sábado, 30 de junho de 2007

A ameaça fatal

Um «blogger» amigo (ou assim julgava eu) ameaçou-me com a leitura diária das obras completas de Saramago se eu não me despachasse a «postar». Prometi-lhe uma redenção para breve. Inês: se eu fosse a si não ficava a dormir na forma.

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O romance da solidão de Deus


Lá voltamos ao conflito de interesses e ao egoísmo de editor: mea culpa!
Sou parte interessada, mas tenho de publicitar o facto de Eduardo Pitta sugerir hoje a leitura de “Diário de um Deus Criacionista”, um romance editado pela Guerra e Paz. É um primeiro sinal de reconhecimento, que saúdo, para um romance que, até pelas suas características inovadoras, a milhas do sentimentalismo e da depressão lusíadas típicas, foi ignorado pela Imprensa. (Há quantos anos a Imprensa da especialidade não “faz” um verdadeiro sucesso literárito entre nós?!)
Esperemos que o prestígio e autoridade da sugestão possam voltar a colocar o livro de Álvaro Santos Pereira nas “montras” dos nossos livreiros. É, se bem se lembram, o diário de “Eu, Eu e só Eu”, que relata a solidão de Deus durante biliões e biliões e biliões e biliões de anos.

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quinta-feira, 28 de junho de 2007

Jorge Buescu, O fim do mundo está próximo?

Quem me conhece sabe que não sou dado a elogios baratos. Houvera um livro publicado por alguém do blog que não me interessasse ou que detestasse teria solução bem simples. Calar-me-ia. O comprimento dos meus silêncios é bem maior que o das minhas intervenções, por mais contra-intuitivo que isso pareça.

Mas a verdade é que o livro do Jorge me obriga a algumas reflexões, porque num país tão ignorante de matemática é sempre um alívio ver quem se preocupa em falar nela. Por isso, e no mesmo tom aparentemente desportivo, deu-me vontade de falar dele. Em relação a muitas coisas, apenas as ignorava (sobretudo as malfadadas estatísticas, probabilidade e cálculo combinatório que a malfadada colecção Schaun me fez detestar perenemente). Por isso nada digo sobre elas. Em relação a outras atrevo-me como leigo a dizer algumas coisas que me vão na alma.

A confusão entre matemática e números. Creio reconhecer o episódio do jantar em que lhe pedem para fazer a conta porque é matemático (salvo se lhe aconteceu muitas vezes, coisa de que suspeito). Percebo a sua perplexidade. A maioria das pessoas continua a confundir matemática com números. Alguns dos textos mais importantes da matemática têm menos números que um livro de Direito, citando bastamente artigos de leis (basta pensar na lição inaugural de Riemann ou em certos trabalhos de Frege). Acho muito bem que ele lembre a profunda diferença que existe entre a matemática e a contabilidade. A única estrutura matemática interessante na contabilidade está nas partidas dobradas, com regras de simetria algo engraçadas. Não de certeza na manipulação enfadonhamente banal de números. Para mim a matemática nunca foi a ciência da quantidade, mas da relação enquanto tal.

Quem não acompanha algo do que se fez na História da matemática não se apercebe da posição muito pessoal – e por isso corajosa e algo paradoxal – de Jorge Buescu quando escolhe Euler como o seu matemático preferido. Reconhecendo-se inepto para o cálculo escolhe o que é considerado o melhor calculador de todos os tempos. Mas mais importante que isso, escolhe um matemático que é algo mal visto pelos historiadores da ciência. Em geral a grande maioria escolhe Gauss como o primeiro de entre eles. Se forem anglo-saxónicos escolhem Newton em segundo lugar. Se continentais hesitam entre Pascal, Leibniz ou outros.

Há algo de snobismo intelectual nesse desprezo em relação a Euler. Talvez em parte por não ter cliques anglo-saxónicas ou alemãs, mas em grande medida por outra razão. Ao contrário do Jorge, que o compara a Shakespeare (monomania da nossa época) eu compará-lo-ia antes a Racine. Mestre clássico por excelência, Racine está fora de moda, Euler também teria de estar.

Confesso que não gosto de “podia”, mania insistente da nossa época e abomino que se fale no maior seja em que for. A cultura não é um concurso e muito menos um campeonato desportivo. Há uma plêiade de grandes a partir dos quais perde sentido criar hierarquias. Molière é incomparavelmente maior que Shakespeare na arte difícil da comédia, Dante bem maior que Shakespeare pela sua capacidade sistemática e de enfrentar o infinito em consequência (a matemática ensina-nos que só se dizem coisas pertinentes sobre o infinito com uma forte disciplina). Da mesma maneira encontro ensinamentos noutros matemáticos que não consigo graduar em relação a Euler. Mas que ao menos alguém tenha a coragem de abanar o snobismo que o desprezava já não pode deixar de ser salientado.

Só tenho pena que não tenha explicado a constante gama de Euler. No próximo livro espero que o faça. Abriu o apetite, agora tem de o satisfazer.

Leibniz dizia que as pessoas mais inteligentes são as que criam jogos. Má sina a minha, Leibniz não me consideraria dentro desse grupo. E em boa verdade sempre detestei jogos de inteligência. A experiência mostra-me que desenvolvem a inteligência… para jogar melhor esse jogo. Por isso gostei imenso do que o Jorge diz do Sudoku, para mim enfado infinito a que nunca me tentei dedicar.

Mas o livro do Jorge mostra outro aspecto que viola o lugar comum. Insinuada ao longo do livro está uma dimensão da matemática que as pessoas geralmente querem desprezar: a memória. A matemática está cheia de conceitos que se têm de memorizar. Da minha parte eu ignorava a figura dos quadrados latinos e greco-latinos. Mas a dado passo refere os quase grupos, por exemplo, se bem me lembro. Quem não tem de cor a taxinomia estranha da álgebra abstracta e confundir as propriedades de um anel com um reticulado ou um grupo é bem provável estar a demonstrar teoremas patetas. Também a matemática carece de memória – e que memória.

O quadro de Dürer que mostra na figura 9 “melancolia”, e sem trocadilho barato, provoca-me a dita. Além de ter um quadrado mágico é referenciado como ilustração da regra de ouro e mais outros tantos lugares matemáticos. Época não tonta em que a arte e a ciência andavam de mãos dadas.

Voltando a Euler e Leibniz (passeio mais ou menos na mesma ordem que o Jorge o fez) gostaria apenas de salientar um aspecto. Para mim Leibniz tinha uma consciência mais diversificada do infinito que Euler. Dominava-o nas suas múltiplas vertentes. Filosófica, teológica, matemática. Tanto Leibniz como em parte Newton entraram no infinito em grande medida por razões teológicas. A grande diferença é que Euler construiu uma cidade com base no infinito. E o urbanismo desta cidade levou todo o século XIX a ser estruturado com Cauchy, Weierstrass, até vir a bomba atómica que foi Cantor.

Na comparação que faz entre Euler, Voltaire e d’Alembert há ao menos que fazer algumas ênfases: d’Alembert era ao menos um matemático competente, mesmo que não seja dos maiores. De Voltaire nem isso se pode dizer. Esta questão, que parece irrelevante, mostra-se no fim do livro quando se refere o estado do ensino da matemática (e não só dela) em muitos países europeus. É a vitória de Voltaire, do publicista que não é nem filósofo, nem cientista, mas que determina o que deve ser a filosofia e as ciências a que se deve parte do descalabro do ensino. O império do mero estilo acaba na destruição do próprio estilo.

Quanto ao paradoxo de Simpson o meu comentário é mais exterior. É uma boa lição para os senhores juristas, políticos e economistas que, antes de usarem os números e terem uma visão mágica deles deviam aprender a ter uma visão crítica dos mesmos.

O capítulo da coincidência mostra até que ponto as pessoas ainda têm uma visão mágica da realidade, e acabam por ter uma relação fetichista com os números, o que é sempre o inverso da intimidade. Mas também aqui faria algumas destrinças. A nossa língua portuguesa é muito pobre nesse aspecto. Não temos a destrinça entre “chiffres” e “nombres”, entre significante e significado como os franceses (enfim usamos “algarismos”, mas raramente), mas mais importante não somos capazes de destrinçar como os gregos entre os números e o seu arquétipo. As pessoas quando afirmam que os pitagóricos achavam que os números eram constitutivos do universo pensam por vezes que estes ingenuamente encontravam algarismos ou quantidades no universo quando em bom rigor mais falavam dos seus arquétipos.

O Jorge acaba por mostrar isso ao falar dos nossos queridos antepassados pré-históricos e da sua necessidade de ordenação. É desses arquétipos que falo, em última análise. E mesmo hoje em dia é esse impulso que nos leva a fazer ciência.

Por isso, se concordo com tudo o que diz, gostava de chamar a atenção para a importância do número três. Não uma importância ordenadora inerente, eventualmente, mas (ignoro se os senhores das neurociências estudaram a coisa), para o ser humano. Em muitas línguas e muitas delas desenvolvidas, um, dois, têm uma consistência própria e três já é “ho polloi”, muitos.

O número três tem igualmente outra marca visível. Os linguistas são como os outros cientistas. Adoram descobrir coisas exóticas. Entre os números gramaticais já foram recenseados o trial, o quadral, o poucal e o multitudinal. Ocorrências raras e cuja relevância flexional e pragmática, génese e significado não são fáceis de compreender de forma significativa no conjunto das línguas humanas. Mas apenas três números gramaticais apresentam alguma presença constante: o singular, o dual e o plural. Nas línguas europeias o dual é frequente, seja como número de pleno direito (no grego clássico), seja deixando forte presença (como na declinação dos numerais polacos), seja deixando resquícios morfologicamente curtos mas pragmaticamente relevantes (como em latim – e em português, onde a palavra “ambos” é resquício desse dual). Nas línguas célticas “allo” (“dois”) é parente do latim “allius” (outro). Os plurais tendem a ser menos ricos de flexões que os singulares (os nominativos e vocativos são sempre iguais em latim, grego e polaco, nesta última língua o acusativo igualmente, em latim o dativo e ablativo do plural são sempre iguais, etc.). Tudo mais uma vez se passa como se a sequência “um, dois e três” fosse a mais relevante sob o ponto de vista da linguagem.

O exemplo do truelo mostra ironicamente um exemplo disso. O "três" tem uma importância civilizational (trifuncionalismo, mas um dia disso falarei) e eventualmente constitutiva especial. E não será talvez por acaso que o problema dos três corpos nos suscite tantas dificuldades. Talvez para um extraterrestre com outra estrutura mental (eventualmente vivendo num mundo com quatro dimensões espaciais visíveis) a coisa seja infinitamente mais fácil.

Mas igualmente do ponto de vista da lógica, desde a sua origem grega (vide “O Sofista” de Platão, por exemplo), as mais profundas investigações sobre o Ser geram-se entre dualidades que oscilam entre a unidade e a trindade.

Uma das partes mais divertidas é a da genealogia. Por algum tempo dediquei-me a estudar isso, por múltiplas razões. E confesso que achei graça em descobrir que sou 72 vezes descendente de Maomé só pelo lado de D. Egas Fafes bispo de Coimbra. Confesso que me diverte mais ser descendente pelo menos duas vezes de um bispo que de Maomé, mas cada um tem os seus gostos.

Uma das coisas que fiz na altura foi um modelo matemático (simples, Jorge, muito simples), para definir um vector de feminilização e outro de grau de masculinização da genealogia. Infelizmente sou azelha em informática e por isso não o pude pôr em prática. Mas outras coisas curiosas se poderiam fazer, nomeadamente testar a taxa de endogamia numa árvore, por exemplo.

O vector de feminilização ou masculinização não é apenas brincadeira matemática. Creio que tem valor heurístico em termos históricos. Nos casos que estudei, embora sem instrumentário rigoroso, cheguei à conclusão que masculinização brusca tende a ocorrer em alturas de revoluções ou instabilidade social (a casa de Bragança é duas vezes filha de bastardos de mulheres do povo, o que coincide com a mudança dinástica) e a feminilização ocorre em alturas de ascensão social dos homens (por invasão ou enriquecimento). São sinais que podem ser usados como indício histórico.

A genealogia, retirada a pompa que muitas vezes está associada a ela, é um elemento essencial para a compreensão da História, mas igualmente como estrutura matemática. Mas a análise que o Jorge faz à coisa merece-me muitos comentários adicionais.

Desconfio um bocado da possibilidade de descendermos todos de Confúcio, apesar de os sistemas populacionais serem menos estanques do que se julga (havia mais globalização de casamentos no século VIII que no século XIX, sendo mais provável uma princesa arménia casar-se com um nobre português que no século XIX), a verdade é que há poucos casos atestados de sangue chinês a entrar na Europa. Os Mamikonian seriam talvez de sangue chinês e se é assim toda a antiga nobreza europeia poderá ter sangue chinês. Mas que o sangue dos Mamikonian vá até Confúcio é coisa de que desconfio.

O modelo que o Jorge mostra padece de três vícios: incompletude, desadequação e paralogismo.

Primeiro vício: incompletude. Os factores que tem em conta são muito incompletos para descrever a realidade.

Confesso que não acredito muito nos modelos expostos. É que desde sempre as relações familiares foram muito reguladas. Os casamentos, a exposição de infantes, o repúdio de crianças, desde sempre foram objecto de regulação. Muitas vezes por regras muito estritas. Proibição de incesto ou sua obrigatoriedade (como no Egipto, por exemplo), regras endogâmicas em círculos dos mais variados (família, classe social, varna, raça, povo) confundem os dados. Umas sociedades têm fenómenos de hipergamia (a mulher casa-se numa classe social superior) ou hipogamia (casa em classe inferior), consoante as épocas.

Se há matéria que historicamente tem regras de proibição é o casamento. Como diz o Jorge a boa da Zayda (de novo sou várias vezes descendente da criatura com algum gozo) misturou-se com a nobreza peninsular (os Maias). Mas isso tem um significado histórico muito preciso: uma época de choque de placas tectónicas entre civilizações que são forçadas ao convívio multissecular numa mesma zona geográfica. O mesmo fenómeno se encontrou na Arménia em épocas semelhantes. Mas não já nos reinos latinos de Jerusalém. Aqui jogou o tempo dado que o reino latino de Jerusalém não foi plurissecular. Mas já entre turcos e europeus não se fez mistura nas classes dominantes (do lado europeu, dado que como concubinas os sultões gostavam de eslavas), apesar de a relação ser plurissecular. As culturas não são totalmente estanques, mas têm também não são abertas. São porosas. Como fazer um modelo matemático que tenha estes factores todos em conta?

Segundo vício: desadequação. É que num modelo podemos considerar certos factores desprezíveis. É verdade. Mas no caso concreto todos os factores que considerei contribuem para a configuração da realidade de forma muito efectiva.

Sob o ponto de vista quantitativo, para começar. O Marquês de Lafayette, se bem me lembro, previa que a França do século XX teria habitantes na ordem dos biliões. Que isto não tenha acontecido não significa que tenha havido mais desastres naturais, mais guerras ou piores condições sanitárias. Questões de mentalidade entram em jogo igualmente na reprodução. Hoje em dia a Europa tinha todas as condições de mais que duplicar a sua população em cada geração, por exemplo. Os mesmos factores levam a efeitos contrários. Por exemplo, o aumento de prosperidade aumenta a natalidade ou pode-a diminuir.

Sob o ponto de vista qualitativo, em acréscimo. O modelo conduziria a um estado de entropia total em que não se distinguiria um chinês de um português. Ou pelo menos não vejo como explique que os sistemas são porosos mas não em fusão total.

Em suma, é como se fosse um modelo que desprezasse o atrito quando se quer fazer um carro para andar na areia.

Terceiro vício: paralogismo. É evidente que podemos ter definições convencionais. Mas afirmar que descendente de nobre é nobre é apenas uma convenção. Quando se usa o conceito de nobre com base nessa mera convenção para depois dizer que somos nobres já num outro sentido, o valorativo, há um salto lógico.


Com efeito, esquece dois aspectos na genealogia: a dimensão crítica e a organização.

Em primeiro lugar a dimensão crítica. É evidente que toda a gente tem sangue de escravo e de senhor. No Cavaleiro da Rosa de Richard Strauss há uma personagem que diz que a única forma de ter criados com aspecto apresentável é fornicar com as criadas e fazer desses bastardos criadagem. Duas células humanas não podem fazer um ser humano. Um átomo de urânio não é bastante para fazer uma bomba atómica. Da mesma forma, tudo depende de se ter ou não a dose bastante para se poder dizer nobre.

Em segundo lugar a organização. Biliões de células humanas espalhadas numa mesa não fazem um ser humano. Tudo depende de como estão organizadas. Um imenso monte de pedras não faz um palácio, da mesma maneira. Tudo depende do como se organiza essa herança nobre (ilustre, o que seja - apenas uso os conceitos que o Jorge usa para referir o modelo).

Em suma, o sofisma é a de o descendente ter as mesmas qualidade que o antepassado: como tenho antepassados mulheres sou mulher, como tenho antepassados unicelulares sou unicelular.

É evidente que não estou a pretender demonstrar nada. Apenas que qualquer modelo matemático, quando se aplica à realidade ou tem essa pretensão, é significativo pelas premissas de que parte e as que omite. Não explica nada mais do que as suas premissas já permitem conter. E permitem sempre jogos de conceitos (todos vemos como as ditas sopas quânticas – seja lá que culinária for essa - são usadas por tartufos).

Por isso acho muito positivo que o Jorge tenha referido o tema, para acabar com a prosápia dos que afirmam que "ainda" têm sangue nobre, como é muito típico da Península Ibérica que criou a figura que no século XVI era conhecido como os "hidalgos de bragueta" (fidalgos de braguilha, porque quem tinha mais de 12 filhos tinha os privilégios dos nobres). Mas o modelo não demonstra mais do que pode demonstrar. Aqui se vê como a matemática não é neutra ideologicamente no seu uso e como também aqui temos de ter uma visão crítica da sua aplicação à realidade.

A explicação que é dada do teorema de Bayes é um bom começo para lerdos como eu que têm uma alergia a probabilidades e estatísticas. É a primeira vez que vejo alguém explicar a coisa de forma clara.

A agulha de Buffon já a conhecia, mas nunca me passou pela cabeça que tivesse algo a ver com a imagiologia médica. Mas confesso que continuo sem perceber na fórmula L=piDp/ o que significa o p, ou melhor como se calcula a dita probabilidade.

O caso do chuveiro humilhou-me como membro da raça humana. Que sejamos capazes de pensar algoritmos para o Big Bang, mas não para o chuveiro é no mínimo humilhante para a raça humana. Para ser franco começo a desconfiar que mais complexa que a criação do mundo é a divina higiene que nos fica guardada em arcanos.

Passados os curiosos grilos e os círculos confesso que só não me agradou muito a comparação entre Rasputine e Mozart. Gauss tinha bem pior feitio que o bom do “Rasputine” e não deixou de ser grande matemático. Deixa-me alguma nostalgia de uma época em que a matemática se fazia mais solitariamente e mais cavaleiramente, no bom e mau sentido. Se o padre Mersenne soubesse que as sociedades e as correspondências que criou dariam em congressos internacionais de matemática em parte ficaria feliz, mas em parte nostálgico, temo bem.

As duas histórias finais são duas faces da mesma moeda e o Jorge tem a honestidade de mostrar simultaneamente a desgraça educativa provocada pelo Maio de 68 e afins e o bluff mais descarado. Que criaturas com doutoramento em matemática e física afirmem que o Phi é transcendente basta ver pela formulação que só pode ser disparate. A frase de Santayana, “quem não sabe Historia, está condenado a repeti-la” levava-me muito longe, mas aqui estou mais no meu campo. E agradeço que o Jorge a tenha lembrado. É uma boa lição para os amadores de Historia.

Termino por aqui senão os outros bloguistas matam-me pela extensão do comentário. Mas enfim, mesmo aqui deve haver lugar para o espaço lúdico. E este deu-me um gozo particular.

Em suma, Jorge, e honni soit qui mal y pense, deste-me uma noite muito divertida em que aprendi muita coisa que não sabia (com a matemática não é difícil no meu caso infelizmente). Estou à espera do próximo livro em que possas explicar aos burros como eu mais coisas.


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http://aspirinab.weblog.com.pt/2007/05/jorge_buescu_strikes_again.html



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Verão em Nápoles


Era assim o Verão de Nápoles a Pompeia entre 300 a. C. e 65 d. C. Temperatura estável e a clara apoteose de um hedonismo tão leve como a espuma da cerveja.
Estes frescos podem ser vistos no Real Museo di Napoli e foram descobertos em escavações que datam de 1740.

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quarta-feira, 27 de junho de 2007

De preferência, sem consensos

Tenho muito, muito medo de consensos. Indo mais directa ao ponto, não acredito na possibilidade de radicar em consensos qualquer acção política efectivamente transformadora.
A política assenta numa certa visão do futuro, num determinado projecto de sociedade, num certo paradigma de felicidade individual e colectiva. Nesse registo – o único que me interessa –, para ser plena, a política tem de ser verdadeira e, para mobilizar, deverá ser profundamente convicta e coerente.
Ora, tal constrói-se em cima de valores, de princípios, de programas e de atitudes. Não apenas – e, sobretudo, não principalmente – em nome de uma lógica pragmática de eficiência.
É claro que o sucesso das políticas tem a maior relevância – nesse sentido, pode e deve ser medido. Mas só o valorizo realmente quando decorre de uma visão de futuro politicamente assumida e de um projecto de sociedade politicamente sindicável.
Se assim for, aliás, os tais consensos são mera expressão positiva da maturidade democrática, circunscrevendo-se ao mínimo ético que sustenta (e legitima) o sistema. Mas, se assim não for, como temo que sucedesse na apologia feita pelo Pedro Lains, os ditos consensos são uma perigosa rendição ao pragmatismo gestionário – gravíssima, desde logo, por só aparentemente ser neutra do ponto de vista político. Na verdade, à sombra desses consensos esconde-se, sempre, uma amplíssima coligação de interesses, também ela apostada em negar espaço à conflitualidade que é o contexto próprio da dinâmica política.
Dito isto, devo confessar que um hipotético Ministro das Obras Públicas próximo do PSD e com elevadas credenciais junto dos empresários e gestores me soaria ao mais puro oportunismo político. Não sei mesmo quantos de nós não acabariam a reconhecer-se num qualquer cartaz que assumisse, lá bem na frente do Palácio de São Mamede ao Caldas: volta Lino, estás perdoado!

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Consenso e Governação

E se o Primeiro Ministro deixasse cair o actual ministro das Obras Públicas e acolhesse no Governo um novo ministro, próximo do PSD e com elevadas credenciais junto dos empresários e gestores? – Isso nem seria extremamente original, pois seguiria o exemplo recente de Nicolas Sarkozy, que convidou ministros socialistas para o governo. Angela Merkel também lidera há algum tempo um governo de coligação, ao centro, com bons resultados na política europeia e que assiste à recuperação do crescimento económico do seu país. António Guterres (bem, este não é um grande exemplo) tomou uma posição semelhante quando no seu primeiro governo convidou Sousa Franco para as Finanças, o que se viria a revelar crucial para a bem sucedida adesão de Portugal à moeda única(1). Precisamente.

Como em outros países, as políticas públicas em Portugal podem ser divididas num grupo de políticas bem sucedidas e num outro de políticas problemáticas. O melhor exemplo das primeiras é dado pelas políticas associadas à integração europeia e, sobretudo, pelas políticas em torno do Euro. Para estas políticas, a avaliação global é obviamente positiva. E tem havido algum consenso, nestas áreas, que, aliás, se está outra vez a manifestar. Discute-se nestes dias mais recentes o tratado “simplificado” da União Europeia e a forma de o ratificar. Notam-se já passos no caminho de um consenso que eu apelidaria de responsável, com as declarações do Presidente da República, do Governo e, inclusivamente, segundo os jornais, da “ala barrosista” do PSD. (A integração europeia é um somatório de tratados negociados entre Estados e isso nem sempre é bem feito com ratificações por referendo.)

Mas esse consenso não existe em Portugal para muitas outras políticas públicas. Entre elas podemos dar os exemplos mais importantes das políticas relacionadas com o mercado do trabalho e com as obras públicas. O resultado da falta de consenso é que estas políticas ou estão fixadas na Constituição ou são muito voláteis. Quem pôde, nos idos anos 1970 e 1980, fixou os seus princípios sobre o mercado do trabalho na Constituição, para assegurar que eles se perpetuassem. Hoje, os governos estão um pouco de mãos atadas por essa constitucionalização de princípios (embora não totalmente). Quanto às obras públicas, acontece o contrário. Como não estão constitucionalizadas (felizmente) e como não há consenso, são muito voláteis. Cada leva de governantes altera facilmente as orientações dos grandes investimentos públicos. Por outro lado, os governos acabam por tendencialmente forçar esses grandes investimentos para manietar as opções dos governos futuros.

Portugal precisa de obras públicas e muitas e é fundamental que isso seja entendido pela grande maioria da população (como penso que já o é). Faltam instrumentos que permitam a criação de consensos entre os partidos do arco do Governo e da correspondente co-responsabilização. Um ministro das Obras Públicas com simpatias social-democratas seria uma solução.

Note-se que mais obras públicas não implicam necessariamente mais Estado. Margaret Thatcher, esse nosso ícone dos anos 1980, liderou a construção do túnel do Canal da Mancha apoiando-se em privados. Havia então na Grã-Bretanha duas condições fundamentais para isso. Foram elas, mercados financeiros desenvolvidos (que Portugal já tem, graças ao Euro) e agências de regulação (idem, ibidem).
Falta convencer, pelo menos aqueles que gostam de Economia e que ainda não estão convencidos, que Portugal precisa de obras públicas, lideradas por privados, mas isso já não cabe aqui.

(1) Em Portugal, temos outros casos de geração de consensos como nas importates revisões constitucionais de 1982 e 1989.

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segunda-feira, 25 de junho de 2007

Tratado e referendo – a propósito do triunfo da intuição política

Não será preciso grande clarividência para perceber que este recente sucesso europeu só é grande por ser pequeno.
Como em todos os importantes compromissos, as vitórias são múltiplas e partilhadas. Merkel, Sarcozy, Blair, Zapatero, Kaczynski, Barroso são inequívocos vencedores. Embora aquém do que desejavam – e, nessa medida, insatisfeitos –, o certo é que foram suficientemente lúcidos para perceber que o essencial era mesmo prevenir o desastre.
O resultado foi o possível, mas a sua força é iniludível. Obedece a uma lógica estritamente política, que radica em três intuições fundamentais.
Primeira intuição: a urgência de superar o impasse, relançando a dinâmica da construção europeia agora alargada a 27.
Segunda intuição: a importância de integrar plenamente o leste europeu, menos de vinte anos depois da queda do muro de Berlim.
Terceira intuição: o imperativo de evitar os referendos, deixando aos parlamentos nacionais a decisiva tarefa de reconciliar a Europa do sim com a Europa do não.
Sobre o sentido profundo destas intuições, falará o futuro. Para já, mantenha-se presente a certeza de que, em política, o essencial – o que faz a diferença... – é sempre e só a intuição de que, no tempo próprio, cada um é capaz.

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Espírito de síntese

O que é a Europa?
É a fusão do cristianismo com o paganismo indo-europeu sobre culturas autóctones do continente europeu com o mito da queda do império romano.
O que não é Europa?
O que não recebeu como fundante o cristianismo (Índia, Pérsia), o paganismo indo-europeu (árabes cristãos), o que teve o mito da continuação do império romano (Bizâncio) ou o do novo começo geográfico (civilizações neo-europeias das Américas, Pacífico e Oceânia). Sobretudo o que não tem nenhum destes componentes (China e Turquia).
Podem-se ultrapassar inércias históricas? Sim, deixando esfolada a pele e a linfa ou pela conversão religiosa plena.
Críptico? Como tudo o que é simples. O que disse é bem mais complexo que a função zeta de Riemann, os transfinitos de Cantor ou os espaços de Hilbert, porque estes são apenas uma ínfima parte do que acabei de dizer.
Que só discuta quem aprendeu. Porque quer a minhoca voar como a águia?

Alexandre Brandão da Veiga

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domingo, 24 de junho de 2007

Consciência e biologia

Matisse: "A Queda de Ícaro"

Quando a “Geração de 60” ainda estava na clandestinidade, o Nuno Lobo Antunes, o Pedro Norton e eu, trocámos amenidades sobre o que chamámos a “máquina biológica” e o livre arbítrio. Os textos estão sepultados no arquivo de Abril, mas foram, a meu ver, de bom augúrio para o nosso blog.
Lembrei-me deles por causa deste breve excerto de uma crítica que Peter Hitchens, autor paleoconservador e de inquebrantável fé religiosa, dirigiu ao livro do irmão Christopher Hitchens, tão convicto ateísta como esquerdista. Cito:
“How can the idea of a conscience have any meaning in a world of random chance, where in the end we are all just collections of molecules swirling in a purposeless confusion?
If you are getting inner promptings, why should you pay any attention to them? It is as absurd as the idea of a compass with no magnetic North. You might as well take moral instruction from your bile duct.”
Podem ver tudo aqui, devendo eu avisar-vos que cheguei à história visitando Pedro Mexia com quem, em tempos, e sobre o cinema português, mantive polémica de cara fechada e feia, o que ainda hoje me obriga a lê-lo com atenção (de vez em quando, é claro, também não vale a pena exagerar).

A despropósito, mas que já que estou com a mão na blogosfera, façam uma visita às pré-publicações do Luis Carmelo. É a grande estreia da Guerra e Paz no Miniscente, com um belo livro, Do Fanatismo, de Eric Hoffer. Ah, e perdoem-me o conflito de interesses.

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A ETA

Com aquela metódica dúvida que me envenena, interrogava-me eu, em ameno comércio blogo-epistolar com o Miguel Poiares Maduro, sobre o potencial atractivo e sedutor de Portugal para a grande inteligência europeia e mundial. Felizmente os factos desmentem-me: a ETA, laboratório e "centre de recherche" de reconhecida expertise mundial, abandonou o Sul de França para fazer do sul de Portugal a sua base. Temos tudo a aprender e quase nada a perder. A mim, não me voltam a apanhar na Croisette.

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sábado, 23 de junho de 2007

Portugal — Global e Local

Há alguns anos, 1993, chegava a um pequeno hotel no Boulevard Hausman para me ir deitar. Pedi a chave do quarto e enquanto esperava junto ao balcão pelo elevador o porteiro (que era o dono do hotel e fazia o turno da noite de Sábado) ouviu-me falar português. Perguntou-me se era português, respondi afirmativamente. Disse ele: “Bem me parecia, é uma língua maravilhosa, ainda há dias fui ver o Vale Abraão do vosso Manoel de Oliveira. Vou ver sempre os filmes portugueses e gosto muito do Oliveira, e depois, a vossa língua...”

Numa outra ocasião, 2005, desloquei-me a Los Angeles para ir ao atelier de Frank Ghery e enquanto lá estive fui visitar o Walt Disney Concert Hall. Simpaticamente, um dos arquitectos que nos acompanhou naqueles dias, destacou um outro colega para nos guiar na visita ao edifício. O nosso guia era um arquitecto de origem chinesa que tinha estado ligado ao projecto de Ghery em Espanha nas vinhas de Riscal. Contou-me o arquitecto chinês de Los Angeles que uma vez, em Espanha, alguém lhe pediu para ligar a Álvaro Siza Vieira o que ele fez com alvoroço, e quando a voz do próprio Álvaro Siza lhe respondeu do outro lado, ele ficou mudo e balbuciante como se não acreditasse que estava a falar com o próprio, tal era a emoção.
Lembro-me do post do Paulo Pereira da Silva neste G60, sobre o chinês de Aukcland que se interrogava sobre o destino da Escola de Sagres e lembro-me de uma história de Agostinho da Silva contada na primeira pessoa a um grupo de quatro estudantes de arquitectura em me incluía, na sua casa no Abarracamento de Peniche, passava o ano de 1985: “Um dia cheguei a Nagasaki para visitar uns jesuítas e tendo chegado uma hora antes deambulei pela rua para fazer tempo. Havia naquela rua algo que me era familiar. Finalmente, quando chegou a hora do encontro dirigi-me à casa dos jesuítas e logo perguntei porque razão me era tão familiar aquela rua. Prontamente, o religioso me respondeu — É que esta é tipicamente uma rua direita conforme as ruas direitas de Portugal — e lembrou-lhe que Nagasaki tinha sido desenhada por portugueses.
O que há de comum nestas histórias não é talvez o que se possa encarar, actualmente, como estratégia de exportação de Portugal (passe a expressão), ou seja, como podemos nós ir e vencer no mercado global. Não se trata apenas de ir. Trata-se antes de ir levando o quê. É a construção dessa diferença que nos devia ocupar em vez de estarmos concentrados no benchmarking que nos faz ser iguais aos outros, iguais mas sempre um pouco atrasados. O benchmarking só tem interesse para podermos antecipar o passo dos outros não para tentarmos sermos recebidos como pares no seu clube. Temos bons e variados exemplos de liderança internacional de pessoas e de reconhecimento da qualidade portuguesa em diversas empresas. Normalmente, não são as que ficam à espera do Estado, são as que avançam com estratégia e visão contra ventos e marés.
O Portugal global tem de começar pela reinvenção do Portugal local e se for bom cá também será bom lá, porque a globalização não é só uma luta fora de portas, ela começa dentro de portas porque é aqui que os outros também se globalizam.
Quando dou por mim a pensar neste tema da globalização tendo a interrogar-me se devo pensar como a devemos fazer, ou se, tendo sido um povo de expansão global, devo pensar no que é que entretanto perdemos?

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Europa 2007

Junho de 2007 ficará na história por anunciar a nova Europa – que, aliás, só será completamente nova em 2017. Alta madrugada, quando tudo parecia perdido, Merkel propõe, Sarcozy faz o telefonema e Kacsinsky aceita finalmente.
Por terra, fica o sonho do grande Tratado Constitucional. Com esta reforma, teremos apenas mais um tratado. Amputado das suas ambições constitucionais: nem Carta dos Direitos Fundamentais, nem Ministro Europeu dos Negócios Estrangeiros (apenas um mais modesto Alto Representante da União Europeia para a Política Externa), nem bandeira, nem hino, nem divisa.
Em regra, valerá a dupla maioria qualificada, isto é, 55% dos Estados-membros representativos de 65% da população europeia. Reduto da unanimidade, apenas a política externa, a política fiscal ou a revisão dos tratados. Sinal da ruptura, também a morte anunciada das presidências rotativas, em benefício de um futuro Presidente, eleito para um mandato de dois anos e meio, renovável uma vez.
Tudo isto deverá ser concretizado a partir de 2009. Para tanto, sabe-se que será decisivo o contributo da presidência portuguesa.
Nessa perspectiva, que bom seria se à agenda das nossas questiúnculas paroquiais pudéssemos preferir a urgência de um debate sério sobre a Europa. Para discutir tudo, finalmente. O papel da Europa e o nosso papel na Europa. O sentido cultural e político desta união. O projecto de desenvolvimento que encerra para os povos europeus. O que exige aos Estados-membros e aos seus cidadãos.
Ou haverá melhor pretexto para, enfim, discutir o que somos e para onde vamos?

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sexta-feira, 22 de junho de 2007

Aubade

Egon Schiele

Philip Larkin foi um do maiores poetas do século XX. Virulento e amargo. Este poema, de uma alvorada sem glória, anuncia o beijo da morte, o mesmo beijo delicado da morte de que Philip Roth fez a matéria do seu “Todo-o-Mundo”. Para ouvir aqui, na voz de Tom Courtenay, e ler, em baixo, se depois ainda tiver voz.


Aubade
I work all day, and get half-drunk at night
Waking at four to soundless dark, I stare.
In time the curtain-edges will grow light.
Till then I see what's really always there:
Unresting death, a whole day nearer now,
Making all thought impossible but how
And where and when I shall myself die.
Arid interrogation: yet the dread
Of dying, and being dead,
Flashes afresh to hold and horrify.

The mind blanks at the glare.
Not in remorse--
The good not done, the love not given, time
Torn off unused -- nor wretchedly because
An only life can take so long to climb
Clear of its wrong beginnings, and may never;
But at the total emptiness for ever,
The sure extinction that we travel to
And shall be lost in always. Not to be here,
Not to be anywhere,
And soon; nothing more terrible, nothing more true.

This is a special way of being afraid
No trick dispels. Religion used to try,
That vast moth-eaten musical brocade
Created to pretend we never die,
And specious stuff that says
No rational being
Can fear a thing it will not feel, not seeing
That this is what we fear -- no sight, no sound,
No touch or taste or smell, nothing to think with,
Nothing to love or link with,
The anaesthetic from which none come round.

And so it stays just on the edge of vision,
A small unfocused blur, a standing chill
That slows each impulse down to indecision.
Most things may never happen: this one will,
And realisation of it rages out
In furnace-fear when we are caught without
People or drink. Courage is no good:
It means not scaring others. Being brave
Lets no one off the grave.
Death is no different whined at than withstood.

Slowly light strengthens, and the room takes shape.
It stands plain as a wardrobe, what we know,
Have always known, know that we can't escape,
Yet can't accept. One side will have to go.
Meanwhile telephones crouch, getting ready to ring
In locked-up offices, and all the uncaring
Intricate rented world begins to rouse.
The sky is white as clay, with no sun.
Work has to be done.
Postmen like doctors go from house to house.

Aubade
Trabalho o dia todo, fico meio-bêbado à noite.
Acordado às quatro da manhã, contemplo a silenciosa escuridão.
Logo mais a luz virá bordejar as margens das cortinas.
Entretanto vejo o que sempre lá esteve:
A incansável morte, um dia inteiro mais perto agora,
Tornando impossível pensar noutra coisa a não ser
Como, e onde, e quando eu próprio morrerei.
Árida interrogação: e todavia o terror
De morrer, e de estar morto,
Cintila como agulha que desperta e horroriza.

Clarão que esvazia o espírito. Não pelo remorso
- O bem por fazer, o amor que não demos, o tempo
Desperdiçado - nem pelo desânimo de uma só
Vida levar tanto tempo a percorrer
Nunca se libertando, talvez, do seu errado começo;
Total e eterno vazio,
Essa certa extinção para que nos dirigimos
E em que estaremos perdidos, sempre. Não para estar aqui,
Nem em lado nenhum,
Muito em breve: nada mais terrível, nada mais verdadeiro.

Esta é uma maneira especial de ter medo.
Nenhum truque a apaga. A religião tentou-o,
Vasto brocado musical roído pela traça
Criado para fingir que nunca morremos,
Equívoco material que diz Nenhum ser racional
Receará o que nunca vai sentir, sem ver
Que é isso o que faz medo – não ver, não ouvir
Não tocar, ou saborear ou cheirar, nada para pensar,
Nada para amar ou nos ligarmos,
Anestésico de que ninguém regressa.

Fica só na finíssima margem da visão,
Pequena mancha desfocada, um frio persistente
Que trava cada impulso convidando à indecisão.
Muitas coisas podem nunca acontecer: esta acontecerá,
E a sua compreensão irrompe
Como um vulcão de medo quando nos apanha
Sem companhia ou bebida. A coragem não serve:
É apenas para não assustar os outros. Ser valente
Não deixa ninguém fora da sepultura.
Uivos de sofrimento ou sereno confronto não mudam a morte.

Lentamente a luz aumenta e o quarto ganha forma.
Entra-nos pelos olhos, simples como um armário, o que sabemos,
O que sempre soubemos, que nunca escaparemos,
Ainda que não o aceitemos. A esse encontro, não faltaremos.
Entretanto os telefones encolhem-se, prestes a tocar
Em escritórios fechados, e um mundo insensível
Intrincado e efémero começa a despertar.
O céu está branco sujo, sem sol.
O trabalho tem de ser feito.
Os carteiros como os médicos vão de casa em casa.

Aubade, 29 November 1977, in Times Literary Supplement, 23 December 1977 (Collected Poems, p.208/209)

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What a difference a date makes...

A França mudou de sistema político. Tendo inspirado, em parte, o nosso sistema semi-presidencialista, acaba de se "tornar" um sistema presidencialista. Para tal não foi preciso uma importante revisão da Constituição ou alterar os poderes do presidente ou do parlamento… Bastou mudar umas datas! Fez-se coincidir a duração do mandato presidencial com o mandato parlamentar e realizar as eleições parlamentares poucas semanas depois das eleições presidenciais. Esta coincidência fez das eleições parlamentares uma mera ratificação da eleição presidencial, assegurando ao Presidente uma verdadeira liderança política e uma correspondente maioria parlamentar. Aqui está um bom ensinamento para aqueles que insistem em avaliar e estudar normas e Constituições com base no texto. Tão importante como o texto é o contexto!

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Uma espécie de divergência

Mais um comentário upgraded na minha "novela" com o Manuel Fonseca. Não sei se estaremos assim tanto nos antípodas mas acho que temos uma divergência séria que penso reside no seguinte: para o Manuel Fonseca Portugal já tem uma pluralidade de agentes capazes de produzir para o mundo global e o que falta é dar-lhes mercado; para mim esse mercado não será conquistado enquanto não abrirmos e alargamos o nosso "mercado" desses agentes.

Começa por ser uma questão de escala: penso que a Espanha tem o (relativo) sucesso que refere devido à sua escala (própria e em termos relativos no mercado de língua espanhola); em português esse papel é do Brasil e a nossa única forma de o combater é trazer a "dimensão ou escala" brasileira para cá (mas não só esta). Mesmo a Espanha tem uma política de abertura muito maior que Portugal: basta ver a origem de alguns dos filmes que estavam nos Goya este ano e o co-financiamento pelo Estado Espanhol de produções "não espanholas" (ou, pelo menos, com realizadores não espanhóis). O Manuel conhece isto seguramente melhor que eu mas imagine-se o que aconteceria em Portugal se o ICAM financia-se um filme de "origem" predominantemente brasileira… Eu estou a dar o exemplo do Brasil porque tem uma relação mais óbvia com um possível nosso mercado mais imediato mas, na verdade, entendo que esta nossa abertura deveria ser bem mais ampla. No fundo, o que eu acho é que não nos basta a nossa massa crítica residente para pretendermos ter acesso a um mercado global ou pelo menos regional. Neste aspecto é semelhante ao que se passa nas universidades. Na nossa universidade começa-se a falar agora de internacionalização mas, na realidade, do que se fala é de conseguir que os nossos professores sejam mais conhecidos lá fora e de trazer alunos estrangeiros para cá. Só que isso nunca será possível sem as nossas universidades serem também mais internacionais "por dentro", trazendo mais massa crítica para cá: a verdadeira forma de internacionalização passa por atrair para as nossas universidades os melhores professores e investigadores estrangeiros (foi o que os americanos compreenderam). Mas em Portugal as nossas elites têm uma enorme resistência a este tipo de concorrência externa aos seus postos de trabalho. É com alguma ironia que eu vejo colegas meus das universidades que fazem discursos sobre a xenofobia contra os imigrantes oporem-se frontalmente à contratação de professores estrangeiros. O que é mais extraordinário é que acho que eles não têm consciência desta contradição e são genuínos e honestos nas posições que tomam. Se os imigrantes vêm ocupar os postos de trabalho mais baixos e alguém se opõe, estamos no domínio da xenofobia. Se a concorrência é ao nível das elites universitárias já se trata de proteger a nossa capacidade científica… Assim como na cultura se trata de proteger a nossa identidade cultural ou na economia os nossos centros de decisão…Para que fique claro, não estou a acusar o Manuel de partilhar destas posições ou (mesmo que as partilhe) de qualquer tipo de hipocrisia. Digo isto para salientar como, para mim, conquistar o mercado que o Manuel pretende garantir aos nossos produtos culturais passa por aumentar a nossa "escala" cultural e para isso há que abrir, em primeiro lugar, o mercado das nossas elites culturais. Não podemos ser cosmopolitas só de exportação .

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Uma Espécie de Comentário

red cloud, frank strazzulla

O comentário do Miguel transformou-se em post. Eu assumo que o meu post é mesmo um comentário. Quase que estamos de acordo, quase que estamos nos antípodas. Estamos de acordo na livre circulação dos bens culturais e estamos de acordo com a necessidade das indústrias culturais portuguesas projectarem como seu “mercado interno” um território maior do que o do jardim à beira mar plantado. A grande Ibéria, dizia eu. O mundo, desejamos todos.
Daqui em diante estamos nos antípodas. O Miguel propõe uma teoria em abstracto, como se fossemos avançar a partir de uma folha em branco. Eu parto do reconhecimento de uma pluralidade de agentes (editores, produtores de filmes, produtores audiovisuais e televisões) que têm práticas e desenvolveram interesses. Agentes que nalguns casos já fizeram percursos de internacionalização, que tiveram mesmo tentativas (frustradas ou não) de globalização. Referindo-se à experiência luxemburguesa o Miguel propõe que “Portugal deva pensar seriamente numa decisão estratégica desse tipo”. Mas que Portugal é esse? O Estado? É que os agentes já reconheceram, em geral, essa estratégia. Para lhe dar um exemplo: alguns dos filmes luxemburgueses de que fala são portugueses, o que significa que os produtores portugueses souberam explorar as oportunidades de financiamento que o Luxemburgo ofereceu. Só que a “globalização” do financiamento desses filmes não teve a correspondente e desejada “globalização” de consumo (nem os espectadores luxemburgueses se renderam) e a quota de filmes portugueses vista por portugueses não passa em média dos 1,5% ao ano, enquanto a do cinema espanhol em Espanha é de 15%.
E não pense sequer que não se mandaram vir os brasileiros para se fazerem novelas. A NBP produz novelas, tendo integrado alguns bons profissionais brasileiros. De forma sustentada conquistou o mercado português, mas a exibição dessas novelas no Brasil (ou a sua penetração nos mercado mundiais) é, digamos, residual.
Dito isto, volto a chover no molhado. Há dias aconteceu, em Madrid, o II Encontro de Cinema Luso-Espanhol. Na dimensão, na metodologia, nos objectivos e nos resultados, as instituições, os produtores e as televisões espanhóis constituiram-se aos olhos de quem quis ver como referência, por um lado, e parceiros naturais, por outro. É essa a minha modest proposal.

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quinta-feira, 21 de junho de 2007

Um comentário transformado em post...

A ideia era escrever um pequeno comentário ao post anterior do Manuel S. Fonseca mas acabou por ficar tão longo que não me resta alternativa que o colocar como post. Desculpem.Estou de acordo com o Manuel relativamente à prioridade que deve ser a produção cultural. Mais difícil é saber como aumentar a "produção" e competitividade da indústria cultural em Portugal. Talvez o país em que me encontro neste momento seja um bom exemplo.

O milagre económico moderno do Luxemburgo assentou nos serviços financeiros mas este modelo está, devido a várias circunstâncias, posto em causa. Que têm feito os luxemburgueses? Investir nas actividades culturais. Pretendem tornar-se um dos pólos culturais desta parte da Europa (com a vantagem adicional de que a qualidade de vida associada à vida cultural constitui uma vantagem competitiva na atracção de outras empresas). Investiram num sala de concertos fabulosa, um museu de arte contemporânea e são… um dos maiores produtores de cinema da Europa (através de um regime fiscal e regulador favorável a este tipo de actividades). Talvez Portugal deva pensar seriamente numa decisão estratégica desse tipo. É que o sector cultural é um dos mais viáveis no quadro da globalização. É o tipo de "industria" do futuro (pouco sujeita à competitividade internacional de baixos custos típica dos antigos sectores produtivos). Devíamos criar um quadro global (na regulação, no sistema fiscal, na educação) propício ao desenvolvimento da cultura em Portugal como sector económico prioritário. O importante é não ter de novo uma visão proteccionista e provinciana do que isto significa. Não se trata de apoiar e proteger os produtores portugueses de cultura… Para sermos competitivos e termos dimensão temos de atrair saber e massa crítica cultural de todos os lados. Se os trouxermos, pouco a pouco vamos fazer crescer a nossa própria massa critica.
Um exemplo com base no post do Manuel: a melhor forma de virmos a ter os brasileiros a ver telenovelas portuguesas é atraindo os produtores, autores e actores brasileiros para Portugal. Para fazer, por ex., de Portugal um centro de produção de cinema e televisão para os países de língua portuguesa temos que atrair a melhor massa crítica desses países. Os nosso próprios agentes culturais também iriam beneficiar dessa massa crítica: pouco a pouco cada vez mais portugueses participariam nesses projectos e o contacto com essa massa crítica e a maior escala dos projectos iria seguramente melhorar a qualidade dos nossos próprios projectos culturais. É um pouco como com a nossa selecção de futebol que tem melhorado significativamente com a crescente internacionalização dos nossos jogadores…Não sei se no contexto da globalização o nosso mercado será a península ibérica, a língua portuguesa ou bem mais amplo até. Suponho que dependerá do tipo de produto cultural (é o que demonstra o exemplo fornecido pelo Pedro Lains no que concerne a questão linguística e o cinema que é, no entanto, mais relativa do que ele refere, uma vez que uma grande parte dos filmes americanos são exportados com dobragem para a língua local). O que penso é que é fundamental acabar com a oposição economia vs cultura e assumir que a cultura poder ser um dos nossos principais sectores económicos. E que, se fizermos isso, não podemos repetir o erro dos outros sectores: pensar que nos desenvolvemos fechados em nós mesmos e assentes num modelo proteccionista. Temos é de descobrir como atrair o capital cultural de muitos lados para Portugal (e por capital cultural entendo, neste caso, o capital financeiro que investe em actividades culturais mas também a massa crítica que suporta e faz viver a industria cultural).

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Circular sim! E produzir?

Em “Ainda a Globalização e a Cultura” o Miguel Poiares Maduro parte do meu post para uma incursão em que defende a livre circulação dos bens culturais, perguntando-nos, e cito, se “haverá uma grande diferença, em termos de diversidade cultural, se a grande maioria dos portugueses em vez de verem todos telenovelas passarem a ver séries americanas?”. Partilho praticamente todos os considerandos e conclusões dele, só que o meu post tinha uma natureza bem diferente. O meu problema já não é a circulação, cuja liberdade (e decorrentes vantagens) dou como adquirida; o meu problema é a produção. O que eu quero é que no Brasil a grande maioria dos brasileiros possa ver telenovelas portuguesas e que nos Estados Unidos da América, a grande maioria dos americanos possa ver filmes portugueses. E quem diz telenovelas e filmes, diz livros ou música.
E é sobre a dinâmica que é necessária aos empreendedores portugueses que me interrogo. Temos que pensar, também nessas áreas, um “mercado interno” que vá para além das nossas fronteiras. Mas até onde é que podemos chegar? A minha modesta e primeira ambição é imaginar um “mercado interno” do tamanho da Península Ibérica, fazendo desta “jangada” a rampa de lançamento para voos mais altos. Ainda vamos a tempo? E a será que a competição global admite o faseamento que proponho?

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E a diversidade vale sempre a pena?

No essencial estou absolutamente de acordo com a reflexão do Miguel P. Maduro. Mas vou mais longe: será a preservação da diversidade cultural sempre um «bem» em si mesma? Dou dois exemplos ligados à língua portuguesa que, do meu ponto de vista, sustentam a tese contrária:
1 - Será que, do ponto de vista dos timorenses, a preservação da língua portuguesa como marca de identidade e diferença traz mais benefícios do que traria uma mais profunda integração (também através da língua) no bloco económico de que, para o bem e para o mal, Timor faz parte?.
2 - Será que os portugueses devem lutar por preservar os particularismos do português falado em Portugal ou devem avançar decidida e regularmente para acordos ortográficos com o Brasil que podem ser a única forma de, a prazo, tornarem a nossa língua minimamente relevante no contexto mundial?
Suspeito que as respostas a estas perguntas não sejam do mais politicamente correcto que se pode imaginar. Mas mais estúpido do que uma resposta errada é uma pergunta que não chega a ser feita.

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BRASIL vs VENEZUELA – QUE ESTRANHOS SINAIS?!

Sabemos da ciclicidade com que a América Latina nos reserva alterações políticas e as consequências que tem vindo a provocar. Passa-se de um extremo ao outro com enorme facilidade e essa situação tem sido disruptiva no processo de democratização e desenvolvimento daquela região, com avanços e recuos, privatizações e nacionalizações separadas por uma ou duas décadas, insegurança, movimentos revolucionários, incapacidade de estabilizar os Países em ciclos virtuosos que atraiam investimento de qualidade e impulsionem os Países para a criação de condições de aumento da qualidade de vida, do aparecimento duma classe média com mais poder de compra e o desaparecimento da pobreza.

Forte contributo em sentido contrário tem sido, isso sim, dado pelo Brasil, País com quem mantemos uma relação fraterna e que nos tem surpreendido ao longo dos últimos quinze anos pela estabilidade das suas lideranças, pela alternância democrática tão bem representada pela inesperada actuação de Lula da Silva já no segundo mandato e após um excelente trabalho de Fernando Henrique Cardoso, pela dinâmica de crescimento da sua economia, das exportações do País, da redução do desemprego, do défice e da inflação e consequentemente da provável passagem a “rating Investimento” com o interesse que suscitará aos investidores internacionais.

No extremo oposto a Venezuela, com um líder populista e demagogo que curiosamente consegue ainda convencer um eleitorado distraído e pouco evoluído, com teorias de conspiração contra os Americanos, nacionalizando os principais sectores de actividade do País, remetendo-o definitivamente ao ostracismo em plena globalização, com consequências que se farão sentir durante muitos e bons anos pela desconfiança que tem gerado em todos os agentes económicos potencialmente criadores de riqueza.

Em pleno século XXI, com a transparência informativa em vigor, a Internet, a TV e os jornais, só se pode compreender a arrogante e inaceitável atitude de Hugo Chavez de fechar televisões à luz de critérios de desrespeito pela liberdade e direitos humanos, coisa de que julga aliás ser o paladino defensor.
E mais estranho ainda o silêncio ensurdecedor da famosa “esquerda democrática” que aparece sempre para criticar os EUA à primeira oportunidade, mesmo sabendo da importância que estes tem tido na resolução de gravíssimas crises mundiais (cometendo erros também), mas incapazes de reconhecer em Países como a Venezuela a inexistência do valor que mais defendem, a liberdade, tornando-se cúmplices de regimes que, esses sim, põem definitivamente em causa a segurança e a qualidade de vida das populações, sem que estas muitas vezes se apercebam atempadamente.

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Ainda a globalização e cultura

O post do Manuel S. Fonseca suscita-me o regresso a uma velha questão deste mundo novo. Será que essas especificidades culturais exigem uma excepção cultural (para proteger as "diferentes" culturas)? Ou será que, pelo contrário, essas especificidades constituem em si mesmas barreiras "naturais" à globalização e, nesse caso, a "excepção cultural" não apenas é menos necessária mas pode bem ser um instrumento de transformação dessas barreiras naturais em isolamento cultural e proteccionismo económico? No fundo há uma enorme tensão (não fácil de resolver) neste debate: sendo necessário garantir a diversidade cultural é paradoxal pretender fazê-lo reforçando o proteccionismo cultural. A diversidade verdadeira é intersubjectiva. Não se assegura um verdadeiro pluralismo de identidades (culturais ou de outro tipo) através de uma mera salvaguarda de diferentes identidades "estáticas" e "insuladas" (que não comunicam entre si). Nem penso que seja esse o tipo de cultura que nos interessa.

O medo que existe é que a comunicação entre culturas trazida pela globalização se traduza no domínio por uma delas de todas as outras. Isto não é, no entanto, uma consequência necessária da globalização. Por um lado, a globalização pode simplesmente traduzir-se num redesenhar das fronteiras da diversidade cultural (já não definidas por língua ou Estado mas sim por outras formas de identidade). Por outro lado, temos de ser criativos na criação de mecanismos que garantam essa diversidade sem a confundir com uma mera salvaguarda de identidades pré-existentes. Neste contexto, não podemos ignorar duas realidades que me parecem óbvias. A primeira é que a cultura de massas tem sempre tendência a ser homogénea, o que muda é a escala (haverá uma grande diferença, em termos de diversidade cultural, se a grande maioria dos portugueses em vez de verem todos telenovelas passarem a ver séries americanas?). A segunda é que na cultura das elites a globalização tem trazido mais e não menos diversidade. Garanto-vos que tenho hoje muito mais acesso a filmes de origens bem diversas do que antes: seja nas salas de cinema "especializadas" (que se multiplicam), no que é escrito sobre eles ou ainda, de forma mais simples, na possibilidade de os comprar em dvd na net.

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quarta-feira, 20 de junho de 2007

O corpo que se desfaz, a morte que nos invade


A velhice não é uma batalha, é um massacre” diz Philip Roth a quem o queira ouvir. Para o provar escreveu um romance devastador e belíssimo: “Todo-o-Mundo”, publicado agora pela D. Quixote. É uma leitura obrigatória e exaltante (ou lancinante?) para quem tenha alguma vez experimentado na carne porque é que dói tanto dizer adeus. Melhor do que eu falam do romance aqui e, sobretudo, aqui. “Why Does it Hurt So Bad to Say Goodbye”, pintada por Collen Ross, é paradoxalmente uma imagem certa para o livro de velhice e morte que Roth escreveu.

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Bastava-nos a Península

Permitam-me uma pequena variação sobre o texto “Da Inovação e Empreendedorismo”, onde Diogo Vaz Guedes afirma que o desafio da globalização impõe aos empreendedores portugueses a obrigação de considerarem a Europa como seu “mercado interno”. Ou é essa a dinâmica ou estamos condenados. Como estou de acordo, tento traduzir a premissa para sectores que me interessam: o livro, o cinema e o audiovisual. São sectores em que, afinal, o instrumento da língua introduz um inescapável particularismo, contrariando a universal língua franca das commodities e das utilities. E dou comigo a pensar que, naqueles sectores, mal grado a diferença linguística, se conseguirmos, pela conjugação da proximidade cultural e sociológica, pensar a Península Ibérica como o nosso “mercado interno” estaremos já a dar o passo que, por enquanto, não é maior do que a perna.
Mas será que a globalização, até por definição lógica, rejeita faseamentos e excepções, mesmo que sejam os das indústrias culturais?

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EUREKA!

Talvez por ser Pediatra, tenho alguma dificuldade em me considerar pessoa "crescida", (na verdade a caminho da geração dos 60), isso dá-me alguma liberdade de pensamento, e permite-me fazer uma descoberta por ano. Aqui vão, cronológicamente, as minhas descobertas anuais:
2004: A história do Super-Homem está mal contada. Quem é que tendo nascido noutro planeta, e caído do Céu na Terra, não se teria de pronto, (para usar a pitoresca expressão de um amigo), "pirado aos uivos"!
2005: As mulheres são melhores que os homens. Para demonstrar esta evidência, teria de encontrar dois seres que fossem exclusivamente filhos de uma mulher e de um homem. Ser exclusivamente filho de uma mulher: Jesus Cristo. Exclusivamente filho de um homem. Pinóquio!
2006: Decifrei o mistério do sorriso da Gioconda,(gosto menos de "Mona Lisa"), porque me lembra um merceeiro do meu bairro, conhecido pelo "careca". Leonardo inspirou-se nos...golfinhos! já repararam naquele sorriso cretino, sem expressão, que os mamíferos travestis ("que queridos"), todos têm?
2007: Existe uma explosão de autistas. Na verdade de 1:4000, as estatísticas mais recentes apontam para 1:150. Andam à procura de toxinas no ambiente para explicar este aumento. Como a Judiciária, procuram a pista errada. A verdade é que os autistas têm vantagens reprodutivas! numa sociedade cada vez mais computorizada, o idiota solitário, sem qualquer "skill" social, é o empregado ideal, o mais bem remunerado, o com maior probabilidade de reconhecer o vírus informático, escrever tabelas no "excell", resolver o "crash" do computador, em suma, de ser o macho dominante, e, como dizia Kissinger, "o Poderrrrrr é o maiorr afrrrrrodisiac"!

Nuno Lobo Antunes

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DA INOVAÇÃO E EMPREENDEDORISMO

A globalização veio introduzir novos factores de pressão nos países mais desenvolvidos pelo efeito da necessidade de aumento de competitividade nos seus meios de produção e bem assim pelo constante “benchmark” internacional e transparência dos mercados mundiais.

Veio também, por outro lado, abrir as portas para que novos países em vias de desenvolvimento que cumprem as regras do comércio internacional e dos direitos humanos possam ter oportunidade de participar mais activamente neste movimento do comércio e investimento global que se reflectirá no médio e longo prazo no modelo de desenvolvimento económico dos vários países, na respectiva atractividade, no seu crescimento, na sua capacidade de atrair investimento, de criar emprego sustentável, enfim, de estabelecer uma influência duradoura no modelo económico e social de todo o mundo.

Para países como Portugal, inseridos numa Europa a 27 que representa um bloco económico mundial com uma população próxima de 500 milhões e um mercado único profundamente dinâmico e em recuperação, o desafio da globalização precisa de ser rapidamente entendido, interiorizado e as empresas necessitam adaptar a sua actuação compreendendo que o seu mercado interno é o Europeu, os seus parceiros “nacionais” são os europeus e a amplitude de escolha de parceiros internacionais aumenta consideravelmente.

Ou seja, teremos que compreender que as comodities e utilities tendem a concentrar-se no espaço Europeu, o que se reflecte de forma particularmente incisiva em países pequenos como Portugal, dando lugar a uma nova cultura de empreendedorismo e inovação que passará a ser o “coração” do dinamismo da nossa economia.

E de nada adianta a velha máxima dos sectores mais maduros não terem futuro, como temos vindo a dizê-lo com frequência em relação ao têxtil e calçado, pois tal como em muitos outros sectores, exemplos de sucesso como a Aerosoles ou a Salsa vêm negar a condenação precoce dos mesmos e pelo contrário vêm demonstrar que o arrojo empresarial, a internacionalização e uma política bem sucedida de marca são elementos de valor acrescentado inabalável no sucesso dos empresários da nova geração.

A proximidade às Universidades com uma adequada política de Investigação e Desenvolvimento em sectores com uma componente de engenharia ou gestão mais qualificada (YDreams, Chipidea ou Biotecnol, para dar apenas alguns exemplos) são igualmente prova de que Portugal encontrou uma via de desenvolvimento, inovadora e de primeira linha mundial que tenderá a replicar-se em áreas como a energia renovável com prováveis reflexos nas novas oportunidades do sector agrícola, ou até mesmo no Turismo onde ainda temos um longo caminho a percorrer.

Portugal está a mudar a sua mentalidade retrógrada compreendendo que o discurso do proteccionismo promove mediocridade e que não cria valor acrescentado sustentável no médio e longo prazo e que em contrapartida as práticas de inovação, risco, empreendedorismo e internacionalização suscitam a criação de empresas jovens e dinâmicas, adaptadas ao impulso de uma economia global.

Sejamos capazes de resolver o nosso problema de escolaridade e educação e provavelmente poderemos almejar um lugar de destaque na cena internacional.

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terça-feira, 19 de junho de 2007

Ainda o suicídio

Decididamente ando numa fase mórbida. Depois do Dr. Morte apetece-me hoje voltar ao tema do suicídio. Não tanto para continuar a teorizar sobre o assunto mas para falar de um dos «suicídios» mais bonitos da história do cinema. Refiro-me à resignação seráfica com que Stefan Brand, aliás Louis Jourdan, avança para um encontro mais do que anunciado com a morte na magnífica sequência final do «Letter from an unknown woman» de Max Ophüls. Não existirão, repito, muitos momentos na história do cinema em que a aceitação pacificada da morte tenha uma expressão mais natural e mais cristalina. Até porque esta morte em Ophüls tem mais de reencontro do que de morte. Ou não fosse ela a única forma possível de reescrever um amor equívoco e sobretudo uma vida que, no curto espaço de uma carta de uma desconhecida, se viu cruelmente despida de qualquer sentido.
Mas não me adianto mais. Se há filmes que não podem ser contados, este é seguramente um deles. Deixo-vos, como Stefan Brand acabaria por deixar Lisa Berndle, na noite de todas as ilusões…

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domingo, 17 de junho de 2007

V. L’innocente. Visconti

Quem é o inocente? A primeira resposta é de que se trata da sétima personagem: da criança que vai morrer. É da matança dos inocentes que se trata. Mas em boa verdade o primeiro e único inocente é Tullio, o marido, o filho, o amante manipulador. Ele viu-se sempre como inocente, destituído de um pecado original de que não quer participar e por isso recusa a existência. Assim fazendo, recusa a existência de todos os que o rodeiam. São apenas peças para o seu projecto de fruição e curiosidade. Nada mais. Ele vê-se como inocente, como o único inocente nessa história. Desfiando o rosário das suas teorias para justificar o que no fundo é a sua falta de presença no mundo. Tullio é um exemplar, mais um, dos múltiplos povos, pessoas e grupos que vivem propalando a sua inocência perante o mundo, espécie sempre perigosa para os outros.

No fundo, o final é feliz, porque consequente. Tullio acaba por se suicidar porque percebe que a inocência não é nada. Sendo a sua vida nada, essa é a única consequência lógica a retirar. Tullio suicida-se por coerência, e só não pode ser aplaudido por isso porque deixou um rasto de destruição à sua volta. Digo que é feliz, mas não sou justo. A cena mais triste é a final, em que a condessa Raffo desaparece na paisagem. Imagem sublime da mais absoluta perda de esperança, imensa tristeza a de ver alguém que mais que outro qualquer gostaria de a ter. O maior suicídio, este injusto, é o da condessa Raffo. Essa nem teve a possibilidade de pôr termo à vida. Apenas a deixou diluir-se no anonimato, num jardim de uma beleza imponente, plácida e tenebrosa. Aqui se mostra que Seurat está bem além de Munch, e que o expressionismo é apenas brincadeira de crianças ao pé da placidez enganadora do puntilhismo. O que se passa nesse jardim está bem além do desespero. É beleza pura. Apenas.

Visconti é frequentemente acusado de estetismo. Se estetismo é fazer coisas belas, bem vindo seja ele. Entre o grosseiro e o belo a minha escolha foi sempre evidente. É muito fácil fazer grosserias, a beleza poucos a podem criar. Mas o que se opõe ao estético não é a verdade. Apenas o desnudamento. E o desnudamento público foge geralmente à verdade. Conduz à pose. Nada mais.

Cada vez que queremos beber de uma verdade gritante não é aos gritos que a percebemos. Gritando apenas a afastamos ou apenas ouvimos o nosso eco. O velamento permanente que existe no filme (até nisso a época foi bem escolhida, em que as mulheres usavam véus faciais) é sinal de uma suspeita, de um indício, o que é em geral o que conseguimos apanhar de mais próximo da verdade. Não se chamara de “O Inocente”, o filme deveria chamar-se “O Véu”. Mas isso seria revelar demasiado a verdade. O Inocente mostra até que ponto é sob o discurso da mentira gritante que a verdade mais simples se descobre. Mesmo que para isso tenha de estar velada.

http://www.imdb.com/title/tt0074686/
http://www.luchinovisconti.net/visconti_al/illusioni_innocente.htm
http://home.att.net/~digitalworldtrade/web/visconti.html
http://www.arqnet.pt/portal/biografias/visconti.html
http://www.europaeuropa.pl/po/fiszka.php?id=1089


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sábado, 16 de junho de 2007

IV. L’innocente. Visconti

O curioso é que o facto significativo se encontra na morte da criança em plena noite de Natal. Não é por acaso. É bem pelo contrário a chave de todo o filme. Todo o filme é uma anti-Natividade.

Tullio é um São José que se fez Herodes. Giuliana a sua mulher, a que teve como obra de redenção a poesia e o mero sentimento, tendo-se reduzido na sua vida a este projecto por ter previamente aceitado as regras estéreis do marido, as da tirânica “abertura” da relação. O seu destino não acaba na dádiva de si, mas no mero ódio. A mãe é uma Sant’Ana que não percebe o sentido do sacrifício que acaba de viver, duplamente irónico, porque não é seu neto quem morre, e porque não serviu de nada tal nascimento. O irmão é Pilatos, que lava as suas mãos dos problemas. Sabe que algures há uma indignidade, mas prefere não agir. E a condessa Raffo é a Maria Madalena e mulher pecadora, mas no fundo a única que ama a dignidade profundamente. Na cena final é ela quem aparece. Fundindo-se com a paisagem, em suma, com a natureza. Porquê? Porque numa história sem esperança apenas o apagamento na paisagem constitui final possível.

Tullio é loquaz até ao enfado. Fala para não ter de comunicar. E fala. Não em situação, mas sempre em nome de uma teoria. Sempre que está com as três mulheres da sua vida ou desfia projectos que sabe não ir realizar (ir a Paris com a amante, ir viver numa villa com a mulher próximo da sua mãe) ou então: enuncia teorias. Tullio usa as teorias, ou melhor a sua teoria, confrangedoramente banal, para não ter de comunicar, mas sobretudo para não ter de estar presente, de enfrentar a sua situação como vivente no momento em que vive.

E qual é a teoria de Tullio? A mais fácil de todas: o primado do prazer, da curiosidade, da carnalidade. Do presente sensível. Estranho que a observação não tenha sido feita, mas todos os materialismos da carnalidade são sempre soluções fáceis. Isto porque a base de locução não é comensurável com o seu objecto. O espírito afirma que a matéria, apenas ela, existe. O objecto não pode por isso sindicar a teoria. Ficciona-se que a carne o espírito se opõem, e vive-se no desejo que nunca se encontrem. Esta teorização da carnalidade como fundante do mundo é assim sempre uma forma de superstição, de segregação e de demissão da sindicância.

Feita de mitos mal estruturados, de vazios mal explicados, gera apenas um fruto consequente: o homem loquaz. Ao ponto de ser incapaz de ter sexo com uma mulher sem a inundar de teorias. Ou seja, de mais um véu que se lança à realidade, esperando que ela desapareça.

No fundo, Tullio apenas vive esperando que tudo desapareça. A existência do mundo é para ele mera teimosia, e teimosia vertida contra ele. O mundo torna-se conspiração. Onde não se participa apenas se acredita haver urdimento.

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Liberalismo e Arquitectura (3)

Entregues a uma dimensão em que o fio que une os interesses individuais e os interesses comuns parece reduzir-se ao mínimo, perdido um ideal comum para os povos, perdida a posição individual num contexto convivencial, os indivíduos escondem-se na expressão de uma vontade própria, a expressão da sua interioridade, que não pretendem discutir nem têm condições de comunicar.

Os arquitectos, espelhos do seu tempo, parecem hoje distantes do concreto existencial em que a vida das comunidades, das cidades ou dos povos se desenvolve. Filhos do internacionalismo estilístico e de uma tecnologia sem fronteiras, actuam sem referência ao que, antes, era fonte e expressão de harmonia. Actuam, sobretudo, em nome de si próprios. É certo, que são sedutores e surpreendentes, pelo menos num primeiro olhar, mas sente-se que cada vez mais produzem todo um tipo de bizarrias que, verdadeiramente, só interessam a si próprios (e, talvez a presidentes de câmaras ou de repúblicas), as quais acabam por ser anuladas, no palco que são as cidades, por outras bizarrias equivalentes. Mas entre bizarrias e voluntarismo, vai-se destruindo e matando o espaço público como espaço de expressão não da personalidade de um arquitecto mas da singularidade de uma comunidade, de um povo ou de uma história, de uma cultura ou de uma civilização.
Percebe-se muito bem, que tanto o direito como a arquitectura lidam com este difícil mas indispensável equilíbrio entre a necessidade de interpretar o que é comum e deixar a liberdade de actuar no que não ponha em causa o compromisso que está na origem da vida em comunidade e que é a garantia da sua perduração. O que é errado é chamar liberalismo a todo o tipo de bagunça que a falta de lei e da sua aplicação vai semeando nas sociedades contemporâneas. O liberalismo não é apenas uma corrente económica, é o sistema da liberdade económica e política (e, por isso, do direito), é a aceitação de que os melhores resultados saem da possibilidade de cada homem agir segundo as suas potencialidades, interesses e talentos, sem que haja qualquer forma de o limitar nesse movimento em nome de proselitismos ou verdades efémeras. Pressupõe que essa acção, simultaneamente, reconheça os interesses e as expectativas do outro: o saber do direito e o saber da arquitectura formaram-se nesse reconhecimento.
Pode o mundo, não perceber os limites e o interesse deste compromisso, mas confundir o livre-arbítrio infinito e a liberdade é um erro que a humanidade já devia ter superado. Porém, perante o cenário em que a arquitectura se exerce como prática dos arquitectos, há dificuldades metodológicas que se lhes apresentam diariamente. O entendimento vulgar de que a arquitectura exige espectacularidade, leva a que aquela ideia de continuidade que sempre existiu nas cidades se perca e todos os edifícios requeiram excepcionalidade, visibilidade e diferenciação. Os arquitectos que se distinguem no panorama internacional são estrelas que pairam acima dos comuns mortais e que lhes impõem obras bizarras que o gosto frágil vai aceitando, incorporando e, por fim, exigindo. Vemos aqui e ali resistências, outras práticas, mas sentimos que a pressão do exemplo do star system (e do circo mediático que o valida) a educar as novas gerações que um dia pensarão a arquitectura como uma arte plástica ou uma arte de espectáculo, vai dissolvendo a substância disciplinar da arquitectura. Veremos, ou antes, já vamos vendo, as cidades a indiferenciarem-se porque ninguém as pensa como o lugar onde o homem encontra a proporção da relação da sua subjectividade com o que universalmente faz dos homens seres afins. Parecendo favorecer o individualismo está a matá-lo. Como vai matando as cidades e a Liberdade.

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Liberalismo e Arquitectura (2)

Ao longo da história e da existência dos homens em comunidades, sempre houve um permanente compromisso e um permanente conflito que pelo direito e pela arquitectura se procuraram equilibrar. O direito e a arquitectura, como disciplinas que formam os parâmetros da existência comum dos homens, e que existem pela sua determinação e implantação no real quotidiano, geram uma constante e sempre presente expectativa de acção dentro dos limites ou compromissos entre todos e, neste sentido, esse real permite, aspira e constrói um ideal. A expectativas de cada um não se reduzem, assim, dentro do referido compromisso, a uma expressão da vontade individual, seja por juízos não consagrados nos princípios do direito, seja por obras que não interpretem os pressupostos da vida comunitária e de que todos têm uma expectativa individual. O direito exige do juízo e da sentença, que se reporta aos princípios da lei vigorante e à sua interpretação; a arquitectura, desenha-se e constrói-se entre o conteúdo simbólico que é próprio a cada espaço público ou privado e a criação artística que ao arquitecto cabe na interpretação do arquétipo e à sua recriação em novas formas.

Tradicionalmente, a arquitectura sempre fez corresponder as suas formas aos símbolos que em cada época representavam a verdade assumida (compromisso ou sagrado) pelas comunidades e, constituiu-se, por isso, como uma forma de saber com a sua gramática, a sua retórica e o seu modo próprio de problematizar, interrogar e defender as suas razões. Mesmo na modernidade, na modernidade filha da filosofia moderna e do cientismo que lhe é intrínseco, a arquitectura deduziu ou traduziu as formas políticas que no direito ganharam foros de cidadania. Porém, se nas formas tradicionais a arquitectura (incluo sempre o urbanismo na disciplina da arquitectura) assumia toda uma simbólica e um mester, é verdade também que, nas sequelas da modernidade, essa simbólica e esse mester deixou de ser exigido na sua prática quotidiana. Hoje em dia vive-se, como dissemos no início, num tempo em que parecem estar exauridas todas as formas de saber simbólico que outrora, e não assim tão longe, davam uma base comum, comunitariamente aceite por quem fazia arquitectura, e por quem dela apenas usufruía. Mas acontece, conforme a nossa tese, que a arquitectura é o espelho da nossa forma de estar e de pensar e, por isso, a crítica que fazemos ao nosso tempo é em grande parte a crítica que fazemos à imagem das nossas cidades, vilas, aldeias e metrópoles. E essa crítica se tem expressão numa forma de individualismo sem regra que isolou os homens em si mesmos numa espécie de egoísmo sem saída, não se resume a isso, porque o individualismo é a base do reconhecimento do outro, o seu princípio. O que se perdeu foi o que chamámos assumpção de uma verdade, transcendente aos indivíduos, e que os unia ou, melhor dizendo, que exprimia e identificava as suas afinidades. O erro moderno de identificar o princípio da individuação com a descoberta da interioridade, substituiu a descoberta da subjectividade que, essa sim, estabelece a diferença dos indivíduos em relação ao que lhes é afim, chamemos-lhe Uno. O reflexo disso nas aldeias, nas vilas e nas cidades é a imagem de uma procura individual de se representar a si mesmo em vez de representar o Uno de que cada um pode e tem uma perspectiva própria, diferente e singular.
Para aqui chegarmos não foi a arquitectura que percorreu sozinha este percurso. As relações humanas alteraram-se muito. Mas, sobretudo, o que mudou foi o paradigma ou os princípios em que o compromisso entre os homens em comunidade tinham assumido entre si, expressa ou tacitamente.

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Liberalismo e Arquitectura (1)

A primeira assumpção que fazemos é a de que vivemos num tempo em que abundam os diagnósticos mas escasseiam as respostas. Há, no domínio da opinião, a convicção, senão mesmo o consenso, que, de algum modo, tudo já foi experimentado e tudo já mostrou as suas fragilidades e os seus evidentes insucessos. Politicamente, a prova da desistência é a redução da percepção da vida política à perspectiva quase exclusiva da vida económica, como se a realidade económica se sobrepusesse a todas as outras formas da existência em que o ser humano e as comunidades humanas vivem e se manifestam: o conforto e a riqueza como finalidades da existência, garantia da realização pessoal e da autonomia individual.

Há, entre outras, uma razão para isso: as relações humanas têm na vida económica o ponto de contacto mínimo necessário para a organização da subsistência, primeiro, do bem estar, depois, e da satisfação lúdica, por fim. Podemos nada ter em comum com os outros, podemos até rejeitá-los, mas sempre temos de minimamente contactá-los para trocar bens e serviços de que temos necessidade e que, no nosso isolamento, não conseguimos produzir.
Temos, pois, de reconhecer, que pelo menos num nível mínimo somos seres de comunidade e de relação. E se assim é, há um plano ou grau da nossa vida em que partilhamos interesses comuns e que desejamos seja, no nosso interesse, um espaço em que a liberdade individual não seja posta em causa. Este espaço é o espaço público. O espaço público é um lugar de encontro e de convívio a que, individualmente, cada um acede por iniciativa própria, na procura de um complemento de si, naquilo em que não se realiza isoladamente, e no qual aceita, não só a liberdade de iniciativa dos outros, como, também, tem a expectativa de ser aceite pelos outros. A qualidade desse espaço público é o reflexo do que as iniciativas individuais, no seu movimento, dão e recebem na construção de uma liberdade partilhada que é, ao mesmo tempo, a garantia da liberdade individual. A redução à economia é, apenas, a redução ao grau mais baixo ou elementar das relações humanas. A história do amor mostra-nos que não é só a economia que orienta as nossas vidas.
A construção do espaço público comum tem duas formas institucionais de se fazer representar: o direito e a arquitectura. O direito, cuja finalidade está na ideia da Justiça, como disciplina que organiza e hierarquiza os interesses individuais em ordem ao interesse comum e a arquitectura, cuja finalidade está na ideia de Paraíso, como disciplina que organiza e hierarquiza os lugares, como palcos, onde os indivíduos permanecem e partilham as suas vidas. O direito e a arquitectura são sempre o espelho de uma comunidade e dos seus valores, dos seus interesses individuais e da sua ideia de partilha, comunhão e de verdade. Tudo o resto pode intervir no tempo da existência sem influir no espaço da existência, ou pode influir no espaço da existência de modo fortuito e episódico sem que transcenda o tempo da sua apresentação. Tudo o resto pode, até, marcar o tempo e constituir uma memória, pode vir a influenciar o direito e a arquitectura, mas o direito e a arquitectura não têm, pela sua natureza, outra forma de concretização que não seja a determinação efectiva das relações entre os homens e a sua hierarquia e a organização do espaço como um palco onde se concretizam essas relações. Um poema, um quadro, uma peça, um filme, podem estar fora do seu tempo (antes ou depois), podem ficar guardados numa cave ou num baú, mas as leis e os seus princípios, as praças, as ruas, as casas e os monumentos estão sempre presentes no mesmo espaço, um espaço concreto e determinado.
As comunidades, os países, os estados, as nações e as pátrias são um reflexo do seu direito e da sua arquitectura enquanto expressão da sua ideia de espaço público e de espaço privado, ou seja, da sua ideia de liberdade.

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sexta-feira, 15 de junho de 2007

III. L’innocente. Visconti

A primeira grande separação faz surgir dois trios de personagens.

De um lado, os ligados à fonte da vida. O poeta, que tem fim trágico porque apenas existe pela poesia. É literalmente uma figura poética. A mãe de Tullio, trágico destino precisamente por saber amar (a criança que acabou de nascer). Giuliana, a mulher, porque a única forma de encontrar o amor foi ilícita (para ela esta expressão tem significado) e acabou no ódio.

De outro lado, os desligados da fonte da vida, em suma, sem esperança. A amante, a condessa Raffo, lúcida, bem sabendo que tem imensos trunfos na vida, mas sem esperança em amor redentor. O irmão, Federico, que sem esperança se dedica à distracção. Divertir para ele tem o verdadeiro sentido da palavra, desviar do caminho, no caso, o caminho da sua vida. Tanto a amante como o irmão partilham algo em comum: sabem que estão sem esperança e sabem que a vida lhes é incompleta. Tullio, o terceiro elemento deste trio, o mais patético, e por isso o menos trágico de todos. O que fez da ausência de esperança uma filosofia de vida. Que determinou que a vida nada mais era que isso: fruir, ter curiosidade e depois fenecer. Nada mais.

As duas personagens mais comoventes acabam por ser a mãe e a amante. A mãe por ser pessoa de profundas convicções não as impondo a ninguém, sofrendo das imposições ideológicas do seu filho, que fez do vazio existencial, do ateísmo militante, a sua fé e a sua cruzada. A amante Raffo, porque na sua lucidez é a que mais tem noção do sentido trágico da situação.

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quinta-feira, 14 de junho de 2007

II. L’innocente. Visconti

Sendo seis as personagens relevantes (veremos uma sétima), é preciso mostrar as regras do jogo. O marido estabeleceu uma relação “aberta” com a mulher, abertura de que ele é o único autor e fruidor, embora por princípio não se oponha a que a mulher frua. Por princípio obviamente. Mas a sua abertura é apenas uma forma cómoda de exprimir o seu vazio, como veremos. A sua paixão erótica tem-na com a amante.

O problema é que a mulher se apaixona pelo poeta, que encontra em casa do cunhado. Recolhe-se em casa da sogra ao que o marido se vem juntar a ela. Situação clássica: quando começa a sentir que começa a perder a mulher já esta lhe inspira instintos eróticos.

Tarde demais: ela está realmente apaixonada pelo poeta, e está grávida dele. O poeta morre e a criança nasce. Para grande alegria da avó. Aliás, a única alegre com o facto, e por ironia a que não tem nenhum laço de sangue com a criança (embora não o saiba). Na noite de Natal o marido mata o bastardo e a história quase acaba aqui, sendo a cena final um mero epílogo, um comentário – fundamental, não obstante.

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quarta-feira, 13 de junho de 2007

I. L’innocente. Visconti

Nos anos de 1970 era de bom-tom fazer análises sociológicas. Ou então psicanalíticas. Ou então estruturalistas. Em geral feitas com base em alguns lugares comuns, mais raramente com instrumentos de análise efectivamente consistentes. Num caso ou noutros, é evidente que nenhum método de leitura pode ser deitado fora sem mais. Todos nós sabemos que existem vários níveis de leitura, o que quase nem vale a pena repetir de tão banal que é.

É certo. Mas a verdade é que nem todos os níveis de leitura têm a mesma riqueza, nem sequer a mesma pertinência. Nos anos 70 em que se vivia ainda do mito da universalidade dos valores europeus, e da sua invencibilidade, até o facto de estes serem martirizados e relativizados mostrava no fundo que estes eram vistos como invencíveis e conquistadores. Que modelos se guerreavam pelo domínio do mundo? Dois modelos europeus: o capitalista e o comunista. Brincar com os valores europeus era apenas uma forma divertida e afinal sem consequências que fruir de um luxo instalado por gerações anteriores.

A estrutura da narração é relativamente simples de descrever. Vive de seis personagem. Um marido (Tullio Hermil), a mulher (Giuliana Hermil) a amante do marido (a condessa Teresa Raffo), a mãe de Tullio, o irmão do marido (Federico Hermil) e um poeta idealista, de uma classe social inferior. (Filippo d'Arborio).

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