segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Papalvos

O Presidente da Câmara de Lisboa mandou repavimentar algumas ruas da cidade, em vésperas de eleições e à pressa. Será que ele acha que somos todos papalvos? Ele não sabe que queremos muito mais do que isso? Por exemplo, onde estão as árvores da Av. da República depois das mais recentes obras do Metro? Será que os xxx milhões gastos vão dar para as replantar? Estas da foto ainda sobrevivem. Mas há um candidato à Câmara que também já prometeu arrancá-las.

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Alguém sabe da Inez Dentinho?

Desculpem-me o alarme, talvez sem fundamento, mas o facto é que estou preocupado. Há já alguns dias informou-nos aqui a Inez Dentinho que estava fechada num elevador da Assembleia da República com dois deputados socialistas, os quais discutiam, revoltados, os "lugares" em que tinham sido colocados pelo seu partido nas respectivas listas de deputados, lugares esses que, à primeira vista, poderiam não garantir-lhes o cumprimento daquele sonho antigo de afincadamente lutarem pelo bem comum.
Desde aí, no entanto, nada mais se soube dela. Ora, como sou amigo - e admirador - da Inez Dentinho e, ao mesmo tempo, conhecedor da veemência própria da sua argumentação, pergunto se há alguém que, desde então, a tenha visto, ou, de algum modo, saiba onde está, na medida em que estou neste momento preocupado com a saúde e com o destino dos referidos candidatos socialistas.

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quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Limites do Controlo de Jim Jarmush


É um filme abstracto em que a metáfora sobre o real permanece ela mesma num plano abstracto. Uma espécie de teoria, um filme branco, em que as personagens têm uma caracterização baseada num factor de identificação e não numa representação de uma alma: loura, guitarra, moléculas, mexicano, etc.

Os planos estão muitas vezes estabelecidos e são as personagens que entram neles enquadrando-se nas suas marcações: como se as personagens fatalmente tivessem os movimentos pré-determinados por uma realidade aprisionante.

Um criminoso profissional (Isaach Bankolé) tem de matar o poder. O poder, representado por Bill Murray, está solidamente protegido numa casa inexpugnável cheia de sistemas de segurança e guardas no meio do deserto andaluz.

A missão do profissional é-lhe confiada por personagens sinistras que falam por metáforas num aeroporto: “O universo não tem arestas. Use as suas capacidades e a sua imaginação.”

De terra em terra segundo indicações que lhe chegam por personagens que se aproximam dele e com ele trocam senhas, frases feitas, e caixas de fósforos dentro das quais um papel com uma cifra é metodicamente engolido pelo criminoso depois de lido. De paragem em paragem a cena repete-se como um ritual até chegar ao objectivo final. Cada testemunho-pista é-lhe comunicado com conselhos que o profissional não atende, não deve atender, para não se distrair e não divergir do seu objectivo. Estóico, ou obstinado, nada o distrai, nada o demove da sua finalidade. Diz-lhe a nudez que não lhe arranca um comentário ao seu rabo:

— No sex, no drugs, how can you stand it?

A tese ao longo do filme que vai sendo explicada ao criminoso profissional é a de que as moléculas que estruturam a realidade vão procurando novos arranjos que alteram essa mesma realidade e que a fonte que provoca essa alteração é a imaginação, outras personagens dizem-lhe que “aqueles que se julgam superiores aos outros, devem ir ao cemitério” ou que “la vida no vale nada”.

Concentradamente, o criminoso estuda a entrada na mansão e, inesperadamente aparece já lá dentro. Dentro da mansão inexpugnável superando misteriosamente os sofisticados sistemas de segurança e as suas redundâncias:

—How did you get in here?- pergunta Bill Murray, o poder.
— I used my imagination.

O poder surge como um poder abstracto. Bill Murray chefia uma organização que não é um governo, uma polícia, nem nada de concreto: é um poder em si mesmo, o poder da realidade tal como é entendida, tal como é conformadamente vivida, um status quo que é um poder total e avassalador por ser o quadro mental em que o mundo está organizado e porque a sua existência é, por si mesma, uma forma de pressão sobre os indivíduos quase intransponível. A única forma de a aniquilar é pelo uso da imaginação, a imaginação que promove novos re-arranjos sobre a matéria existente e que desse modo promoveria a extrapolação dos limites do poder.

Aqui Jim Jarmush não vai além de um cientismo banal que vê o mundo como uma combinação de forças de atracção e repulsão que geram diferentes formas de organização mas sempre dentro da mesma noção de limite que pretende extrapolar. Ilusões de um desejo de mudança motivado por uma indolente insatisfação e um tédio sem esperança. Uma imaginação sem asas.

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Sinédoque Nova Iorque de Charlie Kaufman


O encenador Caden Cotard (Philip Seymour Hoffman) estreia com extraordinário sucesso “A morte de um caixeiro viajante”. Porém, no dia da estreia, logo pela manhã, diz a si próprio que se sente mal. Um mau estar que se agrava com um pequeno acidente doméstico (uma ruptura de canos) que o obriga a ser cosido na testa. Vai-se, então, revelando um personagem profundamente perturbado que, de doença em doença, reais ou imaginadas mas sempre reflectidas na degradação do seu corpo – tremores, pústulas, descontrolo de funções – o vão fazendo deslizar de uma realidade estável para uma espécie de loucura em que o tempo, ou os tempos psicológicos, se começam a sobrepor e dissolver.
Para ampliar o seu estado de crescente alienação e descontrolo físico e emocional, recebe um prémio de 500.000€ o que lhe permite investir num projecto totalmente novo, uma obra inovadora cuja concepção e encenação simultâneas resultam numa espécie de psicodrama em que as personagens são os próprios actores enquanto pessoas comuns. Imagina, assim, uma aguarela urbana num velho e desactivado armazém de proporções gigantes onde Nova Iorque é recriada e cada um expõe (não representa) o seu eu, o seu destino individual, uniformizando o valor artístico (negando-o) em nome de uma verdade que dispensasse qualquer artifício artístico, qualquer representação.

A desagregação da vida de Caden começa pelo seu corpo, passa para a sua alma (psique) e agrava-se no desmembramento da sua família. Convidada a expor em Berlim, Adele Lack está a terminar os últimos dois quadros miniaturas e falha a estreia de Caden. De madrugada, quando Caden regressa a casa, encontra a mulher, pedrada, a conversar com Marie (Jennifer Jason Leigh) com uma cumplicidade que o perturbou. No dia seguinte, após assistir à peça, Adele informa Caden que irá para Berlim com a filha Olive e com Marie porque precisa de se afastar temporariamente dele. A partir de então, Adele, não mais responde aos seus telefonemas. Abandonado e cada vez mais só, Caden desenvolve uma relação de insucessos com a rapariga da bilheteira do Teatro, Hazel, que ele vai iniciando na literatura e simbolicamente com “O Processo” de Kafka.

Entretanto, a encenação da peça prolonga-se no tempo, passam os anos (décadas) e o processo vai-se transformando. Primeiro, a vida de cada um é representada por cada um, não como representação mas como vivência; depois, a vida de cada um passa a ser representada por outro que tenha desse que representa uma presença e uma consciência superior ao que o próprio tem de si mesmo. A intenção mimética passa para uma substituição do ser mimetizado, libertando-o de si próprio, como se cada pessoa se pudesse libertar de si mesma por alguém que fosse mais ela do que ela própria. Neste jogo de espelhos a morte, presença constante do universo de Caden, acaba por deixar de ser o motivo para cada um se procurar conhecer a si mesmo e a conhecer o seu destino próprio, para passar a ser um grande dissolvente de diferenças e de destinos reduzindo tudo ao mesmo sem distinção nem individualidade.

Mas se a morte é a grande interrogação e o grande medo que atravessa as angústias de Caden, outras mortes são anunciadas. Desde logo a morte da Arte: do teatro – pela substituição da representação pela vida–, na pintura – pela impossibilidade de se verem as pinturas da, entretanto consagrada Adele, que exigia a utilização de óculos para poder ver cada um dos quadros. Mais trágico é o destino de Olive (a filha que Caden não pôde mais ver) entregue a Marie por Adele e que a tatuou com flores por todo o corpo e a exibia ou fazia com que se exibisse como sendo a sua obra de arte (o mito da obra viva e verdadeira) que resulta numa forma de morte pela redução do corpo a uma matéria manipulável. Simbolicamente, a morte de Olive resulta de uma infecção gerada pela doença de uma das flores tatuadas que no momento final da morte de Olive se desprende e cai como uma folha.

O processo de Caden inicia-se simultaneamente com o seu retumbante sucesso, com o seu mal estar e com o abandono da sua mulher e filha. O retumbante sucesso condu-lo a uma megalomania – a mega produção – que é uma fuga para uma alienação crescente e obsessiva que o faz sobrepor o tempo e a realidade. Caden deixa de concatenar os seus pensamentos e as suas percepções do real. A sua obsessão é recuperar a filha. Não se trata, pois, de um processo de memória mas de paragem do tempo. Caden ficou refém da perda da filha e, mais do que isso, ficou refém daquela espécie de “violação” a que Olive foi sujeita por Marie com a concordância da louca Adele, que a possui e transforma num objecto seu.

Entre todos, este sentimento de perda de alguém porque outro o transforma em objecto e lhe retira a alma própria sujeitando-o a uma “modelação” caprichosa, egoísta e viciosa, para seu prazer, é talvez o mais humanamente arrasador do filme. Porque se trata de matar a inocência e a pureza. Caden passa a insuportável experiência de imaginar, e de ver por fim, o ser que ama com o mais puro amor sendo manipulado, iludido e usado como objecto de prazer egoísta. Podia ser entre amantes, mas Charlie Kaufman dá essa experiência na relação com a filha Olive e nela resume a sensação bloqueante de que Caden padece e de que não se consegue libertar senão pela morte. Neste particular o filme reentra na realidade pela porta do amor, que parece ausente em todos os processos doentios ou simplesmente egocêntricos das personagens.

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quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Poderemos bem ser outra coisa...

Descobriu a minha irmã este excerto de uma acta da sessão de 8 de Abril de 1970 da Assembleia Nacional, onde o meu avô materno discursava em prol de um assunto pelo qual, durante a sua vida, muito fez. Transcrevo aqui o seu discurso, o qual, por um lado, me enche de orgulho, por nele rever o empenho e a seriedade que aprendi se deve ter na política (que nada tem a ver com meras frases que tantas vezes se apregoam), mas, por outro, de tristeza, por reparar que a única constância deste nosso país é, de facto, e há muito tempo, o seu coerente adiamento e o seu competente esquecimento.

«Diário das Sessões da Assembleia Nacional
8 DE ABRIL DE 1970

O Sr. Alberto Meirelles:-Sr. Presidente: Antes de mais, uma palavra de agradecimento ao Sr. Presidente do Conselho pelo pronto seguimento dado à sugestão por mim feita nesta Assembleia, relativa à alteração do regime de dispensa de comparência do funcionalismo público na Semana Santa. É consolador verificar que entre tantas e tão fundas preocupações da governação pública, a voz de um apagado Deputado foi ouvida e imediatamente atendida.
Porque o que pedia era razoável, sem dúvida. Mas quantas vezes se pensa e diz que não vale a pena pedir nada ao Governo, deste lugar, pois é clamar no deserto.
Que não é assim, mostra-o a compreensiva e pronta decisão do Governo neste pequeno problema que me coube tratar. Em 3.9.64, ao intervir no debate do aviso prévio dos Deputados Prof. Nunes de Oliveira, Dr. Olívio de Carvalho e José Alberto de Carvalho, sobre problemas de educação - que foi um dos mais altos e fecundos trabalhos da VIII Legislatura (e continuo a lamentar que as intervenções então feitas não tenham sido ainda reunidas em volume como o mereciam a todos os títulos) - tratei, entre outros temas, o da criação de um curso superior de Enologia em Portugal. A ele reverto hoje, propondo-me apontar seguidamente outro aspecto afinal Intimamente conexo do problema, o do reconhecimento da profissão e título de enólogo. Portugal é o quarto país produtor de vinho na Europa e o quinto no Mundo. E o vinho e seus derivados constituem um valor relevante no produto agrícola nacional e mais ainda na exportação. Pois, não obstante, e por paradoxal que pareça, não existe em Portugal nem um curso específico de Enologia, nem está reconhecida oficialmente a profissão de enólogo. Sem dúvida que no instituto Superior de Agronomia se professa a cadeira de Enologia, criada em 1955, e de justiça é render homenagem à brilhante plêiade de cultores desse ramo da ciência entre nós, lembrando, por todos, a memória do Prof. Luís Cincinato da Costa, que foi membro desta Câmara.
Também nas escolas de regentes agrícolas o estudo da vinificação faz parte do programa escolar.
Simplesmente, trata-se de cadeiras isoladas num curso de vasta temática e amplitude, como é o de Agronomia, que não forma especialistas, nem como tais os reconhece, embora naturalmente venham a ser os agrónomos e os regentes agrícolas os elementos mais destacados da actividade enológica, mercê dos estudos, experiência e profissionalismo de alguns que vêm a dedicar-se a este ramo de actividade. De há muito que a formação cientifica dos enólogos se autonomizou nos países grandes produtores, como a França, Itália, Espanha, Argentina, Alemanha, etc. Referirei apenas, por brevidade, o panorama do ensino enológico em França, que é consabidamente não só o primeiro produtor mundial de vinhos e derivados, como o principal e mais vasto foco de estudos e formação enológica.
O ensino específico da enologia, ao nível superior, professa-se em França em pelo menos, cinco Universidades, as de Montpellier, Bordéus, Dijon, Reims e Toulouse, ora integrado nas respectivas Faculdades de Ciências, ora constituindo uma Escola Superior de Enologia (Montpellier) ou um Instituto Superior de Enologia em Bordéus, onde avulta o seu eminente director, Prof. Ribèreau-Gayon, doutor honoris causa pela Universidade Técnica de Lisboa, e que tão grande influência tem tido na formação e aperfeiçoamento de especialistas portugueses.
Mas em Portugal quem desejar cursar enologia tem de se deslocar ao estrangeiro, normalmente a França, para aí frequentar, à sua custa, as Faculdades ou institutos superiores, como alguns tantos que conheço, sem possibilidade ou esperança sequer de lhes ser oficialmente reconhecida a qualificação e o título de licenciatura. Não faz, realmente, sentido. E muito mais, se tivermos em conta não só o volume da nossa produção vinícola, como o valor e potencialidade da sua exportação, e as posições que vamos ocupando no mercado mundial com uma gama variada e válida de produtos vínicos, desde o vinho do Porto, que é grande carta, nacional, ao prestigioso Madeira, aos originais e típicos vinhos verdes, ao excelente Dão, aos vinhos de Colares, Carcavelos e Setúbal de Pinhel, Bairrada e Lamego, até aos surpreendentes vinhos do Algarve, que vêm sendo inteligentemente valorizados no contexto turístico da zona. Mercê da eficaz actividade das adegas cooperativas, vão-se afinando produtos que outrora não apresentavam qualidade.
Mas, a par dos vinhos, não devemos esquecer o valor de algumas aguardentes vínicas e bagaceiras de alta qualidade, com relevo, que me será desculpado, para as excepcionais possibilidades das derivadas dos vinhos verdes, que podem ombrear com os mais requintados e prestigiosos produtos similares do mercado mundial.
Pois, não obstante termos tudo isto, continuamos na situação inexplicável de não formarmos nem diplomarmos técnicos enólogos, nem ao nível médio nem ao nível universitário.
Esta é grave lacuna que urge remediar prontamente no planeamento escolar, e por isso de novo e esperançadamente trago à Câmara o problema. Não apenas por ser do Porto e Deputado pelo seu distrito me inclinei a sugerir em 1964 que se localizasse aí o curso de enologia, a criar. Além do mais, serviria zonas de grande densidade populacional, o Entre Douro e Minho e Aveiro, ambas com grande peso na produção vinícola. Afora isso, o Porto é cabeça de duas grandes regiões vitivinícolas & sede de dois organismos: o Instituto do Vinho do Porto e a Comissão de Viticultura da Comissão dos Vinhos Verdes, ambos com laboratórios próprios oficializados, de reconhecido nível técnico, e dedicados também à investigação aplicada. No distrito do Porto localizam-se importantes empresas armazenistas e exportadores de vinhos, sendo de salientar as prestigiosas firmas exportadoras de vinho do Porto, das quais algumas têm simultaneamente grande relevo no comércio de vinhos de mesa e aguardentes preparadas. Por outro lado, na Universidade do Porto professam-se estudos de Química nas Faculdades de Ciências, Farmácia, Medicina e Engenharia em nível médio no Instituto Industrial. E nos já referidos laboratórios do Instituto do Vinho do Porto e da Comissão de Viticultura da Região dos Vinhos Verdes trabalham técnicos de alto mérito e larga experiência profissional, alguns com valiosos estudos de investigação que os acreditem no mundo da ciência enológica. Por tudo isto, continuo a pensar que o Porto poderia e deveria ser, sem favor ou desprimor, a sede dos estudos enológicos a nível universitário, que se impõe criar sem delongas.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Recentemente, o Governo enviou à Câmara Corporativa o projecto de proposta de lei, que tem o n.º 5/X, acerca da criação do ensino politécnico, destinado a conferir preparação técnica qualificada para o desempenho de actividades profissionais de índole especializada, que não exijam habilitação universitária, e em que se prevê o funcionamento de cursos relativos às indústrias alimentares agrícolas. Nestes, certamente se poderá e deverá incluir o destinado à formação de técnicos enológicos ao nível não universitário ou superior.
Mas, não obstante a possibilidade agora entrevista do enquadramento no ensino politécnico do curso médio do Enologia, de grande utilidade, certamente, a formação de enólogos ao nível universitário é, segundo creio, uma necessidade indiscutível em Portugal. Intimamente conexa com a criação do curso de Enologia, apresenta-se como necessidade premente o reconhecimento oficial da profissão e actividade de enólogo. Em recente artigo publicado no Boletim do Grémio dos Armazenistas de Vinhos, que tem sido muito comentado e aplaudido na imprensa, aponta-se o problema com desassombro e realismo: «o que é incontroverso é que continua lamentavelmente a faltar um mínimo de profissionalização responsável na enologia em estrutura escalonada num país com a responsabilidade de produção, comercialização e expansão como o nosso. E acrescenta: «no âmbito das actividades representadas por este Grémio, a ausência de assistência técnica responsável continua a ser notória. A maior parte dos interessados nem sequer possui um laboratório rudimentar ou não ultrapassa nas suas determinações analíticas a graduação alcoólica e a acidez volátil aparente. Naturalmente que isto provoca por parte das empresas uma tendência ou para a irresponsabilidade, consciente ou inconsciente, ou para a necessidade deliberada de lhe fazer face; as condições de concorrência não podem, portanto, deixar de reflectir fortes, permanentes e preocupantes anomalias.»
E lembrando algumas conclusões do 1.º Colóquio Nacional de Vitivinicultura e ainda das Jornadas Vitivinicultura, em que se preconizou a presença obrigatória de técnicos enólogos nas empresas do sector, conclui: «isto só será realmente possível se, para além do mais, a profissionalização responsável da enologia, em estrutura escalonada e de aplicação obrigatória, vier a ser rapidamente um facto. E pode sê-lo, desde que o sector chame a si, através dos seus meios, essa iniciativa, como propõe o Grémio dos Armazenistas de Vinhos, em apelo aos múltiplos organismos da actividade.» De qualquer forma, o que é «indispensável e urgente» é o reconhecimento, regulamentação e estruturação da profissão enológica em Portugal. O problema envolve dificuldades e melindres e carece de estudo reflectido.
Mas parece aceitável nas suas linhas gerais o sistema adoptado em França na Lei de 19 de Marco de 1955, pela qual se criou o título de enólogo qualificado para as operações de preparação e conservação de vinhos, com diploma passado conjuntamente pelos Ministérios da Educação e da Agricultura aos candidatos que tenham obtido aprovação nas Universidades ou estabelecimentos de ensino superior do ramo. Na mesma lei se cria a Comissão Consultiva Permanente de Enologia, encarregada de dar parecer sobre todas as questões que interessem à formação e exercício da profissão de enólogo, e ainda de decidir sobre a equivalência dos títulos, prevendo-se um regime transitório de cinco anos para que possam obter o título todos os diplomados que provem ter efectuado um estágio ou ter praticado a profissão de enólogo durante, pelo menos, três anos, e bem assim pessoas que, embora não diplomadas, tenham habilitações ou cultura científica e técnica julgadas suficientes pela Comissão Consultiva. Este, em linhas gerais, o sistema francês que me parece adequado à solução pronta da carência de técnicos enólogos, que se impõe remediar urgentemente.
Valerá a pena referir ainda que na União Internacional dos Enólogos, organismo que mantém fecunda actividade, promovendo regularmente congressos e reuniões internacionais, estão inscritos 3.169 técnicos, dos quais 1.000 argentinos. 745 franceses, 732 italianos e 600 espanhóis. Portugueses estão inscritos apenas 9, o que constitui lamentável índice.
E termino sem ter, evidentemente, esgotado o assunto, objecto, aliás, de longa entrevista que concedi ao técnico enólogo Nobre da Veiga, incansável paladino da estruturação da profissão, publicada na revista Lavoura Portuguesa, de Março de 1965, com um apelo aos Srs. Ministros da Educação Nacional e da Economia e Secretários de Estado da Agricultura e do Comércio para que:
1) Seja criado um curso de enologia a nível universitário, independentemente da eventual integração do correspondente curso médio no ensino politécnico;
2) Seja reconhecida, estruturada e definida urgentemente qualificação profissional de enólogo.
Com isto se porá fim à estranha situação de, na era tecnológica, não haver ensino específico nem reconhecimento oficial da profissão de preparadores e técnicos de conservação de vinhos e derivados, exactamente neste abençoado «país das uvas».
Vozes - Muito bem !
O orador foi cumprimentado.»

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terça-feira, 25 de agosto de 2009

II. Em nome do dogma

No caso do cristianismo o dogma é enunciado sobretudo em duas línguas: grego e latim. Theotokos e Mãe de Deus não se colam totalmente bem, hipóstases e pessoas igualmente. E por isso uma correcta interpretação do dogma recusa o fetichismo das palavras. A enunciação é rigorosa, mas é enunciação, e por isso com os seus limites. Usa uma língua pré-existente, com as suas conotações, a variação dos seus campos semânticos, as cargas que o contexto histórico e social lhes deu.

Por isso quem não gosta de dogmas, desde que devidamente entendidos, pode cair muitas vezes no feiticismo da palavra. Precisamente o que despreza assume nele uma importância indevida. Acha-a incapaz, mas cola-se a ela, o que é movimento só aparentemente paradoxal. Vemos exemplos disso nas traduções literais de produtos químicos que alguns ecologistas extremos fazem, na tendência para a interpretação literal de que padecem (um exemplo foi a infeliz frase de um presidente americano algo destituído que falou em “cruzada” contra o terrorismo, quando em inglês americano “cruzada” no contexto nada tem de conotação religiosa, mas significando esforço dirigido e obstinado).

O cristianismo nem sempre teve esta consciência da vibração da palavra do dogma em duas línguas. E os equívocos surgiram de uma parte e de outra. Seria por isso desonesto desconsiderar que também houve feiticismo do lado das ortodoxias ocidental e oriental. Mas esta é uma tendência histórica variável, embora muito durável. Já quem nega ao dogma, visando em suma o dogma cristão, e todos eles, recusa esta vibração das palavras e a necessidade de diálogo que impeça o feiticismo da palavra.

O dogma enuncia-se fora do texto sagrado. Pressupõe uma instituição humana dotada de poderes de enunciação, seja o concílio, seja o papa (essa discussão não é determinante aqui). Este simples facto tem várias implicações que nunca são salientadas.

Em primeiro lugar há enunciações essenciais que não são textos sagrados. Em segundo lugar essa enunciação separa claramente o discurso sobre o sagrado dos restantes: do poético, do filosófico, do científico. Sob o ponto de vista das mentalidades a enunciação de dogmas teve por isso um efeito fundamental para a separação da Igreja e do Estado. A lei não enuncia dogmas, o dogma não se confunde com a lei. Em terceiro lugar, existe uma instância autónoma que decide sobre o essencial do sagrado. Este é mais um contributo para a separação das esferas. O qadi muçulmano ou o tribunal ateniense não enunciam dogmas. O pretor romano tutela a religião oficial do Estado romano. Uma sociedade sem dogmas tende sempre para a juridificação da religião. No paraíso grego em que não havia dogmas nem clero é o tribunal cível que condena Anaxágoras e Sócrates por impiedade. São as instituições civis que garantem o respeito da religião.

Este aspecto é importante, porque mostra que a ausência de dogmas não impede a perseguição religiosa, apenas a torna mais aleatória. Os limites do proibido e do permitido são mais fluidos. O dogma é assim o antecessor da garantia constitucional.

Para quem achar que apenas navego em elucubrações, apenas pergunto: será um acaso que a separação entre o Estado e a Igreja tenha sido conseguida apenas no espaço cristão? A existência do dogma cria essa possibilidade, dá instrumentos de linguagem para a separação e pressupõe instituições com autonomia nessa matéria que permitem uma autonomia do religioso. É que a maior tentação foi sempre a do poder político deglutir o religioso, mais que o contrário. O religioso aparece como justificação de um poder político antecedente. Numa perspectiva de longo prazo, não foi tanto o Estado que se libertou da Igreja, mas a Igreja que se libertou do Estado.

Em nome do dogma, porque o dogma carece de nomes, de palavras. Porque o dogma dá nome a uma enunciação sagrada. E porque pelo nome do dogma também as fronteiras do sagrado foram delimitadas, e assim, as da liberdade.



Alexandre Brandão da Veiga
I Em nome da matemática
II Em nome da matemática
III Em nome da matemática

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segunda-feira, 24 de agosto de 2009

I. Em nome do dogma

Nada tenho contra os lugares comuns pelo simples facto de serem comuns. Mais uma vez o que considero confrangedor é que sejam tão disparatados na nossa época.

Apanhemos na rua mais um: “eu não gosto de dogmas, de quaisquer dogmas, não acredito nisso”. E depois tipicamente a mesma criatura elogia as religiões sem dogma, a grega, por exemplo.

Repare-se: o interlocutor não afirma que não acredita neste ou naquele dogma, mas nos dogmas em geral. Temos pois de ver o que é estruturalmente um dogma, para ver do que ele não gosta.

Um dogma é uma enunciação em palavras de uma verdade que se considera fundamental, decisiva. Historicamente no caso do cristianismo os dogmas foram enunciados em duas línguas: grego e latim. O dogma enuncia-se fora do texto sagrado. O texto sagrado encerra a verdade revelada ou enunciada. Mas o dogma, para o ser, constrói-se fora desse texto. E é mais que mera exegese. Precisamente por ser mais que mera glosa é formulado em termos francamente estranhos ao texto sagrado e que por isso repõem o seu sentido, revela-o de forma evidente.

Que detesta pois quem detesta os dogmas, todos eles?

Em primeiro lugar não acredita que nada do que é essencial ou decisivo seja enunciável por palavras. Se os recusa a todos é porque acha que nada do que é essencial pode ser veiculado pela palavra. A palavra passa a ser assim mero instrumento lúdico, mera fonação sem grande importância, ou pelo menos importância decisiva. Por isso quando usa a palavra, se a acha mole e impotente, também nós devemos achar a sua mole e impotente.

Esta conclusão liga-se com outro lugar comum da nossa época: uma imagem vale mais que mil palavras. Sempre achei que dependia da imagem e dependia das palavras. Por imagem posso eficazmente pedir um copo de água. Mas duvidosamente posso transmitir de forma eficaz pensamentos abstractos. Apenas por mediação da palavra posso perceber numa imagem esse pensamento. Quem vê um ícone pode ver uma imagem bonita. Pode mesmo intuir parte do seu significado religioso. Duvidosamente percebe as teorias anti-iconoclastas que estão na base do modo de elaboração dos ícones. Mas o lugar comum revela o espírito fragmentado que subjaz ao argumento. Quem o afirma vive num mundo em que não acredita muito que as várias faculdades do ser humano possam colaborar entre si. Os vários sentidos e as várias expressões do ser humano colaboram entre si, podem reforçar-se mutuamente. Para ele existe apenas mensagem em escombros, pedaços que não se entreajudam.

O horror ao dogma está ligado igualmente ao desprezo da racionalidade. Sempre me pareceu que uma razão pobre era presunçosa e invoca títulos que não merece e de que é incapaz de manter o sustento. Uma razão rica conhece as suas fragilidades e lida com elas. O horror puro e simples da racionalidade é mais panfleto que modo de construção, no melhor dos casos, tanto quanto a idolatria da razão. O horror à palavra enunciada é sempre a anunciação de uma impotência: a comunicação racional é ineficaz, é o que nos afirmam, abatida, inepta para o essencial.

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terça-feira, 11 de agosto de 2009

Incólumes e sitiados


Pasquino
Na caça aos lugares comuns encontro por vezes um, muitas vezes implícito: antigamente (em tempo que nunca se define) havia mais respeito, e havia pessoas que eram apenas respeitadas, sem polémica. Hoje em dia as pessoas são mais agressivas. A crítica é mais feroz.

A Internet é um bom exemplo dessa agressividade. Quando vejo críticas, geralmente anónimas, a algumas das participações na Internet, antes de sequer perceber o que dizem, espanto-me com a violência com que o fazem. Que instintos estão dormentes, que raivas apenas prontas para actuar se guardam por essas cabeças que andam no mundo? E são curiosamente aqueles que em público defendem um amor liofilizado, uma espécie de cristianismo industrializado sob forma mais ou menos laica, que mais praticam este desporto.

Tive uma professora romena que dizia com tom marcial “Os jovens são uns selvagens. Do que precisam as pessoas é de amorrrr” (os seus “rr” rolavam asperamente). Tratava-se no caso de uma mulher inteligente e culta, embora de uma aproximação amorosa ao ser humano de algo difícil entendimento.

A verdade é que de uma forma ou de outra temos sempre alguma ideia de que houve épocas que mantiveram pessoas incólumes. Épocas de maior respeito. Perante esta comparação, muitos outros se sentem sitiados, e a discussão pública parece muitas vezes a de soldados que gritam entre castelos assediados.

Será assim? Houve uma época em que Homero foi respeitado sem limites? Talvez. Mas se a interpretação alegórica das suas obras começa logo no século VI. A.C., quer apenas dizer que o sentido literal suscitava críticas, ou pelo menos dúvidas. E eis senão quando aparece o obsceno, o blasfemador por excelência, esse Platão que quer destroçar Homero, que o desvirtua, que chama "daimon" o que Hesíodo chamava de deus, que pretende mesmo reprimir a poesia. Horror dos horrores.

Mas ao menos Platão era unânime, estaria incólume às críticas. Mas não. Desde os retóricos da sua época até o seu mais feroz crítico, Heraclito o filólogo (não o filosofo), Platão é acusado de ser ímpio, blasfemo. Nem o pobre Platão teve paz. Crisipo era homem de bílis acentuada mas estaria incólume. Ora pois não. Que vêm os epicuristas para lhe descobrir as lacunas.

E eis que aparece Cristo, o único homem que nunca há memória de ter agredido fisicamente ninguém, e ainda hoje em dia desperta ódios cuja origem tem explicação, mas não justiça. Einstein, o incólume? Eis que no fim da vida foi objecto de respeito, mas de condescendência igualmente. Leibniz objecto de chacota pelos “filósofos” do século XVIII. Freud objecto de desprezo e gozo hoje em dia sobretudo pelas pessoas das neurociências, mas igualmente das ciências ditas exactas.

Não interessa agora analisar quais dos juízos são justos ou não. Apenas me importa mostrar até que ponto em nenhuma época houve pessoas absolutamente incólumes, assim como sitiados, se os houve, nem todos ficaram sem saída.

Também a crítica anónima não é de agora. A diferença é que a Internet traz para o registo escrito esse anonimato de forma pública. Anónimos sempre existiram, e geralmente para criticar.

Uma das mais saborosas sátiras de Horácio mostra um seu escravo que aproveita a liberdade das saturnais para o criticar. Fair play do escritor, que deixa para a posteridade a memória de ter sido enxovalhado, sentido de humor da sua parte. Se o escravo tem nome e se dele se guardou memória não foi mérito seu mas de Horácio. Mas teve a coragem de dar a cara, de dar o seu nome, mesmo que valesse pouco.

O anónimo que comenta acidamente na Internet não é o descendente do escravo de Horácio. Esse ao menos aceitou os riscos de dar a cara. O seu antepassado está alhures. No escravo que discutia nas tabernas de Roma, ou no servente que vagueava pela Via del Corso em Roma e em direcção à Piazza del Popolo passava pela Via del Babuino e deixava na estátua de Pasquino, o antepassado do nosso Pasquim, bilhetes obscenos, por vezes com graça, mas sempre... anónimos.








Alexandre Brandão da Veiga

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segunda-feira, 3 de agosto de 2009

O cubículo e o horizonte


Fechada num elevador da Assembleia da República, no trânsito entre dois ou três andares, não posso deixar de ouvir a conversa entre dois deputados socialistas, meus companheiros na breve viagem.
Não é comigo que falam, pelo que me abstenho de os nomear, mas não resisto a uma leitura sobre o que dizem.
Discutem, com algum desgosto, a ordem dos lugares nas listas do PS. Sentem-se prejudicados no posto negociado. A Deputada, talvez promovida pelas quotas, consola o colega: «Deixa lá, o X sai, de certeza, para o Governo e todos sabemos que o Y vai para uma Secretaria de Estado qualquer. Tens o lugar assegurado».
Não digo que esta contabilidade não seja comum aos outros partidos de poder. O que impressiona é o pulso que sentem (ou não sentem) sobre o Povo que representam.
Quem garante que vão ganhar? Para mim, só mesmo naquele cubículo estão em maioria. Mas também o meu espanto é atrevimento de sinal contrário pelo que da cena do elevador só sai uma conclusão: trabalhar, trabalhar, trabalhar.
1. Os novos contornos da Crise económica, financeira e social pedem soluções imaginativas, solidárias, geradoras de riqueza estruturante. Os partidos são obrigados a responder.
2. O ensino não promove o País nem os alunos. Os partidos são obrigados a responder.
3. A Igreja (94% de católicos pelo último censo) recoloca a questão dos princípios na definição do voto. Os partidos são obrigados a responder.
4. As grandes obras públicas são Maná ou precipício para os problemas do País. Os partidos são obrigados a responder.
5. A pirâmide etária exige medidas radicais para a reprodução e para o prolongamento da vida, com qualidade. Os partidos são obrigados a responder.
6. O continuado desequilíbrio das contas públicas esgota o discurso do cinto apertado obrigando o Estado a nova gestão das suas despesas. Os partidos são obrigados a responder.
Os Deputados devem ter o lugar que asseguram – primeiro – ao Povo que os elege.

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