segunda-feira, 27 de maio de 2013

Relações de vizinhança

O que é um vizinho? É o que está perto de nós. Quando os vizinhos são países nem nós os escolhemos nem eles a nós. Foram meras vicissitudes históricas (a História tem importância afinal) que nos fizeram ficar perto. Conheço europeus que sentem muito mais afinidades com indianos, chineses ou brasileiros. Mas a verdade é que lá estão eles, teimosamente, os nossos vizinhos. São outros. São árabes, turcos e turcófonos.

Independentemente de maiores ou menores simpatias um vizinho tem um estatuto especial. Está perto. Cola-se à nossa vida e nós à dele. Podemos ignorá-los mais ou menos, mas nunca completamente, nem eles a nós. Não se trata portanto de simpatias especiais. De entre os não europeus tenho mais simpatias pelos indianos, pelos persas e pelos árabes, porque admiro mais povos criativos que medíocres. Mas isso é questão de gosto pessoal. Irreleva portanto.

O que fazem os vizinhos? Podem ignorar-nos, mas não é o caso porque somos mais ricos, mais ricos económica e culturalmente e, esquecemo-nos desse facto, somos muito grandes. Grandes demais para ser ignorados. Podem entrar-nos dentro de casa pela emigração, ou querer ser o que nós somos por uma paixão doentia e não correspondida, como acontece com os turcos. Podem odiar-nos, invejar-nos, ter ressentimentos em relação a nós e ao mesmo tempo admirar-nos.

É evidente que cada um dos nossos vizinhos é diverso do outro. Uns são particularmente sofisticados, como os do Levante (Médio Oriente e Egipto), outros um pouco menos (como os do Maghreb) outros nem sabem bem o que são, como os turcos e turcófonos da Turquia e da Ásia Central.

Mas têm aspectos comuns. Participam de processos civilizacionais falhados, que não produzem nenhum génio desde o século XII (árabes), ou nunca produziram (turcos). E que já não são potências relevantes desde o século XVIII no melhor dos casos (Turquia).

Que relações queremos ter com os nossos vizinhos? Para quem quer a paz, prefere que sejam boas. A ideia miraculosa da Europa, típica do seu espírito cristão, é o da engenharia histórica. Queremos convertê-los em europeus. Como? Através da ajuda humanitária e da ajuda ao desenvolvimento. Achamos que se eles forem ricos como nós estarão pacificados. E como enriquecê-los? Transformando-os em economias tipicamente europeias, em sociedades europeizadas. O herdeiro do espírito da cruzadas, generoso, mas visto como agressivo pelos nossos vizinhos.

É que se esta ajuda é sinal de sensatez, de sentido de responsabilidade e de generosidade, no que concedo, esquece o facto de que os povos não se alimentam só de pão. O que diríamos nós se a nossa última glória cultural fosse Santo Anselmo? Se não houvesse, nem Bach, nem Gauss, nem Tolstoï, nem Kant, nem Heisenberg, nem Camões? Se a nossa última poesia de relevo fosse a trovadoresca, e o nosso último grande pintor fosse Giotto? Que diríamos, caso fossemos turcos, caso não tivéssemos deixado nenhum nome para a História da cultura, ou apenas o conseguíssemos se disséssemos que Rûmi, poeta persa, era turco? Seria como dizer que Portugal é um país de grandes filósofos porque Ortega Y Gassett viveu refugiado em Lisboa algum tempo.

A pacificação pela ajuda é um instrumento, mas não basta. Os povos sentem necessidade de ter orgulho na sua cultura, sentem necessidade de prestígio em suma. O Japão não se pacificou apenas pela prosperidade económica. É porque a sua cultura tem prestígio. A Arábia Saudita, país rico, vive no ressentimento porque não produz um único homem de cultura que tenha prestígio.

O problema é que não podemos ajudar os outros a ser criativos, a serem estudiosos, a serem inteligentes. Pode-se dar o caso portanto de os nossos vizinhos se desenvolverem estrondosamente, mas continuarem estéreis sob o ponto de vista cultural, folclóricos em suma.

Uma das estratégias é a de fazermos de conta que ficamos fascinados com a profundidade da sua cultura. É o que tem acontecido com o cinema turco e com certos músicos turcos que alguns países europeus tentam promover. Mas não se encontram nem Eisenstein, nem Strawinski entre eles. E quanto a matemáticos ou físicos turcos, nem se pode fingir que eles existem. A longo prazo vale o que vale, como todos os embustes. Perceberão que nada resta, porque nada havia de origem.

A outra é a de rezarmos para que eles se resignem. É pia intenção e duplamente arriscada. A longo prazo não é muito sustentável a prosperidade sem invasões guerreiras (caso turco) ou sem criatividade (como aconteceu com árabes e persas). É mesmo duvidoso que se desenvolvam sequer de forma consistente nos próximos tempos. E pode-se dar o caso que um dia acordarem lúcidos e verificarem que têm uma cultura não criativa. Pensamos dizer-lhes: “ora isso não tem tanta importância assim”?

Não é por acaso que há fundamentalismos. O problema é económico-social mas também simbólico e cultural. Aquilo a que os estamos a obrigar é a que deixem o seu paradigma de civilização ou então que retornem a fontes arcaicas. É o que têm.

Daí que a vacina não baste, é necessário o hospital. Não é dizendo que nunca vai haver doença que a evitamos. Da mesma maneira não é dizendo que nunca vai haver guerra que ela nunca se verificará. Ou deixamos o hospital a ser gerido por outros, no caso os americanos, e toda a nossa política fica dependente deles, ou pagamos o preço desse hospital.

Porque historicamente os vizinhos fizeram guerra. Evitá-la implica reconhecer a sua possibilidade. E dotar-se dos meios para a vencer. E se não a queremos, se não a queremos real e profundamente, temos de não depender de guarda-chuva dos outros. Sempre que molhar mais para o lado deles escuso de dizer quem vai ficar protegido. Por isso quando vejo um político dizer que o nosso principal aliado são os americanos, pergunto-me se ele vota para o congresso americano ou o presidente dos Estados Unidos. Não sendo o caso, entrega-se nas mãos do Espírito Santo. E como diz Jung: “que imprudência!” Sobretudo porque não é espírito, e muito menos santo.


Alexandre Brandão da Veiga



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sexta-feira, 17 de maio de 2013

Nada menos do que o melhor!


Com o Papa Francisco em Roma e D. Manuel Clemente no Patriarcado de Lisboa é imensa a responsabilidade dos crentes. Em ambos temos o Bom Pastor, amigo do óptimo comunicador. Vivemos dias felizes e exigentes.

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A cobardia como forma de luta


Que respeito pode merecer-me um professor que prejudica os alunos para defender a sua pele? Que professor pode usar um aluno como escudo numa qualquer batalha? Que gente é esta que faz das nossas crianças objectos de arremesso numa guerra com o Ministério da Educação?
Nem discuto os seus motivos. Porque todos perecem perante esta iniciativa de greve durante os exames dos menores.Haja decoro.

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sexta-feira, 3 de maio de 2013

Racionais e científicos


Tendo eu dedicado algum tempo e paciência ao estudo de espécies de insuficientes, gostava de apresentar mais um que vegeta na praça pública. Descreve-se este pela frase “eu sou um homem racional, com espírito científico”. E nada mais diz a criatura. Não fundamenta nem desenvolve.

Façamos uma pausa e vejamos que enormidade está a ser dita. É que o pobre coitado julga que está a dizer coisa coerente, mas esquece-se de que a razão e a ciência não vivem sem duros conflitos entre si. A banalidade faz da fé a grande adversária da razão, ou pelo menos com quem mais se confronta. Mas a ciência não tem menos problemas com a razão.

Em primeiro lugar abandona qualquer hipótese de uma razão total. O sentimento de quem tem razão, as vivências que se instalam em simbiose com a razão e a alimentam são expurgados do seu horizonte. A razão da ciência pressupõe uma despedida e uma pobreza. Em segundo lugar é uma razão não imperante, antimonárquica. Essa mesma razão tem de ser sindicada pela experiência, pelos sentidos, mesmo que mediatamente. É uma razão dominada, obediente. É finalmente uma razão que abdica de tratar pelo menos directamente (ou seja, nunca) das coisas últimas, das últimas causas e dos últimos fins. É uma razão de renúncia, em boa verdade, casta.

A razão da ciência é assim uma razão que nasce de uma despedida, de uma dominação e de uma renúncia. Pobreza, obediência e castidade são os seus motes.

Os grandes filósofos medievais (cada vez mais percebo que este adjectivo diz muito pouco) conviviam alegremente com o infinito, traziam-se eles todos com a razão, e deixavam-na imperar. Nada desta glória é reservada à ciência moderna. A partir do momento que se abandona este primado da razão o espírito científico vive obcecado com a certeza e mais tarde obcecado com a sua destruição, como se de um bezerro de ouro fosse. Mas bezerro criado pelos primórdios da própria ciência e não por um mítico obscurantismo medieval.

Se bem virmos o que mais se aproxima do movimento científico não é o sacerdote de Ísis castrado, nunca o poderia dizer tendo em conta a sua fecundidade, mas o movimento monástico. Tanto os votos que a razão tem de fazer para se tornar científica são semelhantes, assim são semelhantes as manifestações de um e outro movimento. Ambos formam um modo de vida, as suas congregações. E entre os orgulhos de cada mosteiro, outras vezes orgulhos nacionais, a pertença à república das ciências traz ar de beneditina postura.

Como se vê, a razão da ciência não é uma soberana e folgazona que se atrevesse a cavalgar no seu império. A riqueza da sua vida faz-se da clausura, a extensão da sua vida mede-se na medida inversa dos seus constrangimentos. Como se vê, quem afirma ser racional e simultaneamente ter espírito científico sem mais fundamentar ou delimitar arroga-se ser rei e monge de um só golpe. Sem ter consciência da contradição.

Mas continuemos. Vejamos em que mais esta frase esquece os dados fundamentais do que deveria dizer.

De que razão se fala, de que ciência? Cada uma delas tem assentos bem diversos, modelos bem díspares entre si. O modelo mecânico imperou sobretudo nas ciências físicas, por vezes na química. O modelo morfológico nas ciências humanas e nas da vida. Um e outro atravessam a matemática e a química. Trata-se de modos de viver a razão bem diversos, sendo ela a mesma não obstante. É evidente que existem paralelos entre o filólogo, o linguista, o mineralogista, o biólogo e mesmo o especialista da álgebra abstracta, sobretudo na escola de Bourbaki e seus descendentes. E que existem semelhantes entre o especialista em análise, o físico, o teórico da informação. E mesmo assim apenas falo de tendências. Nenhuma ciência foi imune à morfologia ou à mecânica. Freud é mecânico e Jung morfologista, Spengler é mais mecânico e Ortega, Toynbee e Kantarowicz mais morfologistas. De que razão se arroga pois este espécime que se afirma racional e científico? De que espírito científico? Afirma que a sua razão obedece a um paradigma mecânico ou morfológico? Ou ambos? E como os concilia?

O espécime em causa, que pulula no espaço público, não vive apenas nesta podridão. É que esquece que o movimento científico tem origens algo obscuras, nasceu na obscuridade, mas nasce igualmente todos os dias da obscuridade. Vejamos alguns exemplos. A atracção e repulsão de Newton são conceito bebido na teosofia, na cabalística, na tradição hermética. Todas as crianças cantarolam hoje em dia a canção de Einstein, mas não foram “idealistas” alemães como Mach, ou um homem não muito enquadrável como Maxwell a dar foro de nobreza científica ao conceito de energia, esse conceito tão ressumando espiritismo, e ocultismos, seria palavra bem ridícula hoje em dia face à comunidade dos cientistas. Quando o padre Lemaître descobre que um dos corolários da teoria da relatividade generalizada seria o Big Bang é acusado de criacionismo. Quando se fala em múltiplos universos tem-se conversa que assusta o nosso espécime. Não deve ser a essa razão que se depara com o infinito que o move.

Vejamos mais um pouco o bicho. A dissecação prova ser divertida.

De novo em termos simplistas a ciência fez-se de dois movimentos contraditórios. Um primeiro assente no platonismo (ou melhor, num neopitagorismo), que dá origem à física do século XVII. O segundo nasce com o aristotelismo e o tomismo, e que faz nascer as ciências da vida, a mineralogia e a química. Mas igualmente a filologia, e as ciências humanas em geral. Seguem-se obviamente várias miscigenações entre estes movimentos e uma ideologia sobre a ciência que quer como paradigma a física (neopitagórica) mas em boa verdade tem prática aristotélica, passando pelo filão helenístico.

E isto sem esquecer que estes dois grandes movimentos se entrecruzam com os outros e entre si. O movimento é monástico, no seu paradigma, mecânico ou morfológico no seu símbolo, platónico ou aristotélico, na sua origem antiga. De fundo cristão e pagão indo-europeu muitas correntes contribuem para a conformação de cada ciência e de cada momento específico desta, e de cada escola que nela se forma.

De quem se reivindica este espécime que diz ser científico e racional? Que cruzamento faz entre este movimento, estes símbolos e estas origens? Qual o seu paradigma, qual a sua metáfora? Disto nada nos sabe dizer o espécime. O espécime é só isso. Um exemplar de uma espécie. Não uma pessoa, mas uma mera ocorrência. Não bebe de um paradigma, mas apenas se subsume a uma categoria lógica. Não acede à metáfora quem não tem substância. Não vale a pena inquiri-lo. Ele não sabe dar resposta porque não sabe o que é uma pergunta. Apenas afirma, porque essa é a sua única forma de afirmação.

De que razão fala ele então? Porque se arroga espírito científico? Convenhamos: a sua razão é caseira, é a razão de açafata ou mais correctamente de criada grave. A sua razão está para a que é magna como a economia doméstica está para a ciência económica. Tem o seu lugar, mas apenas na copa. O seu lugar natural não é a antecâmara do infinito, mas tão simplesmente a antecâmara. E porque considera ele que tem espírito científico? Porque usa telemóvel e anda de avião. O espírito científico é algo que se usa e se legitima pelo uso. Cultor da usucapião, é apenas isso: detentor de terra não por a ter conquistado ou comprado a esforço, mas porque a ter usado desde tempo bastante para a ela se acomodar. Cultor do uso vê nele e apenas nele a legitimação. Que diga disparates não nos deve espantar, portanto. Assim apenas revela, não a sua opinião, mas a sua natureza.

Alexandre Brandão da Veiga

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