quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Sinédoque Nova Iorque de Charlie Kaufman


O encenador Caden Cotard (Philip Seymour Hoffman) estreia com extraordinário sucesso “A morte de um caixeiro viajante”. Porém, no dia da estreia, logo pela manhã, diz a si próprio que se sente mal. Um mau estar que se agrava com um pequeno acidente doméstico (uma ruptura de canos) que o obriga a ser cosido na testa. Vai-se, então, revelando um personagem profundamente perturbado que, de doença em doença, reais ou imaginadas mas sempre reflectidas na degradação do seu corpo – tremores, pústulas, descontrolo de funções – o vão fazendo deslizar de uma realidade estável para uma espécie de loucura em que o tempo, ou os tempos psicológicos, se começam a sobrepor e dissolver.
Para ampliar o seu estado de crescente alienação e descontrolo físico e emocional, recebe um prémio de 500.000€ o que lhe permite investir num projecto totalmente novo, uma obra inovadora cuja concepção e encenação simultâneas resultam numa espécie de psicodrama em que as personagens são os próprios actores enquanto pessoas comuns. Imagina, assim, uma aguarela urbana num velho e desactivado armazém de proporções gigantes onde Nova Iorque é recriada e cada um expõe (não representa) o seu eu, o seu destino individual, uniformizando o valor artístico (negando-o) em nome de uma verdade que dispensasse qualquer artifício artístico, qualquer representação.

A desagregação da vida de Caden começa pelo seu corpo, passa para a sua alma (psique) e agrava-se no desmembramento da sua família. Convidada a expor em Berlim, Adele Lack está a terminar os últimos dois quadros miniaturas e falha a estreia de Caden. De madrugada, quando Caden regressa a casa, encontra a mulher, pedrada, a conversar com Marie (Jennifer Jason Leigh) com uma cumplicidade que o perturbou. No dia seguinte, após assistir à peça, Adele informa Caden que irá para Berlim com a filha Olive e com Marie porque precisa de se afastar temporariamente dele. A partir de então, Adele, não mais responde aos seus telefonemas. Abandonado e cada vez mais só, Caden desenvolve uma relação de insucessos com a rapariga da bilheteira do Teatro, Hazel, que ele vai iniciando na literatura e simbolicamente com “O Processo” de Kafka.

Entretanto, a encenação da peça prolonga-se no tempo, passam os anos (décadas) e o processo vai-se transformando. Primeiro, a vida de cada um é representada por cada um, não como representação mas como vivência; depois, a vida de cada um passa a ser representada por outro que tenha desse que representa uma presença e uma consciência superior ao que o próprio tem de si mesmo. A intenção mimética passa para uma substituição do ser mimetizado, libertando-o de si próprio, como se cada pessoa se pudesse libertar de si mesma por alguém que fosse mais ela do que ela própria. Neste jogo de espelhos a morte, presença constante do universo de Caden, acaba por deixar de ser o motivo para cada um se procurar conhecer a si mesmo e a conhecer o seu destino próprio, para passar a ser um grande dissolvente de diferenças e de destinos reduzindo tudo ao mesmo sem distinção nem individualidade.

Mas se a morte é a grande interrogação e o grande medo que atravessa as angústias de Caden, outras mortes são anunciadas. Desde logo a morte da Arte: do teatro – pela substituição da representação pela vida–, na pintura – pela impossibilidade de se verem as pinturas da, entretanto consagrada Adele, que exigia a utilização de óculos para poder ver cada um dos quadros. Mais trágico é o destino de Olive (a filha que Caden não pôde mais ver) entregue a Marie por Adele e que a tatuou com flores por todo o corpo e a exibia ou fazia com que se exibisse como sendo a sua obra de arte (o mito da obra viva e verdadeira) que resulta numa forma de morte pela redução do corpo a uma matéria manipulável. Simbolicamente, a morte de Olive resulta de uma infecção gerada pela doença de uma das flores tatuadas que no momento final da morte de Olive se desprende e cai como uma folha.

O processo de Caden inicia-se simultaneamente com o seu retumbante sucesso, com o seu mal estar e com o abandono da sua mulher e filha. O retumbante sucesso condu-lo a uma megalomania – a mega produção – que é uma fuga para uma alienação crescente e obsessiva que o faz sobrepor o tempo e a realidade. Caden deixa de concatenar os seus pensamentos e as suas percepções do real. A sua obsessão é recuperar a filha. Não se trata, pois, de um processo de memória mas de paragem do tempo. Caden ficou refém da perda da filha e, mais do que isso, ficou refém daquela espécie de “violação” a que Olive foi sujeita por Marie com a concordância da louca Adele, que a possui e transforma num objecto seu.

Entre todos, este sentimento de perda de alguém porque outro o transforma em objecto e lhe retira a alma própria sujeitando-o a uma “modelação” caprichosa, egoísta e viciosa, para seu prazer, é talvez o mais humanamente arrasador do filme. Porque se trata de matar a inocência e a pureza. Caden passa a insuportável experiência de imaginar, e de ver por fim, o ser que ama com o mais puro amor sendo manipulado, iludido e usado como objecto de prazer egoísta. Podia ser entre amantes, mas Charlie Kaufman dá essa experiência na relação com a filha Olive e nela resume a sensação bloqueante de que Caden padece e de que não se consegue libertar senão pela morte. Neste particular o filme reentra na realidade pela porta do amor, que parece ausente em todos os processos doentios ou simplesmente egocêntricos das personagens.

2 comentários:

Gonçalo Pistacchini Moita disse...

Meu caro João Luís:

1. Que saudades... E não é que, por coincidência, também ontem aqui vim (depois de um longo descanso) e logo hoje aqui te vejo. Bom augúrio? Talvez. Pelo menos será "auguri", como dizem os italianos. :)
2. Sobre o filme, desconheço-o. Numa coisa era capaz de apostar. Como quase sempre se diz nestas coisas: estou certo que este teu texto é muito melhor do que o filme.
3. Desculpar-me-ás, por último, o que te vou dizer, mas esta história triste, tristíssima, desoladora que nos contas, deu-me algum alento, pois - coisa que não me era imaginável até há pouco -, mostra uma existência com um (des)sentido ainda maior que o da minha!

Um grande abraço

Gonçalo

joão wemans disse...

Não sei se vá ver o filme: demasiado confuso, sórdido e triste.
Talvez me satisfaça com a tua clarividente descrição e
comentário.

Junto aqui o meu apreço pelas palavras sinceras do Gonçalo P.M.