sábado, 29 de março de 2014

Sol na eira e chuva no nabal


A frase que marca a entrevista de ontem Durão Barroso é «quando se fizer a história desse período», a propósito das ajudas silenciosas que o Presidente da Comissão Europeia terá dado a Portugal nos últimos dez anos. E adiantou que os Primeiros-Ministros José Sócrates e Passos Coelho e o Presidente da República «estão muito reconhecidos» com essa prestação.

A necessidade de Durão Barroso se mostrar generoso com o seu País é um imperativo que outros portugueses não têm. A decisão de abandonar o País num momento de fragilidade política do Governo (decidiu no exacto dia em que perdeu estrondosamente as Europeias 13/06/04) por um projecto pessoal desafiante; e a possibilidade de se manter politicamente vivo no seu País, levam-no a um exercício continuado de «refazer a história desse período».

Uma vez mais, deixa-se guiar pelo ego tripp. Não censuro quem tenha uma visão carreirista da vida. Como escreveu Filomena Mónica, num estudo de 1994, sobre a situação social em Portugal, «desde os anos 60 que a ambição deixou de ser um pecado». Mas a roupagem patriótica dos argumentos de Barroso representa «o manto diáfano da fantasia» sobre a «nudez crua da verdade».

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sexta-feira, 21 de março de 2014

Ucrânia, Rússia e Crimeia III


Mas revela outro aspecto de muito mais longo fôlego. No fundo, a Europa nunca ultrapassou a divisão de Bizâncio. Enquanto a Rússia insistentemente desde Gorbatchev fala da Casa Comum Europeia, e mesmo Putin originariamente tentou aproximações à Europa, os bem pensantes de esquerda e de direita, liberais, alternativos e quejandos (comem todos da mesma gamela, as suas categorias são as mesmas, alimentados por uma superficial cultura americana da esquerda à direita) continuam a opor-se a um Bizâncio que não sabem ver como tal. São apenas reaccionários sem o saber, ignorantes sem o admitir. Repetem as mesmas alergias de séculos. Quem não sabe História está condenado a repeti-la, dizia o velho Santayana, completamente intranscendente em metafísica, mas sensato em algumas coisas que disse em História. E pior ainda, a viver no enfado e gerá-lo nos outros.

No fundo, o dito Ocidente padece do preconceito típico do pós-modernismo: eu tenho sempre razão, precisamente porque nego a natureza absoluta da razão. A Rússia não a tem toda, mas o dito Ocidente ainda menos. A crise é bem mais grave do que parece, mas não pela vontade de a levar às últimas consequências. A Europa e os Estados Unidos precisam da Rússia tanto quanto esta precisa da Europa (um pouco menos dos Estados Unidos). Em questões como as do Irão, da Coreia do Norte, da Síria, mas também, muito menos falados, da Ásia Central e das relações com a China, a Rússia é insubstituível. O espectáculo da indignação ficta, tão característico dos pequeno-burgueses, vai continuar. Vamos todos fazer o papel que estamos muito indignados, mas depois a Rússia vai levar a sua melhor. A questão é que entretanto já a ofendemos mais uma vez, já a destratámos, já a afastámos mais um pouco.

Qual o maior pecado da Rússia? O de que querer ser independente, efectivamente independente dos Estados Unidos, e da ordem mole que estes pretendem impor. Não vejo santos de um lado nem do outro. Mas tenho muita vergonha de viver numa época em que a Europa, sem grande dignidade, acata docilmente a instrução americana e se esquece do seu maior parceiro, daquele que é o maior país europeu. Mais uma vez, e em nome da modernidade, um tique velho de mais de mil anos persegue a Europa. Perseguir Bizâncio sem perceber que sem este ela é incompleta.

 

Alexandre Brandão da Veiga

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quinta-feira, 20 de março de 2014

Ucrânia, Rússia e Crimeia II


Vamos pois à Rússia. Como é o mundo visto pela Rússia? Coloquemo-nos na sua posição. Imagine-se o que seria um Portugal em que todos os países até França ficaram sob domínio russo. E agora há movimentos para que Espanha esteja também sob domínio russo. Sentir-se-iam confortáveis os portugueses? Guardadas as devidas proporções (a Rússia tem fronteiras e possibilidades de encontro bem mais vastos que Portugal) é essa a posição da Rússia. As suas zonas de influência uma por uma foram absorvidas pela pata americana. Não interessa agora saber quem são os bons ou os maus, mas visto da Rússia, há um estreitamento, e mesmo um estrangulamento, das suas fronteiras que é perigoso e que têm toda a razão de sentir como uma ameaça.

Junte-se a isto uma política militar agressiva que começa com Clinton e continua com Bush filho. A diferença entre um e outro é muito menor do que se julga. Acrescente-se um país que vive humilhado pelo facto de o seu sucesso se basear sobretudo em matérias-primas, quando se trata de uma imensa cultura, rica, profunda e sofisticada.

Acrescente-se a esta receita o facto de a Rússia não ter passado pela versão triste da modernidade que é o pós-modernismo. A Rússia vive ainda os primeiros modernismos, ou seja, sem arrependimento permanente, sem pedidos de desculpa, sem a aceitação de toda e qualquer aldrabice só porque existe. Na Rússia ainda se sabe pintar, não se toca música apenas de ouvido, as matemáticas tem de ser efectivamente estudadas. Não é pós-moderna porque, apesar de a obsessão de poder americana não ser inferior à Rússia, os russos não estão preocupados com o embrulho dourado feito de direitos do homem, liberdade e quejandos. A Rússia em acréscimo despreza a Europa, e com as suas razões, porque esta é submissa aos Estados Unidos ao ponto de aceitar como país europeu o que mais não é que um país asiático, a Turquia. Ri-se com gosto e não sem malicia do grau de sujeição em que estão os europeus, sem vontade, sem necessidade de espaço próprio de actuação.

A Rússia não tem vergonha de ter poder, e precisa de poder. É uma imensa barreira contra a Ásia (nisto estou bem acompanhado, Eça de Queiroz achava o mesmo). os seus vizinhos não são brincadeira. Entre os turco-mongóis e os chineses está rodeada de povos pouco sensíveis (é o mínimo que se pode dizer) aos direitos do homem e ao delicodoce convívio civilizado à europeia. Os asiáticos usam o poder e a crueldade sem pejo, nem problemas de consciência, e nem no segredo dos seus quartos têm de rezar a um Deus que lhes pede contas dos seus sucessos. Apenas dos seus fracassos. A Rússia presta-nos o serviço sujo do guarda, para que os ditos ocidentais possam dormir descansados nas suas consciências.

 E como não se bastara, há a maior falha da política europeia dos últimos 25 anos. O muro de Berlim caiu para os dois lados, não me canso de o dizer. E a Europa, em vez de perceber que o seu maior desafio era do a integração da Rússia, em vez de fazer um plano Marshall para a Rússia, deixou-a embebedar-se, apodrecer, decair durante os anos 90. Humilhar um povo é injusto, humilhar um grande povo é além do mais perigoso.

O que temos como resultado é um grande festival de sanções pelos países ocidentais, mas mais de fachada que outra coisa. A Rússia gerando 18 milhões de turistas por ano para a Europa, sendo um forte de mercado de importação de produtos europeus, e de exportação de energia, sendo estrategicamente central para a estabilização da Ásia Central e do Cáucaso e barragem natural da Europa contra a Ásia, não vai ser fortemente hostilizada. Sanções de fachada e pouco mais.

O problema é que esta fachada gera mais e mais feridas na relação entre a Rússia e a Europa. A Rússia é o maior país europeu, para a Europa é central, para os Estados Unidos não.

O problema é o que todo este processo revela da mentalidade europeia. Da Rússia diz-se sempre que o copo está meio vazio, da Turquia meio cheio. Cada pequenina conquista democrática na Turquia é vista com imensa alegria, os recuos são entendidos como percalços naturais num percurso complexo. Porquê? Porque, no fundo, todos sabem que não é um país europeu, e se não exige tanto deles. Quanto à Rússia a exigência é a que se tem em relação a qualquer país europeu e por isso a crítica é bem mais forte. A mentira tem perna curta, e quanto mais se critica a Rússia mais se tem de reconhecer que não se tem outro remédio senão confessar que é um país europeu.

 

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quarta-feira, 19 de março de 2014

Ucrânia, Rússia e Crimeia I


E eis que a Europa se depara com uma nova crise da Crimeia cento e cinquenta anos depois da que deu fama a Florence Nightingale (não sem ironia de Disraeli) e à Cruz Vermelha, se não estou enganado.

Comecemos pela Crimeia. Sempre foi território russo e um ditador ofereceu-o como prenda à Ucrânia. O que pretende a Europa? Fazer respeitar a vontade caprichosa de um Nikita Krutschov. Creio que em 1991 Ieltsin teve a hipótese de ficar com a Crimeia, que lhe foi oferecida de mão beijada pelo presidente ucraniano da altura, mas Ieltsin com a sua visão de longo prazo, ou melhor de fundo de garrafa, não deu muita importância à coisa. Teria sido bem mais simples para todos nós caso Ieltsin tivesse tido sentido estratégico. Não é obra do acaso que não seja respeitado nem por russos nem pelo ditos ocidentais, e apenas tenha despertado alguma simpatia nestes últimos por algum desprezo.

O que pretendem os ocidentais ao exigir que a Crimeia permaneça ucraniana? Em primeiro lugar, sem dúvida, uma preocupação com um princípio de inércia das fronteiras. Embora tenham sido os mesmos ocidentais a apoiar entusiasticamente referendos (no Kosovo, no Sudão do Sul) neste caso a vontade popular já tem menos importância. Mas, bem além disto, comprazem-se no enfraquecimento da Rússia. Desde os anos 90 a falta de respeito pela Rússia tem-se manifestado pelo apoio americano à Turquia para esta se tornar numa influência junto da Ásia Central (tentativa largamente falhada, porque a Turquia nada tinha a oferecer à Ásia Central, salvo imãs e reconstrução de mesquitas) e separar a Ásia Central da esfera de influência russa. Benemerência? Não. Porque os americanos não queriam mais autonomia para a Ásia Central. Apenas queriam substituir a influência russa... pela americana. E tudo isto sob o discurso de que se convidou generosamente a Rússia a ser uma espécie de mega Suíça da Eurásia.

No meio disto, fica o problema ucraniano. Ao contrário dos propagandistas sobre a modernidade, os problemas têm sempre raízes bem fundas e a religião tem um papel definidor ainda hoje em dia. A Ucrânia foi desde há muitos séculos zona de fronteira entre o catolicismo e a ortodoxia. No século XV, no concílio de Ferrara-Florença há união com Roma por parte do arcebispo de Kiev, Nikon (refiro estes factos de cor, são forçosamente aproximativos) e no século XVI com o trabalho do polaco Piotr Skarga volta a haver união com Roma.

O facto de haver mais de uma união com Roma mostra até que ponto esta sempre foi relativamente frágil. Conquistando a Rússia a pequena Rússia, os uniatas tiveram sempre uma vida pouco fácil. Mas a verdade é que a Ucrânia foi sempre região de fronteira dentro da Europa, como o era a Jugoslávia.

Sob o ponto de vista simbólico a Ucrânia tem ainda um significado especial, tanto para a Rússia como para a Polónia Lituânia. Kiev foi o centro de nascimento da Rússia, onde reinaram os Rurikides. O célebre Ivan, o Terrível, era descendente desta dinastia, que tinha sido, antes de ser senhora de Moscovo, soberana de Kiev. (Para quem ache que Portugal nada tem a ver com isto lembro que o D. Afonso Henriques era primo em 10º grau do seu contemporâneo grão duque de Kiev Vsevolod III, antepassado de Ivan, o Terrível, por via do sangue Mamikonian, imperadores de Bizâncio – na Idade dita Média eram mais conhecedores dos laços que ligavam os vários países europeus que hoje em dia) É de Kiev que vem a «Rhos» obra de escandinavos nas planícies russas. Mas igualmente simbólica para a Polónia-Lituânia que governou a Ucrânia até ao século XVI, salvo erro. Não podemos olhar para a Europa como se fosse apenas a Europa ocidental e dentro desta apenas duzentos anos da sua História. Os Europeus de Leste têm mais vívida a sua História, porque ela os invadiu até muito recentemente. As fronteiras são novas e sempre semoventes.

 

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terça-feira, 18 de março de 2014

Medeiros Ferreira


Morreu o meu amigo mais improvável. José Medeiros Ferreira era de outra geração, de outro lugar político, de um tempo em que o poder que não se confundia com o jornalismo. Não tinhamos rigorosamente ninguém em comum. Até a sua Mulher, Maria Emília, conheci por outros motivos.
Almoçávamos e conversávamos sobre Portugal. Acho que não o faço com mais ninguém. Isto para dizer que José Medeiros Ferreira percorria caminhos inesperados. Açoreano de S. Miguel, impôs-se contra o anterior Regime. Irmão de militares, formou-se em História, em Genéve longe do controlo da «longa noite». Foi Ministro logo que o 1º Governo livre foi também Constitucional. Portugal deve-lhe o pedido de adesão à CEE numa época em que o PS se exibia com punho fechado, defendia o marxismo e a estatização da economia. Um ano depois, José Medeiros Ferreira formava com António Barreto e Sousa Tavares o grupo dos Reformadores juntando-se a Sá Carneiro na AD.
Tinha coragem para romper, sendo coerente. Conseguia ser aberto e firme; falar com profundidade e ter sentido de humor; ser elaborado na argumentação e linear no verbo. O gosto pela História e a sua perspicácia faziam-no ver para além do tempo e do barulho. O PS diz agora que José Medeiros Ferreira era uma personalidade ímpar e luminosa. Tem uma razão tardia. Depois de 1978, nunca mais o aproveitou nos 16 anos que esteve no Governo. José Medeiros Ferreira faz falta a Portugal. Faz-me falta. 

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sexta-feira, 14 de março de 2014

Exijo declaração de consciências

Acaba de ser recusada a coadopção por homosexuais. Esta questão civilizacional não estava prevista nos programas da maioria. No entanto, foi admitida para votação com liberdade de voto. O que constitui uma forma apurada de tirania, engano e de falta de virtude democrática. Nenhuma consciência representa a minha, a não ser que esteja mandatada para tal. Se é para cada um decidir por si sobre as questões de consciência não inscritas nos programas eleitorais, antes das eleições, isso obriga os deputados a fazerem uma declaração de interesses para que não estejamos a eleger um programa escondido. Na próxima campanha às Legislativas exigirei conhecer as consciências de quem estou a eleger.

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quinta-feira, 13 de março de 2014

O Bispo e eu

Fiz uma descoberta tardia deste Bispo de Lisboa com quem tantas vezes falei. Parecia apenas racional, inteligente, institucional. Diria que a sua evangelização passava só pelo cérebro. Entrevistei-o várias vezes. Uma delas, longamente, no dia em que o Cardeal Ribeiro morreu. Estava normalíssimo. Mostrava a frieza do pastor que herda um rebanho que conhece, com a naturalidade dos que ficam mais tempo vivos, antes do encontro na Eternidade. Olhava-o como Bispo mas creio que nunca me viu como crente. Não tinha uma interacção pessoal comigo. Nos jornais ou na Câmara de Lisboa, trocámos apenas assuntos, o que, para mim, representava um desencontro. Em absoluto contraste, tinha sentido de humor, fumava, falava sem rodeios, com simplicidade e profundidade.
Procurei o pastor nos seus textos e nas homilias que D. José escrevia primorosamente. Era outra pessoa. Calorosa. Transmissora do Amor de Deus. Conhecedora das fragilidades humanas. Esperançada na resposta de cada um ao desafio da Vida, em Cristo. A última homilia que lhe ouvi, há semanas, na igreja do Colégio do Bom Sucesso, foi um sinal partilhado da intimidade de Deus. Comovente. Senti-me inábil por não o ter descoberto mais cedo. Mas Ele sempre esteve lá. E revelou-Se em tempo útil.       

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terça-feira, 11 de março de 2014

O seu a seu dono

Sempre me disseram que o terreno entre a sede da Polícia Judíciária e o Liceu Camões, em Lisboa, foi doado pela Rainha D. Amélia para a construção de uma Escola Superior de Medicina Veterinária, que o País carecia. Essa escola existiu, formou múltiplas gerações até que alguém, quem?, decidiu demoli-la para ali ampliar as instalações da PJ, hoje inauguradas com pompa.
Não discuto as necessidades logísticas do combate ao crime. Nem vejo como indispensável que se estudem os animais no centro da cidade. Mas o objectivo da doação foi alterado e, pelo contrato, o terreno deve voltar aos seus proprietários.

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segunda-feira, 10 de março de 2014

Grandes Guerras




A morte de um príncipe afectou o orgulho da potência de Viena perante o terrorismo ultranacionalista sérvio. Rússia apoiou o seu satélite, como hoje. A Alemanha veio em ajuda ao aliado austríaco chamando a França a cumprir o Tratado com a Rússia e, por sua vez, a Inglaterra a honrar o compromisso de auxílio ao Governo de Paris. Há 100 anos, como hoje, amontoam-se as cartas. Basta um sopro para fazer cair o castelo da paz europeia.

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