesmo tempo nesse momento as forças americanas. A proporção relativa do esforço entre os Estados Unidos e a Europa reduz-se, porque significa que os europeus, em vez de financiarem forças armadas europeias, financiam as americanas. Por isso o incentivo é sempre o de comprar material americano, mesmo que seja de má qualidade, em segunda mão, e isso aumente a dependência miliar da Europa em relação aos Estados Unidos.

A equivocidade da NATO serve os propósitos europeus de curto prazo. Havendo divergências estratégicas entre os países europeus, tanto mais fortes quanto a Europa Ocidental e a Central e Oriental têm concepções diversas do que é a identidade europeia, evita aos países europeus de pensarem em longo prazo. A NATO é uma boa desculpa para a mediocridade e a falta de vista dos políticos europeus actuais.

Vejamos então o que é a NATO: ponto de equivocidade de objectivos, custo para a Europa, vista como terreno de chacina privilegiado, território secundário, custo acrescido para os europeus, gerador de menor eficiência militar, desculpa para a mediocridade dos cultores do curto prazo. Não é muito excitante como projecto, convenhamos. Significa aceitar que a Europa é e será sempre um mero protectorado dos Estados Unidos.

A alternativa é uma defesa europeia. E conheço bem as objecções:

a)       É muito cara. Há estatísticas para todos os gostos. Mas, do que vi, gastando a Europa cerca de 40% dos Estados Unidos em defesa tem dez vezes menos bons resultados. Quer dizer que cada unidade de eficácia miliar custa à Europa quatro vezes mais que aos Estados Unidos. Com os mesmos montantes poderíamos ter uma defesa quatro vezes mais eficaz. A actual situação é bem mais cara do que se afirma, por outro lado. A Europa financia Israel e a Palestina e ninguém a respeita. Cada vez que Israel destrói instalações na Palestina, a Europa financia a Palestina. Ao mesmo tempo a Europa ajuda economicamente Israel, e nenhum deles o ouve. A Europa não põe em respeito nem a Turquia nem o Norte de África que fazem chantagem permanente em relação à Europa. A solução tem sido a Europa financiar todos, a Turquia, a Palestina, Israel, o Norte de África. Se tivermos em conta o dinheiro gasto pela Europa nessa pacificação talvez vejamos que a actual situação é bem mais cara para a Europa e bem menos eficiente que forças armadas comuns.

b)      Não há objectivos comuns. E com razão. Mas trata-se de a Europa Ocidental deixar de pensar que é toda a Europa e ouvir a Europa Central e Oriental, que são tanto Europa quanto os restantes.

c)       É muito complexo. Vejamos: bem mais complexo foi unificar toda a economia, o que se fez em 1951 em 1957 e com os restantes tratados. O que se fez com os tratados fundadores da integração europeia foi violar toda a lógica da racionalidade dos Estados tal como contruída desde a Renascença, Vestefália, o que se bem entender. A construção europeia nunca deveria ter existido, numa perspectiva estritamente racional. Que tenha sido fruto de circunstâncias, tudo o é. Mas na base existiu uma decisão verdadeiramente civilizacional e não de mera gestão. A EFTA, projecto britânico, faz parte da racionalidade estatal moderna. A União Europeia é uma excrescência na perspectiva da História moderna. E por isso é uma construção majestosa, que deixa marca na História. A defesa exigiria a mesma profundidade civilizacional, o mesmo tipo de decisão muito além do meramente gestionário, para vir a ter lugar. Haverá circunstâncias que o irão impor, sem dúvida. Era bom que a decisão seja tempestiva, e antecipe o pior dessas circunstâncias.

O que me impressiona na nossa época é o facto de os europeus terem interiorizada a submissão. Uns esperam a submissão aos Estados Unidos, outros à China. Há uns anos atrás havia quem falasse mesmo de submissão em relação ao grande Brasil, a próxima potência mundial. O que há de comum entre todos estes é o de sentirem a angústia da liberdade, e não querem ser livres. Vivem bem em ser protectorados seja de quem for. A vida é apenas uma escolha de senhores, de submissões, a vida para esta gente não é livre. Compreende-se: são de extracção plebeia e os seus pais não lhes ensinaram a liberdade. A vida é mera escolha de submissões.

Somos uma geração falhada desde os anos de 1990. Falhámos a integração da Rússia, que tantas vezes nos deu sinais do seu interesse na casa comum europeia, aceitámos a diversão turca, que qualquer um poderia ver ser apenas isso, uma mera diversão, estamos a falhar a defesa única. Aceitámos uma profunda divisão da Europa entre a Europa Central e de Leste, que em geral acredita numa civilização europeia, e a ocidental que acha que somos uma mera encruzilhada de culturas (comissão europeia, em submissão aos ingleses, assim dixit).

Ser uma geração falhada não quer dizer ser uma geração condenada. Significa apenas que estamos a atrasar as decisões essenciais e as certas. Não quer dizer que deixámos passar o momento, mas apenas que os custos de o vermos aproximar vão crescendo. De falhada a condenada vai um passo: o da decisão. Mas isso requere sentido crítico, e temo bem que a nossa época seja muito falha dele.



Alexandre Brandão da Veiga




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