segunda-feira, 30 de abril de 2007

Estão feitas as apresentações

Não nos podemos queixar. A rede recebeu-nos bem. Com simpatia. Dando-nos não só o benefício da dúvida, mas manifestando mesmo boas expectativas. O que é lisonjeiro e nos cria mais obrigações. Nas últimas horas fomos referidos no Registo Civil, Miniscente, Origem das Espécies e Geração Rasca (neste caso já recomendando o que Pedro Lains escreveu lá mais em baixo). Estamos apresentados. Agora, é fogo à peça.
Pena que o fim de semana desportivo se tenha finado com 90 minutos de purgatório futebolístico. Quase sem um pingo de poesia, se exceptuarmos alguma prestidigitação miccoliana.

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domingo, 29 de abril de 2007

A 8ª arte


Adoro BD.

Dito assim, parece uma puerilidade. A banda desenhada não são os comic strips, as tiras do jornal, as histórias em quadradinhos dos super-heróis da Marvel, do Tio Patinhas e do Zé Carioca, do Super-Homem, Homem-Aranha, Batman e outras patetices? Não estou a ter apenas uma regressão infantilóide?

Quem acha isto não é só da Geração de 60: cristalizou nos anos 60. Ter uma opinião destas é o equivalente a achar que o rock moderno são os Beatles ou o cinema moderno é Bergman (para dar um exemplo sueco, embora não mudo!).

Nas últimas duas décadas, a BD (à falta de melhor termo) evoluiu profundamente. Longe vão os tempos dos patéticos heróis com super-poderes. Nos anos 80 as histórias evoluiram e começaram a ser conhecidas por graphic novels. Hoje, não é exagero classificar as melhores como arte gráfica. Vou dar os meus cinco exemplos favoritos. Mas asseguro que poderia dar outros tantos.

Art Spiegelman. O seu Maus, em dois volumes, é a narrativa mais arrepiante de Auschwitz que alguma vez li (e já li muitas, de This way for the gas, ladies and gentlemen, de Tadeusz Bororowski, a Auschwitz: a doctor’s eyewitness account, de Miklos Nyiszly (que funcionou como assessor de Mengele), a Death Dealer, autobiografia de Rudolf Höss (o kapo de Auschwitz), a várias obras de Primo Levi. Ao seu lado a Lista de Schindler é quase um documentário do Canal História. A quem não acredita, recomendo que se retire um dia, isolado, com os dois volumes, sem interagir com nenhuma alma humana. Eu fi-lo, e chorei como nunca na vida. O In the shadow of two towers, relato gráfico da psicose que o 11 de Setembro lhe provocou, é também impressionante (embora noutro sentido).

Frank Miller. Provavelmente o meu artista gráfico preferido. O seu Sin City, em 7 volumes, e o 300, sobre a batalha das Termópilas, tiveram um efeito único na História da Arte. Foram realizados filmes (o 300 actualmente em exibição) que não são meramente baseados nos livros: o seu objectivo é imitar os livros de Banda Desenhada. As cenas filmadas pretendem, não necessariamente ser realistas, mas reproduzir os quadros da banda desenhada. E são muito mais interessantes assim. É todo um novo paradigma de Arte. O cinema tenta reproduzir, e não meramente basear-se, na literatura gráfica. Já agora: Frank Miller também recriou Batman - mas um Batman humano, velho e que se tentea reinventar depois da Geração de 60.

Neil Gaiman. Gaiman é o protótipo do artista muiltifacetado. Inglês, escritor de ficção, poemas, contos e romances como American Gods ou Anansi’s Boys (com um bizarro e mágico sentido das coisas), argumentista de filmes como Mirrormask, a obra da sua vida é sem dívida a criação do mundo onírico e mágico de Sandman, uma banda desenhada que cria um universo mítico que se entrelaça com o mundo real com uma complexidade que considero apenas comparável ao de Tolkien e que conquistou diversos prémios literários. Note-se: prémios literários. Neil Gaiman é o argumentista, não o desenhador. A sua obra é fantástica: prolonga-se por mais de 2000 páginas e 10 anos. Começa a ser disponibilizada em Portugal pela Devir.

Fables. Um produto colectivo (Willingham, Medina, Leihaloha, Hamilton) que é o herdeiro, no século XXI, do Sandman de Neil Gaiman. É impossível descrever em poucas palavras uma ficção deste género. Mais uma vez, a sua complexidade narrativa e psicológica é tal que já vai no 8º volume, e continua. Também a Devir nos começa a trazer esta obra de arte.

100 Buletts, de Brian Azzarello e Eduardo Risso. Eu adoro o noir. Li todo o Philip Marlowe do Raymond Chandler (várias vezes), e vi os filmes com o Humphrey Bogart a fazer de Marlowe. É a única coisa que acho comparável a 100 Bullets, que tem personagens igualmente gráficas e um enredo muito mais denso.

BD, uma coisa infantil? Think again. É como achar que a música pop é o iéié dos anos 60. Como dizia há alguns anos uma astróloga da nossa praça, “Não julgue à partida uma Ciência que desconhece”. Neste caso, não julgue à partida uma Arte que desconhece. Tudo isto é um novo meio, é literatura, é arte. A 8ª Arte.

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Onde Agora a Europa Começa

Ontem, sábado de manhã, ala que se faz tarde em viagem relâmpago a Coimbra para apresentação de livro e sessão de autógrafos. À noite, já em Lisboa, os sms dão-me conta da reportagem da RTP sobre o Diário de Um Deus Criacionistal, romance que ainda vai provocar muita celeuma.
Mais tarde, ceia ibérica, em que um amigo me apresenta um projecto de televisão mais do que regional, em Espanha, e me conta o que é criar uma empresa com tecnologia state of the art, a primeira na Europa, com um apoio do Estado de 36 milhões de euros, combinado com um anualizado investimento publicitário garantido dos maiores grupos privados a operar na região.
Faço contas à vida: por cá, o voluntarismo de pequenos editores, de pequenos livreiros, de autores idealistas, dependendo de bem intencionadas referências, neste caso, da RTP (e no caso da Guerra e Paz já várias vezes as tivemos da SIC e da TVI). Ali ao lado, onde a Europa agora começa (já começou bem mais longe), e visando uma população de pouco mais do que 1 milhão de habitantes, apoios que bastariam para pagar a a programação de todo um ano num canal de televisão português que se propusesse como alternativa à oferta actual.
Estarei a comparar o incomparável? Livros e televisão não se misturam? Misturas e comparações a que noutro dia voltarei.
Estarei eu a queixar-me? Ora, ora, para já consolo-me com o delicioso descalabro do FCP e com o facto da "Geração de 60" ter sido citado, saudado e recomendado por:

Tomar Partido
Corta-Fitas
Blasfémias
Três Liberdades
Absolutamente Ninguém
A Arte da Fuga
No Portugal dos Pequeninos
O Inominável
Mundo ao Contrário

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sexta-feira, 27 de abril de 2007

Pela Rede da Amargura

Andámos escondidos um mês. Em treinos e posts esforçados, mais do que prometia a força humana. Apanharam-nos. Agora é ver o nosso nome arrastado pela rede da amargura. Recomendam-nos com gritos insanos. Passam-nos a favoritos sem pestanejar ou, de forma complexa e contraditória, até nos chamam the new kid of the block. Também encontrámos recomendações atlânticas. A nova esquerda senta-nos na cadeira dos blogs que fazem pensar. É o estado do mundo: entrámos directamente para as Ligações (em construção).
Obrigado a todos.
Eu, por minha conta e risco, para além da curta lista de favoritos que está aqui ao lado e que subscrevo, imploro a quem administra esta Geração que junte à lista o JPCoutinho.com, o Miniscente do Luís, o Sem Pénis Nem Inveja da Tati, a Esquina do Rio do Grande Manel, o Portugal dos Pequeninos e a muito saborosa cozinha da joana. Assim, de cor, é dos que me lembro.
Ah! Eu tinha avisado, num post que está lá mais para baixo: se há coisa que prometo é boa vizinhança!

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VIII. Elites: necessidade

Podemos então enfrentar a última questão que nos ocupa. São efectivamente necessárias as elites numa sociedade? São-no particularmente numa democracia?

Algumas linhas de resposta já foram dadas. Mas resta por fazer um balanço final.

Em geral as elites têm dois papéis numa sociedade.

Por um lado criam uma diferença de potencial criativa. Uma sociedade sem elites ou com elites ausentes é uma sociedade vegetativa. O palácio é fruto deste diferencial de tensão. A pirâmide igualmente. A ordem monástica, o exército regulado, a academia são outros exemplos desta diferença de potencial criativa. Numa sociedade sem elites, para além do mito do bom selvagem, impera a rotina, a indiferenciação, a monotonia. Mesmo o desastre, a cheia, a invasão, a conquista, a pilhagem, apenas aparentemente quebram esta monotonia. Na reconstrução volta tudo à mesma, dentro da medida do possível. As novas ideias, mas igualmente os novos modos de vida surgem das elites. As novas possibilidades de existência têm tipicamente surgido das elites. A vida sem elites é a vida burocrática.

Em segundo lugar a elite nega a primazia do mero poder. É um limitador do poder bruto. Não que a elite seja sempre sentimental e dada a preocupações com o ser humano e o seu sofrimento. Seria ingénuo e injusto dizê-lo. Mas o simples facto de uma sociedade sentir necessidade de manifestar o melhor, seja o que for este melhor, já mostra que o simples poder não se basta. Mesmo nas sociedades em que o poder bruto impera, como entre os hunos e muitas das sociedades históricas turco-mongóis, existe uma teoria sobre a valia da brutalidade. Os poemas cantam o número de cabeças empilhadas, o número de inimigos mortos. O poder bruto que se justifica já não é poder bruto. Sente carência de uma justificação.

Não é por isso irrelevante o tipo de elite que é necessária à democracia. Uma que prefira o poder bruto pode levantar alguns problemas à democracia. Mas uma que a aceite sem condições, sem impor o seu termo caso não preencha as suas finalidades de respeito do ser humano para além da simples aritmética é apenas conformista e acaba por ser irrelevante.

Os teorizadores da monarquia foram os grandes teorizadores do tiranicídio. Exactamente por amarem a monarquia diziam que monarquia “sem isto, não”. Os defensores da democracia actual não se arriscam a dar esse passo. Timoratos e rotineiros, podem teorizar a demagogia, as perversões da democracia, mas nunca impõem os limites a partir dos quais uma democracia já não merece viver. Para eles o rei continua a ser rei mesmo que se torne tirano. Vlad o Empalador provoca-lhes a critica, mas não a ânsia de revolução.

Que eu dê o primeiro exemplo, invocando os limites que ferem a razão de ser de uma democracia. Uma democracia que não acolha as quatro modalidades de elites é empobrecida e empobrecedora. Mas mais grave ainda, uma democracia que não gere, acarinhe, reconheça e respeite elites, essa não talvez não mereça viver. É uma democracia que nega a possibilidade do melhor, ou pelo menos que este exista colectivamente. Que os que vierem depois entendam.







Alexandre Brandão da Veiga

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quinta-feira, 26 de abril de 2007

VII. Elites: modo de formação

O modo de formação das elites pode parecer questão “meramente” histórica. Este advérbio, bem como as suas variantes “apenas”, “tão-somente” e quejandas mostram não a pequenez do factor, mas a dos locutores. Uma agastante tendência na cultura alemã, vinda do idealismo, tendeu a salientar o “apenas” psicológico, por oposição ao transcendental, ideal. Como se a alma humana fosse qualquer coisa de “apenas”. O “apenas” histórico padece da mesma tacanhez. Como se a experiência humana passada não nos influenciasse.

Os modos de formação das elites são fundamentais para se compreender as terapias para uma sociedade que careça de elites.

Se os modos de formação são muitos diversos, como o resultado é comum, têm apesar de tudo traços comuns. O que se visa é a criação de um colectivo e ao mesmo tempo o império do melhor pelo menos no que às elites diga respeito.

Para que haja um colectivo é preciso em primeiro lugar que haja comunicação. A criação de mecanismos de comunicação é uma das grandes medidas da consistência de um colectivo. Pessoas que não se falam entre si não geram grupos. Pessoas que não falam com os outros não introduzem o grupo na sociedade.

Em segundo lugar, é necessário que haja um conjunto de valores comuns. Este o lado mais espinhoso. Porque estes só em equívoco existem. Havendo culturas muito díspares, muito fragmentadas, uma educação pouco disciplinada, é raro que existam referências vastas e profundas que sejam comuns. Por isso nesta fase algo pobre da re-forma das elites temos de nos bastar com a comunicação, esperando que esses valores comuns apareçam mais claros.

Em terceiro lugar, a formação das elites exige sempre uma teoria. Nenhuma elite o é sem teoria. Esta pode ser lassa e pouco sistemática, mas tem de existir. Não há brâmane sem Veda, nobreza europeia sem gesta medieval e Bíblia, e mais tarde Aristóteles e Platão. Não há capitalista bem visto sem Bentham e Adam Smith. Se a elite fosse mero facto, nada se poderia dizer sobre ela. A teoria é que mostra os argumentos que justificam que esta elite não é apenas mais um grupo, mais é melhor. A teoria incide sobre os valores mas igualmente sobre os comportamentos, as atitudes, as formas de comunicação, a selecção de tópicos argumentativos aceitáveis.

Em quarto lugar é necessária uma convicção para que haja reconhecimento. Não basta que o grupo se forme como tal, por força da comunicação, que tenha valores comuns (seja o estudo, seja a arte militar seja a criação de riqueza, seja o carisma do sangue). Não basta uma teoria. É necessário que essa teoria seja comungada pela maioria da sociedade. Este último passo mostra que todos os anteriores fracassam em grande medida se não forem dirigidos à convicção. Bem pode o transeunte dizer que é fidalgo que ninguém lhe liga. Bem pode dizer que é génio da matemática, que apenas seria ridículo.

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quarta-feira, 25 de abril de 2007

Let the Crescent in

Let the Crescent in


A questão da adesão da Turquia à comunidade Europeia é para mim um assunto que desperta razões e emoções nem sempre alinhadas.
Começo por afirmar que a minha posição inicial sobre o tema e que ainda não reformulei é a de concordância em relação à dita adesão.
De facto parece-me importante nos dias de hoje ter a possibilidade de fazer ingressar no nosso espaço europeu um país como a Turquia que se tem batido denodadamente por preservar a separação do poder laico em relação ao poder da religião sobre o estado. Dir-me-ão que a maioria da população turca tem uma matriz social e religiosa bastante distinta da que prevalece nos países europeus e que a sua inclusão no nosso seio acarretará uma desvirtuação dos valores que nos têm caracterizado. Pois não necessáriamente, se tal evolução se der no sentido da inclusão desses 70 milhões de pessoas, permitindo-lhes um acesso mais democrático à livre circulação e debate de ideias, o que em minha opinião é a melhor forma de combater o isolacionismo e ultramontismo que caracterizam qualquer forma de fundamentalismo religioso ou outro.
Do ponto de vista económico, e na perspectiva de um completo leigo, parece-me fazer sentido nos dias que correm de inapelável e diria mesmo saudável globalização juntar esta massa crítica e esta enorma fatia de mercado á nossa existente união. Do pouco que me é dado conhecer da realidade da Turquia parece-me existir uma fatia pequena mas poderosa da população, mais afluente e influente, que se rege por padrões tão ocidentais quanto os nossos, dinâmica e empreendedora tanto cultural como económicamente e que poderá garantir o sucesso de semelhante operação se devidamente apoiada.
Votar ao ostracismo um país que, ainda que de forma inconstante ou não homogénea, demonstra estes desígnios parece-me no mínimo pouco prudente ou mesmo uma perigosa falta de visão ou ousadia políticas.
Quanto à matriz cristã fundadora dos príncipios, valores e da realidade europeia tal como a conhecemos ainda hoje, também aí o argumento contra me parece limitado. Mesmo a nível supranacional a separação entre o estado laico e o religioso deve prevalecer sem que com isso nos ‘canibalizemos’ e sejamos levados a aderir a valores ou condutas que consideramos menos próprias de sociedades ditas evoluídas. Aqui sim, a franca e afirmada supremacia dos nossos valores quando exercidos de forma cordata e sedutora prevalecerá como acontece nas relações com outros países fora do eixo Europa/América, como é o caso da China, Índia e outros quejandos.
É verdade porém que esta posição enferma de várias fragilidades assentes em outras tantas interrogações.
Ao elaborar este meu raciocínio confio e presumo que este será o curso esperado e que o preço que teremos que pagar não venha a ser demasiado elevado. Refiro-me não tanto aos argumentos económicos de um pequeno país como o nosso infelizmente ainda tão dependente da ajuda externa da comunidade (muito por culpa nossa que temos vindo a desbaratar e a absorver mais por interesses particulares, mesquinhos e tantas vezes venais os dinheiros comunitários) mas mais aos argumentos securitários que apregoam a grande fragilidade a que estaremos sujeitos dando assim o flanco ao temível fundamentalismo islâmico.
Também aqui não possuo uma resposta cabal que me deixe totalmente confortável. O meu ‘gut-feeling’ é no entanto que este mesmo argumento poderá constituir exactamente a melhor arma para os trogloditas que despudoradamente se têm apoderado do destino dos milhões de almas que vivem sob o seu jugo, fundamentalmente por poderem garantir um continuado estado de obscurantismo e consequente ausência de informação e esperança a essas populações.
Um factor final que me parece de importãncia primordial: Esta adesão, claramente defendida pelos EUA por razões estratégicas que se me afiguram fáceis de entender, poderá ela mesmo vir a ser grandemente torpedeada pela obstinada política de confrontação que os mesmos EUA têm vindo a desenvolver na era Bush. De facto a détente na região do Médio Oriente para a qual os mesmos EUA tanto poderão contribuir será, a meu ver, uma pedra de toque para garantir o sucesso ou insucesso desta evolução.

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O futuro de Portugal está nos velhos

Neste “Geração de 60”, onde por magnanimidade me consentem, há uma certa inclinação, e uso a expressão da Sofia, para a “reinvenção do espaço público”. Ou seja, há alguma vontade de contestar o “establishment” político-partidário e há mesmo alguma vontade de doutrinar. Eu, por nanologia teórica, caio mais para o lado dos estados de alma. Com um egotismo do tamanho do Empire State Building, só me apetece mergulhar na ociosa bruma dos boleros de Machín, ou perder-me convulsivamente em livros como “Núpcias de Fogo” ou “Escravas do Amor”, que o velho Nelson assinou com o pseudónimo Suzana Flag. Do contributo para o “espaço público”, das mais ou menos totalizantes explicações sociológicas, defendo-me com o poético estoicismo de dois versos de W.B.Yeats, “Those that I fight I do not hate / Those that I guard I do not love”, que resumiam o dilema de um aviador irlandês na I Grande Guerra, obrigado a combater o império germânico e a defender o britânico.
Mas hoje, nesta radiosa tarde de 25 de Abril de 2007, “somewhere among the clouds above”, deixei-me também levar pelo “lonely impulse of delight” do guerreiro de Yeats e ouvi o Presidente discursar. Ouvi-o fazer o elogio dos jovens e, por uma conjugação de circuitos nervosos, genes e outros compósitos químicos que o Nuno Lobo Antunes saberá descrever, senti o rubor do ciúme inundar-me o rosto e um irado despeito retesar-me os músculos. Cavaco Silva, o meu presidente, errou ao dizer: “Confio no futuro de Portugal porque confio na sua juventude”. O futuro de Portugal, e nem sequer as estatísticas o desmentirão, está nos velhos. Não tenhamos medo do qualificativo. Velhos, homens e mulheres com mais de 45 anos, vá lá, com mais de 50, são hoje velhos. “O inconformismo é timbre da juventude” Cavaco dixit e eu acho que ele deve imediatamente despedir o assessor de 38 anos que há dois meses lhe anda a preparar o discurso. Inconformistas são os tipos de 50 anos que fazem empresas, são os cientistas que já vão nos 60 e continuam a inventar verbas para desenvolver laboratórios e sustentar institutos. Inconformistas e visionários são os empresários e gestores de 50 e 60 anos que investem no Brasil, na China, na Índia ou em Angola. Inconformistas são os professores de 50 anos que continuam, nos liceus e universidades, a acreditar que o conhecimento vale a pena.
Em Maio de 68, em Paris, de um lado estavam os jovens para quem era proibido proibir, do outro estava De Gaulle que tinha “une certaine idée de la France”. Hoje, e em retrospectiva, poucas dúvidas me assaltam sobre em quem se poderia confiar para garantir o futuro da França. Que valores estamos a transmitir aos jovens, interrogou-se ainda o Presidente. O culto demagógico da juventude é, certamente, um dos que não lhes devemos transmitir.

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O Portugal de António Barreto

A televisão portuguesa está a passar uma série de programas intitulada: Portugal. Um Retrato Social, de autoria de António Barreto, conhecido sociólogo português. Ainda só passaram quatro episódios de um conjunto de sete e apenas consegui ver dois, mas a amostra permite antever as linhas gerais da história que está a ser contada. Acresce que podemos completar a nossa perspectiva sobre os programas com a leitura de outras obras do autor, em particular, os dois volumes intitulados, precisamente, A Situação Social em Portugal (Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 1996 e 2000).

Antes de mais, os elogios, começando pelos mais importantes. António Barreto revela aqui o seu culto pela qualidade. A série tinha que ter o melhor realizador disponível, Joana Pontes, e a melhor banda sonora, de Rodrigo Leão. Não foram escolhas baseadas na fama ou no êxito, mas sim no gosto do autor, o que deu desde logo uma primeira surpresa agradável, provando serem excelentes escolhas. Depois, o programa tinha de passar num canal importante, em horário nobre, sem intervalos e transmitido em ecrã grande. Presumo que terá custado conseguir isto tudo mas também presumo que Barreto não teria feito o programa se não tivesse conseguido atingir os níveis de qualidade que alcançou. A RTP e a sua direcção também estão de parabéns por terem levado a cabo esta aposta que, aliás, aparece no contexto de outras apostas de programas de qualidade.

Enfim, tudo isto até parece um mundo de sonhos, que sabemos que não é. Mas não é pecado falar de como as coisas são boas quando elas o são.

Um outro elogio que se pode fazer à série ou, pelo menos, ao que até agora dela vi, refere-se ao facto de ela conter um forte elemento pedagógico. Essa pedagogia tem duas vertentes. A primeira é que, ao centrar a apresentação do “Portugal social” numa perspectiva de 40 anos, lembra os avanços do país, muitas vezes esquecidos. O segundo elogio que se deve fazer é que o texto é simples, claro e centrado na observação da realidade descrita pelas imagens.

As duas qualidades elogiadas encerram, todavia, também alguns defeitos – estranho seria se tudo fosse perfeito.

Quanto à perspectiva diacrónica, aos quarenta anos da análise, o que vi em dois programas mostrou-me dois pesos e duas medidas. António Barreto explica a relativa pobreza social do país pelo facto de muita gente ter chegado há pouco tempo à vida urbana, já que uma grande parte do país era nos anos 1960 ainda rural. Explica também, em parte pelo menos, a desordem da organização do território pelo mesmo tipo de razões. Todavia, quando olha para a justiça, não centra a análise na comparação com o que era a justiça há 40 anos. Faz um enunciado dos maus funcionamentos e das injustiças do sistema judiciário nacional, o que não chega como explicação. Também não chega dizer que a justiça funciona mal porque o legislador não actua, por falta de interesse.

É preciso ter em atenção que a justiça portuguesa funciona mal porque é toda pública e não pode ser privatizada e por isso tem de tratar dos problemas dos pobres (que são muitos) juntamente com os da classe média. Ao contrário dos hospitais, por exemplo. Também são necessárias explicações económicas: a justiça funciona mal porque é atrasada e tem níveis de stock de capital físico e humano ainda relativamente baixos.

Quanto à simplicidade do texto dos programas e à aparente simplicidade da análise, que devem ser elogiadas, também elas têm consequências que podem não ajudar a uma boa interpretação do que é o País. Deve desde já avançar-se que a simplicidade de análise é propositada. Barreto gosta de dizer que odeia o “sociologuês” e prefere lançar frases simples em contextos simples, ainda mais porque parte do princípio – permito-me presumir – de que o leitor ou ouvinte é inteligente. Mas ao apresentar as matérias num registo simples e narrativo, o autor não explicita convenientemente a profunda interpretação que subjaz a todo este exercício. É ela que as coisas podiam ser muito diferentes do que verdadeiramente são e que isso não acontece porque não houve mobilização política ou social que levasse a um melhor resultado.

Ora esta interpretação de que Portugal “está no estado em que está” porque somos socialmente inaptos, politicamente inábeis ou economicamente ineficientes carece de profundos exercícios de demonstração que uma “simples” narrativa não dá. Não é este o espaço para uma interpretação mais liberal da realidade portuguesa – uma em que se defende que o resultado a que chegámos é fruto da melhor acção de todos os agentes e que se não chegámos a outro resultado é porque os agentes são estes e não outros. Isso aparecerá, penso eu, em outros locais.

Posso todavia acrescentar que essa interpretação alternativa que prefiro decorre de comparações internacionais. Essas comparações são cruciais para a correcta análise das sociedades, sobretudo das mais atrasadas como a portuguesa. Mas elas não são convenientemente contempladas nos dois episódios que vi desta série, o que é uma última deficiência que gostava de mencionar. De facto, é necessário recorrer constantemente a cuidadosas comparações da realidade nacional com o que sucede em outras partes do mundo. Para serem cuidadosas, essas comparações não podem ser estáticas. Têm de envolver comparações dinâmicas referenciadas a diferentes períodos históricos. Portugal da primeira década do século XXI não pode ser comparada com a Grã-Bretanha de Tony Blair, mas sim com a Grã-Bretanha de algures longe no século XX ou mesmo de finais do século XIX. Para se perceber Portugal dos nossos dias, não se pode olhar apenas para a Espanha de pós 1986. É preciso também conhecer a Espanha de antes da Guerra Civil de 1936-39. Quando esses exercícios são levados a cabo, somos levados a concluir que todas as nações têm os seus erros e que, regra geral, não há erros piores do que os outros (a não ser, obviamente, os de ordem moral). Esta linha de interpretação leva a conclusões mais reconfortantes do que as dadas pela visão de Portugal que António Barreto nos dá.

O debate está e sempre estará em aberto e é seguramente muito agradável fazê-lo tendo como pretexto um programa de televisão da qualidade do Portugal. Um Retrato Social.

Ver: http://www.rtp.pt/wportal/sites/tv/portugal_retrato/index.shtm

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terça-feira, 24 de abril de 2007

Citando Julius Evola a proposito das elites

“Foi justamente observado que uma elite é uma veia, uma veia preciosa, mas no entanto uma simples veia: são precisas outras veias e é necessário todas as veias convergirem, se bem que só a central, a ocultíssima, avance realmente e predomine, enquanto se oculta e actua subterraneamente. Se não houver ambiente, não há ressonância: se faltarem as condições internas e externas para que todas as actividades humanas possam adquirir novamente um sentido, para que todos possam exigir tudo da vida e, erguendo-se à altura de um rito e de uma oferta, possam orientá-la em volta de um único eixo que não seja simplesmente humano — se faltarem estas condições, será inútil e vão todo o esforço, não haverá semente que possa germinar, e a acção de uma elite fica paralisada.

"Mas são precisamente estas condições que são inexistentes hoje em dia. Mais que nunca, o homem de hoje perdeu todas as possibilidades de contacto com a realidade metafísica, com o que está antes dele e atrás dele. Não se trata de crenças, de filosofias, de comportamentos: nada disto conta nem servirá de obstáculo; a este respeito, na realidade, a empresa seria fácil. Como já se disse no princípio, no homem moderno existe um materialismo que, através de uma herança de séculos, se tornou agora quase uma estrutura, um dado congénito do seu ser. Sem que a consciência exterior se dê conta disso, este materialismo estrangula toda a possibilidade, desvia toda a intenção, paralisa todo o impulso e condena todo o esforço, mesmo quando orientado na direcção correcta, a ser apenas uma «construção» estéril e inorgânica. Por outro lado, o modo e o conjunto das condições de vida quotidiana a que, na civilização de hoje, já quase nenhum dos nossos contemporâneos pode subtrair-se; o tipo predominante de educação; tudo o que consciente ou inconscientemente se sofre como sugestão e condicionamento por parte do ambiente e da psiche colectiva; os ídolos, os preconceitos, as formas de julgar e de sentir, do falso conhecimento e da falsa acção que se enraizaram nas almas — tudo isto reforça a corrente."
[Julius Evola, Revolta contra o mundo moderno, 1934]

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VI. Elites: reconhecimento

Entramos por isso no problema do reconhecimento das elites. O que se pode reconhecer como elite? Esta pergunta é em suma questionar-se sobre quais as hierarquias de valores, mas igualmente qual a imagem do mundo que subjaz a cada sociedade concreta.

Se é assim em geral, pode dizer-nos muito sobre o espírito das actuais democracias.

A primeira prevenção que temos de ter é a de que reconhecimento não significa idolatria. O facto de durante mais de 1400 anos ter havido uma classe aristocrática a dominar a Europa não impediu revoltas, ressentimentos, ódios, desprezos. Em certo sentido é saudável que a população em geral desconfie das elites, que não as aceite acriticamente. Isso gera um duplo desafio: para as populações em geral e para as elites. Mas mesmo que a relação seja negativa existe sempre um prévio reconhecimento das mesmas como elites. É por serem elites, ou por serem estas elites concretas, que geram suspeição.

Em algumas democracias ainda se reservam papéis para as elites de nascimento. Não apenas a nobreza, mas igualmente os filhos de gente famosa. Espera-se deles um exemplo, e mesmo até em partidos de esquerda como os alemães, este papel é reconhecido. Podem ter um papel de mediação, exactamente porque se reconhece que o seu centro de interesses os torna mais equidistantes dos conflitos da modernidade.

Mas em geral a elite que é mais recusada é a do nascimento. Isto mostra o medo que a nossa época tem do simbólico, do irracional, e em suma da carnalidade incontrolada. É bem mais fácil lidar com uma sexualidade rotinada por teorias mais ou menos freudianos, que com um carisma que não é socialmente controlável como o da nobreza.

As elites intelectuais e económicas têm lugares diversos consoante os países.

Certos países tendem a ter mera condescendência em relação aos intelectuais, como os anglo-saxónicos e vêm sempre com desconfiança quando estes se pretendem imiscuir nos assuntos públicos. São pessoas que se reconhecem exactamente por se presumir a sua impotência e se repelem quando ela não é acatada. Noutros são vistos como os arautos do futuro, os vates da modernidade.

As elites económicas são em geral mais mal vistas pelos países latinos, mas igualmente por outros países do continente europeu. Numa os empresários são vistos com desconfiança, noutros países como profetas do futuro.

O que gera consenso nas democracias actuais são apenas as elites vivenciais. Os que pelo seu modo de vida dão um exemplo. Seja o filantropo, o abade que se dedica aos pobres, a Madre Teresa de Calcutá, os heróis das organizações não governamentais. O modo de vida, seja que modalidades ele assuma consoante os países, é o que suscita ainda algum respeito, embora não destituído de ironia. O paradoxo é exactamente que estas elites são respeitadas em grande medida porque destituídas de poder.

Este quadro geral mostra mais uma vez um estreitamento de vida que caracteriza a modernidade.

Este estreitamento mostra-se na perspectiva das elites de duas formas: pelo estreitamento das fontes elitárias e pela recusa da cumulação.

O estreitamento das fontes elitárias vê-se pelo facto de como consenso geral apenas as elites vivenciais sobrarem. As restantes são ou geralmente recusadas, a de nascimento, ou valoradas de modos bem diversos consoante os países (as intelectuais e as económicas): as vivenciais são aceites porque destituídas de poder, dele desligadas.

A recusa de cumulação mostra-se pelo facto de ser mal visto ou mesmo tido por pouco credível sequer que exista uma cumulação de fontes elitárias. Ser aristocrata, rico, culto e exemplo de vida parece uma impossibilidade absoluta. O mundo actual não acredita em São Bernardos nem em São Gregórios Magnos.

A visão do mundo moderna exige que o ser humano seja pobre, ou seja, especializado. Caracteriza-se mais pela falta, recusando a completude, a sobreabundância.

Na perspectiva do pensamento do fenómeno elitário isto tem uma implicação. A elite apenas é admitida na medida em que seja lacunar, em que surja como compensação. Apenas se reconhece uma fonte elitária porque as outras não se acredita que existam e muito menos que se cumulem. O homem completo, a vida afortunada é coisa que não é credível na nossa época.

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segunda-feira, 23 de abril de 2007

Avisar a Malta

Olhando com atenção para o actual governo, não se descortinam facilmente ministros que mostrem preocupação genuína com as coisas europeias (talvez com a excepção do da Agricultura). Trata-se de um governo com uma agenda essencialmente nacional, demasiadamente satisfeito com as conquistas na política caseira e com pouca ambição de dar cartas em Bruxelas. Essa falha não tem sido muito notada na imprensa, o que significa provavelmente que a maior parte de nós pensa que a politica europeia não tem importância.

Ora isso é um erro. É um erro compreensível neste pequeno e periférico país, mas é um erro sério. Nas vésperas de Portugal assumir a presidência do Conselho Europeu, será talvez conveniente recordar a importância da política europeia para a política nacional. A maior atenção que se dê a essa questão não traz benefícios imediatos, pois a conjuntura não é favorável. Mas será porventura conveniente pensar que essa pode ser uma das vias da retoma económica do País.

A história da integração europeia tem um traço genético muito importante, que é o de que as fases de maior abertura dos mercados são geralmente acompanhadas por políticas de compensação dos efeitos negativos dessa abertura nas economias menos desenvolvidas. A abertura dos mercados tem de ser um objectivo último de qualquer governo, uma vez que traz sempre beneficio para a soma das partes. Todavia, existem algumas limitações na capacidade das economias mais atrasadas em se adaptarem a mercados mais concorrenciais. Isso decorre de algo fácil de entender: a adaptação requer investimentos e conhecimentos, factores relativamente escassos nos países mais atrasados.

O principio das politicas públicas de compensação à abertura esteve na génese da integração europeia. A CECA, de 1951, serviu à reconstituição dos mercados de carvão e de aço dos seis países fundadores, o que implicou o fecho de fábricas na Bélgica para permitir à Alemanha, mais eficiente, o aumento da produção e da exportação. Ora esse passo foi seguido de um outro: o de compensações financeiras, sobretudo de origem alemã, que ajudaram à criação de novas ocupações para os operários belgas dispensados das fábricas encerradas. A CEE, cujo tratado fundador de Roma agora se celebra, seguiu o mesmo caminho que desde logo se manifestou na PAC e nas ajudas financeiras à Itália meridional, medidas hoje mal vistas mas muito úteis à época. Saltando uns anos, encontra-se o mesmo tipo de politicas de compensação aquando da adesão da Irlanda e do Reino Unido, em 1973. Pouco depois, foi criada a política regional das Comunidades que visava, precisamente, ajudar à conversão das economias desfavorecidas, da Irlanda e de algumas regiões britânicas. A lista de exemplos não acaba aqui. Em 1979, a Irlanda aderiu ao Mecanismo das Taxas de Câmbio (percursor da moeda única) depois de ver assegurado o reforço das ajudas financeiras. A adesão da Grécia à CEE, em 1981, também foi seguida de transferências financeiras. E, claro, o exemplo mais conhecido, da adesão de Portugal e Espanha, em 1986, e dos chamados pacotes Delors de ajudas financeiras que se lhes seguiu.

Esta vaga de politicas europeias de cariz social-democrata de ajuda aos mais pobres foi de certo modo passada para segundo plano por causa da preocupação com a estabilidade cambial e monetária que levou, a partir do inicio da década de 1990, à criação da União Económica e Monetária. A criação da UEM e do Euro tornou-se premente a partir do momento em que a crescente liberalização dos mercados pôs em risco o equilíbrio das balanças de pagamentos nacionais. O Euro também foi uma medida que trouxe maior controle dos Estados sobre o mercado e por isso também está no código genético da UE (os verdadeiros monetaristas preferem várias moedas em concorrência) e era uma medida urgente. Mas implicou o aumento da concorrência entre os Estados membros e a redução da capacidade de intervenção dos governos nas economias nacionais.

Ora, desta vez, o aumento da concorrência não foi acompanhado por medidas adicionais de apoio às economias mais fracas. As politicas de coesão, como também são conhecidas, continuaram. Mas o importante notar é que não foram reforçadas, ao contrário do que aconteceu em ocasiões anteriores de aumento da concorrência.

As condições actuais para se pedir o reforço das politicas de coesão não são porventura as melhores, uma vez que há mais países a precisar de ajuda e uma vez que a economia europeia está a crescer devagar. Todavia, se as opiniões públicas nacionais são um elemento crucial do desenho das politicas europeias, é tempo de o governo português, porventura em diálogo com outros governos interessados, chamar atenção para a necessidade de se dar maior atenção à politica europeia de ajuda aos países mais necessitados. Agora não é cedo para se começar a preparar a mudança necessária e talvez a melhor forma de o fazer é falar dela. Em suma, a “estratégia de Lisboa” devia ser outra.

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A dita superioridade da arte

A intervenção do João Luís Ferreira tem a vantagem de repor uma discussão velha, se não como o mundo, pelo menos de dois ou três séculos.

Mas temo bem que padeça de vários males que contaminam a cultura moderna, sobretudo a portuguesa.

Indo à questão regional para começar. Num país sem cultura científica e de fraca criação científica parece-me pouco proveitoso que se menorize a ciência. Um país que produz a grande ciência pode-se dar ao luxo de a desprezar. Pode haver um Heidegger quando existe Riemann e Mach. Quando alguém diz que despreza a nobreza de nascimento sem ter a certeza dos seus costados, existe sempre alguma suspeição de inveja. Mesmo que não seja esse o caso, exige-se uma maior contenção. Da mesma forma, que um pais que nunca foi capaz de produzir grande ciência tenha correntes que a desprezem, isso não doura os seus brasões.

Em geral, a questão é bem mais complexa.

Em primeiro lugar, porque a matemática é uma forma superior de poesia. E é bem conhecido que na física o critério de escolha último entre duas teorias semelhantemente eficazes é o da elegância. A ciência, a grande ciência, faz-se também com base em critérios estéticos.

Mas estes critérios estéticos não são apenas uma característica de uma tribo, a dos físicos teóricos, ou a dos matemáticos. É que a grande ciência é em si mesma uma forma superior de poesia.

É conhecida a frase de Pessoa, que afirma que o binómio de Newton é tão belo quanto a Vénus de Milo. Não se pode dizer que estivesse Pessoa actualizado nos seus conhecimentos matemáticos. Quando vivia já a topologia, a álgebra abstracta, o cálculo tensorial, bem como a lógica matemática tinham desenvolvimentos em relação aos quais o binómio de Newton fica como uma arma do tempo da pedra lascada. Quando Pessoa escreve, já Hadamard escrevia e nem Poincaré era vivo. Hilbert era já um clássico e lidar com geometrias não euclidianas era uma banalidade universitária. A matemática de Pessoa é feita para impressionar críticos literários e não matemáticos.

Esta lógica de oposições nasce em grande medida com a modernidade, que opõe as ciências às letras, na sequela da velha discussão francesa entre Antigos e Modernos.

A unidade do saber era dado para os Gregos e acarinhado pelos autores cristãos europeus, mesmo que existissem especialidades. Mozart apaixonou-se pelas matemáticas e Valéry não lhes era indiferente. Isso não os impediu de terem maestria na arte.

Se a ciência e a arte lidam com os grandes problemas do ser humano (se de modo incompleto ambas, essa é outra questão), se é certo que ambas são, quando idolatradas, desvirtuadas da sua última função, que é de natureza religiosa (longa demonstração que aqui não farei), ambas vivem de uma mesma origem e alimentam-se reciprocamente.

Serres mostra como a geometria nasce da discussão judicial, sendo certo que esta nasce da poesia. Mas a natureza matemática da poesia é também irrecusável, desde a poesia numérica medieval (antepassada da poesia dita concreta) até à métrica grega e latina, ou a do Mahabaratha.

Todos os grandes cientistas foram cultores da arte. Quando vejo um que a despreza já sei que é apenas uma quantidade negligenciável na História da ciência. Mas inversamente, mesmo que disso muitas vezes não tenham consciência, os grandes artistas vivem de estruturas matemáticas. A regra de ouro na arte clássica lembra-nos disso. E não podemos esquecer que um soneto é antes do mais uma estrutura matemática. Números de sílabas, de versos, de estrofes, sequências de rimas e conteúdos. Sem estrutura matemática um soneto não se reconhece.

E Goethe, que era em mais cristão do que dizia, e bem longe de ser medíocre poeta, lembrou que o canal do Panamá era bem mais importante que toda a poesia do mundo. Em parte “boutade”, mas em parte lembrança de que a grandeza tem de sofrer algumas humilhações para não sofrer de inflação e não se esquecer de que todas as grandezas nascem na Terra ou por ela passam.








Alexandre Brandão da Veiga

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A Superioridade da Arte

Não obstante a pertinaz e omnipresente campanha dos cientistas, que dos seus castelos de marfim conquistaram o mundo com mais eficácia e sucesso que qualquer político de qualquer tempo, a história da humanidade que importa não é tanto a descoberta do átomo quanto foi a invenção da poesia.
O átomo se existe, e não parece haver dúvidas que possa existir na constituição da matéria, não existe para nos aumentar a consciência nem para nos revelar a transcendência da nossa espiritualidade. Conhecê-lo, não adianta nem atrasa a evolução da humanidade. Evolução, voltar para fora, não se confunde com progresso que, a existir, tem de ter determinada a sua finalidade e o seu ponto de partida. O progresso infinito que geralmente significa indefinido é uma impossibilidade lógica que tem alimentado as fantasias de utopistas, melancólicos e outros socialistas.

A evolução é de certo modo revelação; mas, o que é que se revela? A distinção dos caminhos seguidos pelo pensamento científico e pelo pensamento artístico dá-se na resposta a esta interrogação. Para o pensamento científico, a revelação é a observação e a verificação motivada pela investigação da matéria (com um alargado e sempre impreciso sentido para a matéria, normalmente associado ao visível ou visionável). Para o pensamento artístico, a revelação é a descoberta da própria realidade segundo um pensamento encarnante (a arte é sempre encarnação como inserção da ideia no real).
Destes dois caminhos, o primeiro será uma via de afastamento da filosofia e o segundo de constante alimento e incessante adunação a esta. A arte procura a filosofia porque de certo modo são criadoras de realidade e operam pelo excesso criador do pensamento. Todavia, a arte afastando-se da sua essência, e até negando-se, sofreu um processo de conquista por parte do pensamento científico.
Ciência e arte são caminhos divergentes na procura da sabedoria: o pensamento científico, define o mundo sensível como universo limite do conhecimento e tem por finalidade aceder à verdade por via da penetração exaustiva na matéria que reconhece como constituinte do mundo sensível; o pensamento artístico, abre a sua interrogação ao mundo das ideias que se esconde e mostra no mundo sensível, ou seja estabelece as relações necessárias à inteligibilidade do mundo e à sua inserção num pensamento transcendente.
O pensamento artístico está, ao contrário da ciência, próximo da vida. O universo da existência humana movida pelo elo que é o amor, propõe uma via de conhecimento e de acesso à sabedoria que ultrapassa, incomensuravelmente, as possibilidades limitadas de que se investe a ciência.
A ciência é, essencialmente, o seu método, ou seja a investigação das possibilidades de que se atribui para se validar. A arte, é uma via de sabedoria aberta e livre que reconhece e até se baseia na subjectividade do pensamento para criar a realidade em que vive e a própria realidade do mundo.
O risco da arte se deixar seduzir pela ciência é o risco da arte deixar de ser arte, pois, a ciência e a arte correspondem a caminhos de vida divergentes: o primeiro, identifica os fenómenos e não se liberta da aparência ou da pura exterioridade a que os fenómenos estão sujeitos enquanto expressão acabada da realidade; a segunda, convive com as realidades psicológicas e espirituais, suas representações e respectiva fonte de animação, aproximando cada um do seu universo subjectivo mas incessantemente confrontado e acompanhado pelo outro, pelo semelhante que dá a medida da diferença, da originalidade e da razão de ser da individuação.

II

Entre ciência e arte é justo distinguir entre conhecimento e saber, como o tem feito, entre nós, a filosofia portuguesa, pois, o conhecer é o que pressupõe uma relação acabada e exterior entre sujeito e objecto e o saber é uma relação incindível entre o que conhece e isso que conhece, podendo mesmo considerar-se que o que conhece na medida em que participa ou é participação desse conhecimento. O cientista permanece o mesmo perante a obra do seu conhecimento; o artista identifica-se com a sua obra.
Aquilo a que chamamos ciência é a aquela forma de conhecimento baseada na experiência, ou seja, aquela sequência trópica que vai da observação, à hipótese e da experimentação à conclusão. Aquilo a que chamamos arte é a criação de obras através das quais se exprime um pensamento compreensivo da realidade mediante um processo que tropicamente poderíamos sequenciar do seguinte modo: visão, concepção e contemplação.
Talvez fosse mais claro distinguir a ciência e a arte como dois modos do pensamento, sempre coexistentes na história, afirmando-se como vias para o conhecimento ou para a sabedoria. Diríamos, talvez, que na história ocorrem fases de predomínio desta ou daquele modo do pensamento.
No tempo presente, em que vivemos as sequelas do domínio da ciência e da técnica configuradas no domínio da tecnologia, há uma reflexão que nos parece voltar a estar no centro da filosofia. A questão será, então, esta: é lícito tentar compreender a verdade, ou a realidade, a partir de um método analítico que passa por dividir a matéria para a reconstruir posteriormente, ou seja, será lícito o conhecimento com base na divisibilidade dos corpos que constituem a natureza? Parece-nos que essa forma de conhecimento será sempre redutora, pois, o que se estuda no pressuposto de que a matéria cognoscível é divisível, é a possibilidade de colocar nas partículas temporariamente indivisíveis a unidade significativa da matéria e não nos corpos tal qual eles são criados ou dados à vida intelectiva. Esta via, abre com toda a evidência atestada pelos tempos que vivemos, um conflito entre os caminhos da inteligência do homem que se dirigem para a atribuição de significado ao mundo criado, e na forma em que foi criado para a nossa compreensão, e essa realidade que se afirma validada por microscópios e outros equipamentos que ao centrarem nessas formas invisíveis e sem inteligibilidade a verdade que procuram a separam irreparavelmente do homem. Característico do caminho da ciência, o corte, a pulverização ou a diluição, são adversos da compreensão da realidade a partir de uma criação que abrace num todo harmonioso as partes, os singulares e os perfeitos. Este é, porém, o caminho da arte. Este é um caminho explicativo; aquele será sempre descritivo e obstrutor da compreensão intelectiva.

III

Se o nosso tempo nos coloca dificuldades, uma está acima de todas: a abolição da filosofia, que é a abolição do pensamento filosófico, conduz o mundo contemporâneo para a atribuição de realidade ao que não tem possibilidade de compreensão inteligível e, com isso, torna inviável o pensamento artístico porque não aceita a criação como uma realidade, nem o pensamento como construtor de uma interpretação da realidade. Esta recusa que resulta numa inviabilização do pensamento filosófico e artístico é feita em nome da redução da realidade a um valor arqueológico que só a ciência pode manipular de acordo com uma moral que não se limita nos seus processos de investigação e que apenas pretende determinar a descrição de um hipotético facto sensível. Nessa descrição cabe tudo o que surge conforme surge no plano natural e não cabe nada do que surge pelas elaborações do pensamento por mínimo que seja. O mundo é descrito pela sua força instintiva e determinista e negado pelas possibilidades que se abrem pela razão.

IV

Conhecer o homem fora de uma moral é negar o homem. O homem é um ser de razão e toda a sua finalidade existencial é determinada fora da natureza. Não se nega o evidente, mas afirma-se o que se esconde: ou seja, não obstante se encontrarem semelhanças entre o homem e o mundo e até a potencial harmonia sempre instável do homem com o mundo, o homem não é um ser resolvido, determinado ou cingido ao mundo de que parece um filho especial.
O homem surge mergulhado numa realidade de que se liberta como se fosse de uma outra natureza. Esta consciência de si numa simultaneidade instante que pela aparência integra o homem no mundo e pela inteligência o torna um construtor de outro mundo sobre este e com este, é o paradigma da situação do homem. Por isso, a arte será sempre entusiasmante, pois, opera sobre a realidade actual e torna-a numa realidade moral, ética e lógica.
Para a ciência, a moral é apenas um peso que se vai transportando e que, pelo caminho se vai aliviando, ou seja, a ciência pelas suas finalidades, pelo seu método e pela sua natural auto-legitimação não tem intrinsecamente moral: trata de corpos mortos, de seres mortos e de realidades mortas.
A sombra fria do laboratório onde o cientista se isola contrasta com a luz auroral do atelier onde o artista recebe o mundo.

V

Pode dizer-se que os artistas são raros no nosso tempo? Sim, isso pode-se, e até acrescentar, que muitos são mais cientistas que artistas. É que o pensamento dominante é ainda o que teve origem na ciência moderna e esse pensamento invade todos as formas e quadros mentais do homem. Ora a arte sofreu essa ocupação por via dos artistas imbuídos dessa crença na ciência. Em vez de combaterem pela originalidade, singularidade e superioridade da sua intuição e do seu saber muitos entregaram-se à vida fácil que o cientismo propõe e de que se constitui. Hoje, um consenso como “as verdades científicas” mas, por isso mesmo, um conformismo. O mundo dito ou traduzido por um qualquer especialista de um qualquer ramo da ciência é das mais elucidantes experiências para se compreender de que forma a ciência é pelo seu próprio método de uma insuportável limitação intelectual.

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V. Elites: mérito e inerência

A nossa época vive da rotina de elogiar o mérito. Este elogio é feito acriticamente geralmente por pessoas que o têm pouco.

O problema é que o argumento do mérito tem sempre de ser visto com muita cautela.

A modernidade odeia a inerência, mas para o poder fazer tem de a negar onde ela existe. Há coisas que pura e simplesmente inerem. Uma visão lúcida da realidade obriga-nos a reconhecer isso. Há pessoas que são mais bonitas que outras e dificilmente terão mérito na coisa. Mas isso não lhes diminui o valor da beleza.

Mas tomemos um exemplo. Peguemos numa criança perfeitamente banal. Demos-lhe a melhor das educações. Foi obra vantajosa, admito. Mas poderemos fazer com que ela se transforme num Gauss? Poderemos ter a esperança que ela seja um Platão? Aceitemo-lo: as probabilidades são poucas.

Que mérito tem alguém em nascer inteligente, em ser dotado para ganhar dinheiro e fazer negócio? Não escolhemos a nossa inteligência, nem as nossas capacidades para expandir o nosso património. Existe tanto mérito nisto quanto se ter nascido aristocrata.

É evidente que tudo depende do que fazemos dessas qualidades com que nascemos. Mas isso é igualmente verdade para as elites de inerência. Não é raro ver dois irmãos, igualmente nobres, um acabado em duque e outro mantendo-se como mero fidalgo de província.

Por outro lado, o valor do mérito pode conflituar igualmente com o de democracia. Alguém que por mérito adquire o poder, se for esse o seu único fundamento do poder, estaria então legitimado a pisar os direitos dos outros só porque não subiram por não ter mérito.

O mérito não é por isso a grande trave mestra da democracia, como não o é a inerência. Ela pode viver bem com ambas, desde que lhes estabeleça limites. Pode viver bem com ambas reconhecendo ambas, mas sabendo que não são elas as traves mestras da democracia. São instrumentos que ela pode usar, não o seu fundamento.

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domingo, 22 de abril de 2007

França 2007: impressões a quente

Nada como uma noite eleitoral. Desta, e para já, seis notas soltas.
Em primeiro lugar, o impressionante nível de afluência às urnas. Numa Europa descrente e distante da participação política, 85% é algo verdadeiramente marcante (para alguns comentadores, reconciliação tributária do recente aprofundamento da experiência referendária).
Em segundo lugar, a emergência de uma nova geração. De protagonistas (o esforço dos que não eram novos foi parecê-lo 'a outrance'), mas também de discursos (com novos temas, novos enfoques, novos estilos) e de métodos (neste aspecto, o papel da internet nas campanhas de Sarcozy e de Ségolène foi eloquente).
Em terceiro lugar, a centralidade do tema da mudança. De maneiras diferentes, os três candidatos mais votados apostaram na urgência de mudar a política e de refundar a República.
Em quarto lugar, a expansão do arco democrático à custa do esvaziamento de propostas não sistémicas (exemplo paroxístico, o resultado de Sarcozy em prejuízo de Le Pen).
Em quinto lugar, a substancialização do discurso em torno de valores e de projectos de sociedade. Sarcozy e Bayrou foram, neste aspecto, as grandes referências. Ségolène, coitada, foi apenas o que podia ser: uma encenação, frouxa e vazia como todas as encenações que não são mais do que isso (Montebourg, há que reconhecer, merecia ter dado a cara por alguém mais consistente).
Em sexto lugar, a tónica de uma ideia sobre França e o apelo ao envolvimento directo dos Franceses na construção do futuro (na sua intervenção, em cima dos primeiros resultados, Sarcozy falava em sonho…). Depois de décadas de perda económica, social e cultural, a França ameaça poder vencer uma enquistada crise de confiança. Há um voluntarismo patriótico no ar e, com ele, uma mobilização que espreita. Mas agora longe da vulgata nacionalista dos radicais: é outra coisa, inclusiva, focada numa ideia de projecto, enquadrada pela integração europeia… É algo novo e a que importa estar atento, porque é bem capaz de vir a dar frutos.
Mas, para já, vamos ver o que dá o piscar de olhos de Sarcozy ao centro e ao centro-esquerda. Muito mais decisivo, certamente, do que as meras contas que possa fazer com Bayrou…

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Vícios Privados, Públicas Virtudes

Vivia em NY quando surgiu o affair Levinsky. Creio que a importância do incidente foi incompreendida na Europa, e para quem estava embrenhado na cultura americana, era frustrante a incapacidade para fazer compreender o significado da história para o cidadão dos EUA. O argumento europeu é de que se tratava de aspectos da vida privada, irrelevantes para a coisa pública, e reveladora de uma hipocrisia subjacente ao puritanismo norte-americano. Estreita visão. Em primeiro lugar, ressalta óbvio que o tempo ou acto que um Presidente permanece ou pratica na sala oval não é privado, da mesma maneira que não é quarto de hotel o gabinete de trabalho de qualquer funcionário de uma empresa. A responsabilidade do exemplo, aliás, cresce com a responsabilidade do cargo. Em segundo lugar não é linear que seja legítima a sedução de um homem com o poder de um presidente dos EUA sobre uma estagiária vinte anos mais nova, porque a capacidade de seduzir, ultrapassa, com probabilidade a pessoa, para ter origem, em parte, no cargo que ocupa. Como dizia Kissinger: “o poder é o maior afrodisíaco”. Nesse sentido há um abuso de poder, não do ponto de vista legal, mas ético. O argumento de que é hipócrita a condenação pública porque todos temos “telhados de vidro”, faria sentido se o grau de exigência em relação a quem ocupa um lugar de Estado, como a presidência dos EUA, fosse idêntico ao de qualquer cidadão comum. Parece-me óbvio que não é, nem poderá ser. Naturalmente que a sua actividade é escrutinada em proporção à responsabilidade da posição que ocupa, como proporcional é também a medida de requisito, e a severidade do juízo. Por outro lado, numa sociedade multiracial e multicultural, exige-se que o Presidente seja o símbolo de um conjunto de ideais comuns a todos os homens, e que os juntam no tecido social, independentemente de raça ou credo, como seja o valor da família e da verdade. Nesse sentido, é de toda a importância conhecer o currículo da vida privada de um candidato a ocupar um lugar de topo na hierarquia do Estado. Não acredito, e temos sobejas provas disso, que uma pessoa falha de carácter no seu exemplo de vida, se venha a revelar diferente quando ocupa uma posição de poder. Pelo contrário, as falhas de carácter revelados no passado, são a mais das vezes ampliadas pelo poder que se detém. Todos somos de alguma forma, reféns do nosso passado. Um político com “esqueletos no armário” é potencial alvo de chantagem, e vê a sua liberdade de juízo e actuação limitada pela eventual revelação de erros ou falhas.
Votei no Sr. José Sócrates para primeiro-ministro, não lhe pedi que calculasse a resistência de uma viga. Por isso, é-me indiferente o seu grau profissional, mas não me é indiferente saber se usurpou títulos ou falsificou classificações, porque não o poderia reconhecer em algo muito simples, mas de particular importância para quem detém o poder: ser um homem de bem.

Nuno Lobo Antunes

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sexta-feira, 20 de abril de 2007

IV. Elites: institucionalização

As elites podem estar mais ou menos institucionalizadas. As elites são sempre um fenómeno colectivo, mas isso não significa forçosamente institucionalização.

A institucionalização tem evidentes vantagens. A primeira é a de garantir continuidade, mesmo que haja evolução. Havendo institucionalização há garantia, pelo menos empírica, de que o funcionamento colectivo não se esfarela de forma imprevisível. Em segundo lugar são garantidos mínimos de qualidade. A juridificação da nobreza gera imensas taras, mas tem a vantagem de limitar a fraude. Os cursos universitários nunca garantiram a competência, mas ao menos tenderão a expulsar as formas mais grosseiras de incompetência. A terceira é a de garantir um ponto de contacto. Estando institucionalizada, sabemos como nos dirigir a uma elite. É mais fácil dirigirmo-nos a uma universidade que a uma tertúlia, por exemplo.

O problema é que a institucionalização também tem as suas taras, que são o reverso das suas vantagens. Tendem a ser corroídas pela inércia e por isso podem destruir o génio, a inovação. A continuidade passa a valer por si mesma, gerando o mandarinato. Os próprios processos que garantem os mínimos de qualidade podem criar produtos indesejáveis, desde o citador de sebentas, ao accionista profissional que nada sabe do negócio, mas apenas ser perito em assembleias-gerais de sociedades. A existência de pontos de contacto pode ser outros tantos impedimentos de real comunicação. A porta do palácio está por vezes lá apenas para mostrar que se impede a entrada. Pode ser mais fácil descobri a morada de universidade, mas por vezes é mais fácil comunicar com a tertúlia antes referida.

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quinta-feira, 19 de abril de 2007

Elites, Democracia e do Verdadeiro Drama Actual

A afirmação de Alexandre Brandão da Veiga segunda a qual à Democracia sempre aborrecem as Elites, merece reflexão.

Se entendermos o significado de Democracia como o Governo da maioria, constituindo-se sempre as Elites uma minoria, afigurar-se-á de simples evidência a necessária oposição da Democracia às Elites. Todavia, se entendermos Democracia como o Governo do povo, essa oposição não apenas é menos evidente como se poderá mesmo esbater ou não ocorrer sequer.

Socorramos aqui do alto exemplo de S. Tomaz e recorramos a Aristóteles.

Para o Estagirita, havia três regimes perfeitos: a Monarquia, ou seja, o governo de um, talvez o mais sábio; a Aristocracia, ou seja, o Governo dos melhores e a democracia, ou seja, o Governo do povo ou, por consequência, também, da maioria, i.e., da maioria em que sempre se constitui um povo.

Avisado, realista, tópico, Aristóteles não desconhecia a situação do mundo, do movimento do mundo, de geração e corrupção. Assim, bem compreendeu também como a Monarquia sempre tendia a degradar-se em Tirania, a Aristocracia em Oligarquia e a Democracia em Demagogia.

Perante isso, propôs Aristotéles a Poliarquia, ou seja, um regime composto em simultâneo pelos três regimes puros, como, em toda a modernidade, tem vindo a suceder, como sucede com o nosso próprio regime: o elemento monárquico dado na figura do Presidente da República, o elemento aristocrático dado no Parlamento e o elemento democrático dado pelo Acto Eleitoral.

Na Poliarquia via talvez Aristóteles a possibilidade de um equilíbrio entre os três elementos que impediria a sua degradação simultânea e a consequente degradação da própria Poliarquia naquilo que, por inesperado, não chegou a conceber.

A Poliarquia, porém, quando se ignora a si mesma, quando todos os seus elementos se ignoram a si mesmos, pode deixar senão de se degradar, como hoje todos temos já plena consciência e vasta experiência. E degradação dá-se, segundo tudo leva a crer, exactamente nisso que hoje se designa já, comum e vulgarmente, como Partidocracia: conjugação ou misto de Tirania, Oligarquia e Demagogia. O drama actual.

Há regeneração possível?

Esis uma bela interrogação. Quanto às Elites, própria ou impropriamente ditos, dada a sua polissemia, haverá, primeiro que determinar o seu exacto significado, quem, por consequência, verdadeiramente as constitui e, compreendendo, por fim, o seu modo próprio de acção, compreender também a sua actual situação.

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III. Elites: modalidades

Historicamente encontro os seguintes tipos de elites:
a) De nascimento;
b) Intelectuais;
c) Vivenciais
d) Económicas.

É curiosa a imensa contradição da modernidade em relação às elites de nascimento. Recusam-nas, mas instauram princípios que apenas nelas se encontram na excelência. Com efeito, a modernidade idolatra a infância e a irracionalidade. Ora a elite de nascimento é a que se instaura desde a infância, em que o elemento diferenciador típico é a formação desde a infância, e em que o espaço do não dizível, do irracional, tem um lugar por definição.

O património fidalgo é por definição irracional, não é transmissível em escolas, por palavras. A atitude, os gestos, os gostos são elementos constitutivos desta elite, mas não se podem verter em regras formais; reconhecem-se como evidências, pura e simplesmente. Todos os manuais de etiqueta e boas maneiras são incompletos e geralmente são apenas ridículos. Não é a palavra o seu elemento adequado.

Pode-se achar ridículo mais uma vez que se refiram as elites de nascimento quando se fala de democracia. Mas estas tiveram um papel determinante na formação da “democracia” britânica (este conceito levar-nos-ia longe), na Alemanha contemporânea ainda se reserva um lugar de excepção em muitos Estados à nobreza de sangue, mesmo na laica França em muitas comunas os "maires" mais longevos são aristocratas.

As elites intelectuais caracterizam-se por deterem certos saberes e uma aptidão para a aprendizagem. Quais os saberes valorados positivamente, se o ferreiro na tribo africana, se a matemática e a ciência em geral na Alemanha Guilhermina diz muito sobre a sociedade que as constitui e acarinha, mas não muda o seu traço essencial: é o saber que é valorizado.

As elites vivenciais caracterizam-se por um determinado modo de vida. Se o monge ou o guerreiro, se o eremita (porque também este pode ser uma figura colectiva), se o cavaleiro andante, mesmo sob a forma do médico sem fronteiras, mais uma vez diz muito sobre o que é valorado positivamente por uma sociedade. Mas mais uma vez este não é o facto estruturalmente determinante. É o modo de vida que constitui este tipo de elites.

As elites económicas caracterizam-se pelo que têm. Não tanto pela quantidade do que têm, mas por deterem o que é economicamente considerado valioso. Quando o dinheiro é desprezado, o judeu que o tem em abundância é desprezado. A terra é bem mais valorizada. O marajá indiano tem mais pedras preciosas que o industrial de Manchester, mas fora da Índia não constitui uma elite em sentido próprio. O industrial e, mais tarde, o financeiro da City são mais positivamente valorizados.

Duas elites parecem estar aqui omitidas. A da beleza física e as políticas.

A explicação é simples e não há omissão. É a que a da beleza física não gera corpo colectivo. Falta um dos elementos para ser elite, portanto. O ideal clássico do kalos kai agathos, do belo e do bom, levava à apreciação da beleza, mas nem os gregos aceitavam que houvesse um grupo colectivo dos belos. A beleza física mantém-se como dado individual. Quando muito no plano micro social da adolescência, o grupo dos bonitos opõem-se ao dos feiosos. Mas não tem tido historicamente a força para impor um paradigma colectivo.

A omissão das elites políticas é que espantaria mais o comentador repleto de banalidades. Mas se bem virmos, essa elite enquanto tal nunca existiu, é mero equívoco. Um político que seja de baixa origem e ignaro e sórdido no modo de vida e pelintra, que o seja em cúmulo, nunca seria visto como elite. Por isso todos os que conquistam o poder político se procuram associar a um dos tipos de elites. Ou fazendo um casamento nobre, como os bárbaros que se misturaram com as nobrezas galo ou hispano-romana, ou procurando cultivar-se, como Odoacro quando domina Roma, ou definindo um padrão de justiça ou de dissolução como modo de vida, como Augusto ou mesmo Heliogábalo. O detentor do poder pretende-se paradigma do modo de vida, seja ele o distanciado do povo (como o sátrapa persa) seja o próximo do povo (como os “primeiros ministros” holandeses do século XVII). Ou então enfardam-se de riquezas, o que é o fenómeno mais característicos de sociedades por vezes sofisticadas mas estéreis culturalmente como o de muitos impérios centrais como os turcófonos.

De uma forma ou de outra, a classe política, para ser elite, não se consegue bastar com ser classe política. Carece que ir beber a pelo menos uma, quando não a várias das modalidades de elites antes referidas.

Por isso é sempre erróneo falar de elites políticas. Por si só são meros ocupantes de cargos. Se nada mais são que isso, apenas são vistos como usurpadores, meros ocupantes. Não como elites.

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quarta-feira, 18 de abril de 2007

II. Elites: função e atitudes.

Percebe-se assim a necessidade para a democracia das elites. O poder não se estabelece por si mesmo, mas fundamenta-se no melhor. Não é apenas o equilibro aritmético de forças que impera na sociedade.

Por outro lado, sendo uma realidade colectiva, não fica dependente do acaso de um profeta que surja do nada para lançar o princípio do melhor. Espera-se que haja um corpo social que o segregue. Que o anuncie, que o defenda.

O problema é que as elites podem ter várias atitudes perante o espaço social.

Umas vezes são predatórias. Querem conquistá-lo, dominá-lo. É o que acontece com os conquistadores de outros povos, os romanos, os europeus, mas igualmente todos os formadores de impérios. Mas é o que acontece quando as “vanguardas” pretendem dominar a mentalidade pública.

Outras vezes são servidoras. Servem os mecanismos do poder, ou pretendem servir o público em geral. O grande perigo reside no facto de muitas vezes ser difícil de diferenciar a atitude de serviço da de subserviência.

Outras ainda são indiferentes ao espaço público. A História está cheia de casos de elites que apenas desprezam o espaço público, como os cínicos, os epicuristas, os gimnofisitas na Antiguidade, mas igualmente as nobrezas em fase de decadência procurando apenas o prazer. Este tipo de atitude surge quando o ócio se transforma em finalidade exclusiva da elite, e em que esta é regida por um princípio de prazer. A reacção comum a este tipo de elite acaba por ser, depois de uma fase de fascínio, a da indiferença.

A atitude é importante como tópico de análise porque mostra que não há apenas um trabalho ético a ser assumido pela sociedade como um todo, mas as próprias elites têm de participar dele. Uma adequada dosagem de atitudes, variando a cada momento, é sempre a melhor forma de reintegração das elites e reforço do seu papel. A contínua prevalência de apenas uma delas redunda na repulsa, no desprezo e no descrédito.

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terça-feira, 17 de abril de 2007

I. Elites: o que são


A democracia lida mal com as elites. Sobretudo com a sua teorização. No entanto, nenhum regime precisa mais de elites que a democracia. Uma ditadura não se descaracteriza por não as ter. Sob o ponto de vista da vivência individual pouco muda estar dependente do sultão ou de um chefe de piratas barbarescos. No entanto, uma democracia sem elites cai na demagogia, acabando na tirania mais tarde ou mais cedo.

Por isso é preciso pensar as elites de uma forma um pouco mais profunda. É essa uma condição necessária da sobrevivência da democracia.

A primeira questão que nos temos de colocar é o que são. As elites caracterizam-se por duas traves mestras: o colectivo e o melhor.

A elite nunca é uma pessoa isolada. Camões não é uma elite. A superioridade reconhecida individualmente a uma pessoa retira-lhe o estatuto de elite. Está isolada, fora do colectivo. Não é por acaso que nas elites se usa uma relação: a de pertença. Alguém pertence às elites. Como um elemento pertence a um conjunto. Cristo não pertence a uma elite. Cristo está sozinho no seu modelo. Por isso quando falamos de elites falamos por definição de um grupo social. Logo, de uma força social consistente cujas vicissitudes e etologia não se resume a uma biografia pessoal.

Sendo um elemento colectivo, cada biografia individual se pode confrontar com esse grupo. O grau em que se pertence, o modo, ou então o grau ou o modo em que não se pertence a essa elite.

Em segundo lugar a elite caracteriza-se pelo melhor. Ser uma elite não significa forçosamente deter poder. As elites podem aliás ser completamente dele destituídas. Os sayyd, descendentes do profeta, no Egipto dos mamelucos mereciam veneração, mas não detinham quaisquer cargos de poder. Em muitos Estados da Índia os brâmanes não governavam.

A existência de uma elite impõe o princípio do melhor numa sociedade, na medida em que a própria existência de elites seja consagrada. Nesse sentido é um desafio e um estímulo para a democracia.

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segunda-feira, 16 de abril de 2007

Mais e melhor, precisa-se...

De manhã, ao acordar, há um momento de verdade que nos faz o dia. É então que emergem a alegria ou a mágoa, o entusiasmo ou o quebranto, a felicidade ou a decepção. Queiramos ou não, gostemos ou não, de manhã a vida é o que é, sem disfarces nem contemplações.
Ora, confesso-vos que tenho acordado muito pouco exuberante. Não gosto do que vejo e oiço, não gosto do estado a que chegou a coisa pública, não gosto da lucidez com que percebo a medida em que há muito se anunciou a inevitabilidade de tudo.
Em Portugal, não é o pequeno que incomoda. Mas o pouco. A avassaladora falta de nível da nossa agenda colectiva. A mediocridade dos protagonismos. A irrelevância das discussões. E, claro, a absoluta ausência de projecto.
Portugal mergulhou num ciclo de perda consistente, que não consegue romper. Investe em propagandas fátuas, proclama voluntarismos bacocos, mas não arranca, não empreende, não desenvolve.
Num país de matriz autoritária, as elites nunca tiveram um papel politicamente relevante fora do jogo formal do poder, no Estado e nos partidos. Aliás, os actores institucionais sempre preferiram uma sociedade civil incipiente e fragmentada, incapaz de criar dinâmicas susceptíveis de funcionar de fora para dentro do sistema.
Portanto, a nossa noção de elite política reduziu-se à sua expressão mais estrita. Infelizmente, em tudo coincidindo com a mais pobre e a mais triste. A elite política confunde-se com aqueles que, em cada momento, são os actores da política formal. Pior, esgota-se neles.
Mas, lamentavelmente, a mais evidente implicação de tal estatuto parece escapar aos espíritos destes privilegiados. A responsabilidade – a sua responsabilidade específica – é um conceito etéreo, porventura lido em algum livro (ou recensão, que o ar do tempo vai mais para aí…), mas totalmente insusceptível de densificação prática. Nem um vislumbre de preocupação com a referência que deveriam ser, com o exemplo que teriam de consubstanciar.
Daí que se permitam tudo. Daí que tudo se vá tolerando. Episódios impensáveis há vinte anos são matéria de degustação quotidiana no nosso actual espaço público. Políticos, comunicação social e eleitores anónimos encontram-se neste fórum da modernidade, em que o calor da discussão se inflama em proporção directa com o esquecimento do país.
Infelizmente, poucos se deterão na circunstância de nada disto acontecer por acaso ou de repente. São muitos anos de demissão e de consentimento, num processo paulatino que não pode deixar sossegada a consciência de nenhum de nós.
E, quando digo nós, quero dizer isso mesmo. Nós que, de fora, nos insurgimos, mas não fazemos da nossa indignação um princípio de acção. Nós que não assumimos a responsabilidade de fundar a esperança numa diferença que urge.
Manhã após manhã, nessa incontornável hora de verdade, vou-me perguntando: será que ninguém sente o imperativo de permitir mais e melhor aos milhares de portugueses normais, que trabalham e pagam impostos, que gostam do seu país e que, por isso, querem e precisam de acreditar no futuro?

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domingo, 15 de abril de 2007

O planeta de Euler

Que alegria, ver alguém escrever sobre Matemática! Obrigado, Alexandre. Ficaria moralmente em dívida se não atropelasse os meus timings e deixasse de escrever HOJE, dia em que se completam três séculos sobre o nascimento do maior matemático de todos os tempos.

Leonhard Euler (1707-1783) foi muito provavelmente o maior génio matemático de todos os tempos. Foi indiscutivelmente o matemático mais produtivo de sempre, em quantidade e qualidade. Publicou mais de 850 artigos científicos, bem como muitas dezenas de livros, nas grandes Academias de Ciências da época, em todos os ramos da Física e da Matemática do seu tempo. Na verdade, há ramos inteiros da Física e da Matemática (no século XVIII a distinção entre estas ciências é difícil; a Matemática é criada à medida dos problemas físicos tratados) fundados por Euler, da Teoria Analítica de Números à Dinâmica de Fluidos, e ainda hoje ensinados nas Universidades de todo o mundo como ele os abordou.

Não existe nada na história da Ciência que se assemelhe remotamente à inacreditável produtividade de Euler. Uma boa medida desta produtividade é a seguinte: aquando do segundo centenário do seu nascimento, em 1907, foi constituída na Suíça a Comissão Euler, encarregada de organizar a publicação das obras completas de Euler, a chamada Opera Omnia. Tarefa titânica: cem anos, 76 volumes e 30.000 páginas depois (cada volume tem entre 300 e 600 páginas), a publicação das obras completas de Euler ainda não está concluída!

A vida científica de Euler foi um permanente dilúvio matemático. Durante as seis décadas da sua vida adulta, mesmo em circunstâncias muito difíceis, Euler concebeu, descobriu e escreveu Matemática a um ritmo muito superior àquele que pode ser sequer lido por um ser humano. Só se pode contemplar uma obra de tal forma esmagadora com um grande sentimento de humildade e quase incredulidade.

Euler viveu aqui.

Em termos de qualidade científica, Euler foi por um lado um cientista universal – trabalhou em todos os grandes problemas da Física e Matemática da sua era – e, por outro lado, tudo aquilo que produziu revela uma capacidade de penetração para além de qualquer ser humano antes ou depois dele.

Euler fez um oceano de contribuições fundacionais para o Cálculo diferencial e integral, equações diferenciais ordinárias e parciais, Teoria de Números, Geometria, Álgebra, Mecânica de partículas, Hidrodinâmica, Astronomia, Topologia e Teoria de grafos.

O espírito genial de Euler transformava pedras em ouro matemático. Por exemplo, a Teoria de grafos nasce, nas mãos de Euler, de um problema de salão que lhe foi colocado em S. Petersburgo e de que provavelmente o leitor já ouviu falar – as pontes de Königsberg. E o Sudoku que jogamos hoje é um pequeno exemplo de construção de objectos cuja teoria Euler fundou em 1782, os quadrados latinos, a propósito do problema dos 36 oficiais (que se diz ter-lhe sido proposto por Catarina, a Grande, czarina da Rússia).

Geralmente um grande cientista fica imortalizado por uma contribuição central na sua carreira: a Gravitação de Newton, a Lei de Gauss, a Hipótese de Riemann, a Relatividade de Einstein. Mas, se um matemático referir no abstracto o “Teorema de Euler”, ninguém poderá sequer saber de que ramo da Matemática está ele a falar, tal a abrangência do seu legado científico.

Observe-se a quantidade de descobertas científicas com o seu nome que ainda hoje se ensinam nas Universidades de todo o Mundo. Os ângulos de Euler na dinâmica do corpo rígido. As equações de Euler-Lagrange no Cálculo de Variações. Os integrais de Euler. A característica de Euler. A função de Euler φ(n). A constante de Euler. As equações de Euler da Mecânica dos Fluidos. A linha de Euler de um triângulo. Os produtos de Euler (mais famoso dos quais o da função ζ, mais tarde chamada “de Riemann”, mas que deveria ter também o nome de Euler). A fórmula da soma de Euler-Maclaurin. A fórmula de Euler para os números complexos. E assim por diante... esmagador.

“O” Teorema de Euler não existe. Euler foi grande demais para se identificar por um resultado. Lagrange, o seu único aluno, ele próprio matemático de primeira categoria, escrevia aos seus contemporâneos “Leiam Euler, leiam Euler! Ele é o Mestre de todos nós”. Já agora, o número de descendentes científicos (alunos de alunos de alunos...) de Euler é 37735.

Euler nasceu perto de Basileia, na Suíça, em 1707. Em 1726 a czarina Catarina I, viúva de Pedro o Grande, convida Euler para integrar a recém-criada Academia das Ciências de S. Petersburgo. Lá ficará até 1741, altura em que (já tendo perdido um olho) parte para Berlim, onde integrará a Academia das Ciências de Frederico II. Lá ficará um quarto de século; nessa altura, já considerado o maior cientista europeu, decide voltar para S. Petersburgo, onde prossegue a sua prodigiosa actividade científica. No entanto sofre em 1771 um rude golpe que terminaria a vida produtiva de um ser humano normal: perdeu o olho esquerdo, ficando assim quase totalmente cego.

Mas Euler não parecia deste Mundo. Ao que se diz, terá declarado “assim tenho menos distracções”. E tinha razão: inacreditavelmente, quase metade da sua produção científica (mais de 400 trabalhos) data desa segunda estadia em S. Petersburgo. Trabalhava com assistentes, um dos quais seu filho, e tinha um quadro gigante no seu escritório, onde escrevia em letras enormes que mal conseguia ver.

A sua memória era prodigiosa; conseguia realizar cálculos intricadíssimos dentro da cabeça e ditava-os aos seus assistentes. Além das centenas de memórias científicas, assim escreveu livros sobre Álgebra, Cálculo Integral ou Óptica. Neste período a sua produtividade científica média era de um artigo por semana!

A 18 de Setembro de 1783 Euler estava no seu escritório a trabalhar sobre a órbita de Urano, recentemente descoberto. Sofreu então um acidente vascular cerebral – uma morte rápida e indolor. Ficou a sua monumental obra, cuja publicação ainda hoje está por terminar.

Se a Literatura teve Shakespeare e a Música teve Mozart, a Matemática teve Euler. Euler é um dos seres humanos que nos eleva acima do plano mortal, e com quem nos sentimos honrados de partilhar o mesmo planeta.


Dedico um capítulo do meu novo livro, "O fim do mundo está próximo?", a Euler.

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Constance Reid, Hilbert, Springer-Verlag, New York-Heidelberg-Berlin, 1996

O mito da nossa época exige que o génio seja espontâneo, fresco, primevo. É verdade que os românticos acharam tal coisa, mas muitos deles eram bastante lúcidos para saber que havia trabalho por detrás de cada obra. E os que não o sabiam apenas se iludiam a si mesmos. Esqueciam-se do imenso trabalho que dá fazer uma pintura ou uma ode.

A matemática é dos campos onde mais facilmente se reconhece o génio (por vezes de forma algo exagerada) mas em que ao mesmo tempo esse génio gera alguma condescendência. Ou seja, desconsideração social. E é o único campo científico em que a espontaneidade gera livre e singela adesão. As descobertas matemáticas têm gosto de eureka instintivo para muita gente.

Hilbert é o exemplo contrário de todos estes lugares comuns. A matemática alemã do início do século XIX vê-se muito aquém da francesa, e mesmo aquém da inglesa. Se podemos fazer remontar esse movimento a Leibniz ainda no século XVII, e embora o mundo alemão tenha já dado outros génios de imensa categoria (Euler, Jacobi), foi no início do século XIX que se viu formar a imensa escola que viu os Gauss, Riemann, Graßmann, Klein e tantos outros dar consistência ao que se poderia chamar uma escola alemã da matemática. É evidente que o conceito é algo tonto no sentido em que as fronteiras entre esta “escola” e a húngara (Bolyai) por exemplo ou russa não são definíveis.

O movimento alemão que fez deles os campeões da matemática (só não ultrapassando uma França porque esta tinha um Poincaré) tem o seu cúmulo em Hilbert. Este sintetiza, juntamente com Klein é certo, esta escola feita de erudição e criatividade. Hilbert não é, como Poincaré, o matemático da intuição. Ambos são trabalhadores incansáveis, ambos muito estudiosos. Mas Poincaré é o que vê de um só traço o essencial. Hilbert é o que vai vendo. Que vai descobrindo aos poucos e poucos.

Para além das suas conquistas matemáticas, que não são poucas, Hilbert pode-se orgulhar de ser das raras pessoas que no século XX define um programa que dura o século todo e se estende para além dele. A sua famosa lista dos problemas matemáticos a ocupar o próximo século (http://mathworld.wolfram.com/HilbertsProblems.html) gerou uma adesão que poucas listas, programas, desejos ao longo do século XX puderam igualar. Basta pensar nos programas políticos, sociais e mesmo científicos do início do século XX e compará-los com o que se lhes seguiu. Nenhum ficou de pé, ou só ressurgiu depois de ter passado por uma longa travessia do deserto (os neos típicos da nossa época, neoliberalismo, neoconservadorismo, neomarxismo, neo...).

O argumento é conhecido: a matemática é uma ciência rigorosa e por isso gera menos discussão. A frase chega a ser dolorosa de tão idiota. Basta ver as imensas discussões sobre a possibilidade da formalização da matemática e da lógica, da teoria dos conjuntos, as escolas mais morfológicas como a de Bourbaki por oposição aos formalistas, intuicionistas (Brouwer) e quejandos para se ver que na matemática como em todas as actividades humanas há discussões. A questão não estará tanto na certeza, mas antes na probidade. Talvez a matemática faça surgir no ser humano outra probidade, outra contenção, que leva, se não a amar mais o adversário, ao menos a respeitá-lo, sem prejuízo de não deixarem de ser humanos (a relação psicanaliticamente complicada de Newton com Leibniz seria um bom exemplo disso).
O grande fracasso de Hilbert encontra-se na física. Hoje em dia está na moda a teoria de tudo. Hilbert foi dos primeiros a formulá-la. Se a sua versão era falha sob o ponto de vista explicativo não o posso afiançar. Mais importante que isso a reacção de desinteresse que gerou entre os físicos. Estes sempre acreditaram mais em intuições que em formalismos. Temo bem que os físicos, por causa de uma reacção algo tribal, estejam a esquecer uma pérola, nem que seja metodológica. A prova está no facto da equivalência matemática da física das matrizes com a equação de Schroedinger lhe ter sido eventualmente óbvia muito antes da sua demonstração oficial.

Na matemática as imensas conquistas de Hilbert são em parte a sua cruz. Formalista, isto significa que pretendeu seguir horizontes cada vez mais gerais. Que Gödel tenha dado uma machadada em muitas pretensões formalistas, assim como Russell em parte o tinha antes feito, em nada lhe retira o mérito da sua obra. Muitos dos seus conceitos, das suas técnicas são ainda hoje em dia essenciais.

Mas mais importante que isso, e significativo num matemático de uma escola de erudição como é a sua, o facto de fora do circuito oficial dar uma ênfase essencial à imaginação. A obra está no trabalho. Mas, e desde que não se insista demasiado nisso, porque nesta matéria o pudor é criativo, na base está a imaginação.

http://faculty.evansville.edu/ck6/bstud/hilbert.html
http://astore.amazon.com/sosmath/detail/0387946748
http://www-history.mcs.st-and.ac.uk/~history/Biographies/Hilbert.html
http://mathworld.wolfram.com/DiophantineEquation.html





Alexandre Brandão da Veiga

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