sexta-feira, 26 de maio de 2017

A crise e o símbolo chinês

Entre os gestores, líderes de opinião e pensadores avulsos da nossa época existe uma teoria que é a de que o símbolo chinês para a crise representa a fusão das ideias de risco e de oportunidade. Os sinólogos dizem-me que isso não é assim tão claro. Como não sou sinólogo, acredito mais nos sinólogos que nos gestores no que respeita à filologia.

A necessidade de ir buscar à cultura chinesa significado para as palavras que dizemos é tanto mais suspeita quanto as palavras que dizemos não são de origem chinesa. O paralelo, além de enganador sob o ponto de vista filológico, peca por nos enganar sobre aquilo que dizemos.

«Crise» vem do corpo hipocrático. É termo usado na medicina como «momento decisivo». Trata-se de um momento na evolução de uma doença em que se tem de tomar uma decisão. Mais planamente, é uma decisão. Sófocles, numa obra perdida, teria precisamente usado o título de «crise», ou seja, decisão. Tratava-se de um drama satírico, e em que portanto se faria chacota de alguém.

O mais importante numa crise não é o facto de haver riscos e oportunidades. Isso ou é trivial – assim é toda a vida – ou relega para fora de nós a questão. São coisas externas o risco e oportunidade. A tradição helénica, que nos serviu de muito em tudo, mostra pelo contrário o que de verdadeiramente importante se passa numa crise: temos de tomar uma decisão. Ou tomamos a boa, a tempo, ou corremos o risco de perder o doente, ou confiar na sorte.

Quem vai ao símbolo chinês para procurar o significado da crise volta no fundo a um pensamento animista. Julga que o essencial da crise está fora de nós, quando o que deve ser centro da nossa atenção somos nós mesmos. Que uma cultura como chinesa, que nunca concebeu a ideia de pessoa humana, pudesse viver bem com tais conceitos, aceitemo-lo como verdade, ou como mero passeio exótico. Não interessa.

Mas falar de crise significa antes do mais falar de nós mesmos, de nos responsabilizar. O doente está nas nossas mãos, somos nós quem tem de o tratar. É um apelo a pessoas. Se isso é bom ou mau, pouco importa. O mais importante numa crise é quem está perante ela. Para tomar uma decisão.

Deixemos os gestores gerir, os líderes de opinião passeá-las pela trela, e os pensadores avulsos serem levados pela sua natureza extranumerária. No que nos respeita, pensemos em nós numa crise: o que nos cabe fazer? O resto são exercícios de fonação. E deixemos aos filólogos de praça emprestada apenas a nossa chacota. Não se trata de risco e de oportunidade, mas de termos oportunidade para o riso.

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

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