segunda-feira, 24 de maio de 2021

Existem burros no Mali?

 


 

Numa rádio pública pontifica uma senhora que faz questão de citar pessoas de outras culturas. Se a cultura estiver longe parece-lhe legítima, por alguma razão. Desta vez cita um músico do Mali que pratica um género musical cuja designação se me escapa. Diz ele, cita-o ela: este género musical é mais antigo que Bach.

 

O argumento pareceu-me definitivo e parece-me bem que o dinheiro dos meus impostos vá para menorizar a Europa. Que um género musical seja mais antigo que Bach mostra uma superioridade de alguma música do Mali sobre a música europeia. 

 

Mas retiremos daqui todas as consequências. Ramsés II é mais antigo que essa música do Mali, pelo que temos uma superioridade de Ramsés II em relação a esse género musical do Mali. Em nome de Ramsés desprezemos pois essa música do Mali. 

 

 

Pessoalmente tive vários tios bem mais altos que Napoleão, o que, se não retira toda a glória militar a Napoleão, lhe diminui algum lustre. Antecipemos que a lista de homens na Calábria com pénis maiores que o de Sócrates seja bem vasta. Anula o seu valor dialéctico? Não. Mas já podemos adivinhar que há certas situações em que Sócrates foi menos impressionante que muitos anónimos da Calábria. 

 

Pessoalmente, e embora não goste de dar o meu exemplo, e durante um certo tempo, estou um pouco mais vivo que Riemann, e confio um pouco mais nas minhas capacidades matemáticas que nas actuais dele.

 

É um argumento pertinente que quanto a mim mancha a grandeza de Bach perante a inequívoca superioridade de alguma música do Mali, de algum dos seus músicos e de uma senhora paga com o erário público.

 

Existem burros no Mali? Temo bem que sim. E noutros lugares . Burras, mesmo. Mas, havendo-os noutros lugares, que me perdoe o Mali por eu não lhe dar nisto o palmarés. 

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

 

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sexta-feira, 7 de maio de 2021

Compreensões…

 


 

«Um chinês nunca conseguirá tocar com profundidade música europeia. Nunca irá perceber Bach, nem Mozart. Parecerá sempre uma imitação barata de um verdadeiro intérprete europeu». Já alguma dia o leitor ouviu este argumento? Está apressado a qualificá-lo de racista? Que pense bem antes de o fazer: já o ouviu sobre outra forma.

«Um europeu nunca conseguirá tocar música chinesa de modo profundo. Se um europeu quiser fazer pintura japonesa parece um macaco de imitação. Nunca irá compreender filosofia oriental, tanto menos conseguirá fazê-la». Já está mais descansado o leitor? Sente-se mais em casa?

Por que razão o primeiro parece tão chocante aos mirones da pequena burguesia, e o segundo tão familiar? É que há alguma assimetria que se foi impondo, sobretudo desde a Segunda Guerra Mundial, alguma assimetria que faz com que pareça natural dizer umas coisas, e chocante dizer exactamente as mesmas coisas, caso varie o objecto.

Temos aqui uma primeira hipótese de solução para resolver este enigma: os europeus são estúpidos, particularmente estúpidos, limitados, os outros povos conseguem fazer tudo o que nós fazemos, só nós somos incapazes de fazer o que eles fazem. Somos inferiores a todas as outras culturas, em suma.

E dou toda a razão. Quando vejo um europeu a dizer isto, olho para ele e digo: Tens toda a razão em dizeres que és inferior. Ao menos tens uma qualidade: és lucido.

Mas este argumento tem um insulto implícito. Como pode um chinês perder tempo a estudar uma cultura como europeia? Deve ser um chinês particularmente estúpido, nesse caso. Fora ele inteligente, estaria a tocar num conjunto de ópera chinesa, e não uma sinfonia de Beethoven. Os músicos orientais que tocam músicas europeias seriam por isso os deficientes da sua cultura, uma espécie de desamparados intelectuais que não conseguem fazer senão estudar a cultura europeia, em vez de estudarem a sua, obviamente muito mais rica e profunda. É melhor não ouvir tais mentecaptos. São as figuras menores, os limitados de entre os orientais. Nunca ouvir um oriental tocar música europeia, ou a fazer ciência europeia, portanto.

Mas como aquele argumento não se aplica a todos os europeus, e seria estranho que uma cultura tivesse nascido com o estranho privilégio de ser inferior em tudo a outras culturas, podemos aventar outras hipóteses de solução do enigma.

Se os orientais conseguem fazer o que fazemos e nós não conseguimos fazer o que eles fazem, surge um outro estranho privilégio da cultura europeia: só nós fazemos coisas imitáveis. O que os outros povos fazem é inimitável. Em suma, não é exemplo para ninguém. Ou seja, são provincianos.

Levemos esta lógica até à sua última consequência: apenas uma cultura foi capaz de criar conteúdos universais, apenas uma cultura é universal quanto ao seu conteúdo. A europeia. As restantes são apenas culturas locais, aptas para os seus nativos, culturas nativas, portanto.

Já sei que o leitor não queria dizer nada disto. Que queria dizer que era aberto as outras culturas (postura sempre confortável, evitadora de estudo), que tem uma visão equânime das outras culturas. Mesmo que para ter uma visão tão equânime tenha de menorizar sempre a europeia.

Mas nós revelamos no que dizemos bem mais do que queremos dizer. Estivera o nosso discurso dependente apenas da nossa vontade, foram as nossas palavras servas da nossa vontade, não teria havido na História, nem oráculos, nem literatura, nem a tão querida antropologia em que assenta o nosso leitor quando diz que as outras culturas não nos são transmissíveis.

O que diz, o que diz efectivamente, quem afirma que um europeu não consegue aprender as outras culturas, mas as outras conseguem aprendem a nossa, é que é a nossa a única universal, a única que criou conteúdos universais, a única que pode ser estudada por todos. Belo insulto, bela restricção, que esconde um tão belo elogio. Gente ínvia, pouco directa, que não sabe o que diz. Mas ao menos que se veja alguma justiça no que diz. Mesmo que a justiça se faça contra ela mesma.

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

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