quinta-feira, 20 de março de 2014

Ucrânia, Rússia e Crimeia II


Vamos pois à Rússia. Como é o mundo visto pela Rússia? Coloquemo-nos na sua posição. Imagine-se o que seria um Portugal em que todos os países até França ficaram sob domínio russo. E agora há movimentos para que Espanha esteja também sob domínio russo. Sentir-se-iam confortáveis os portugueses? Guardadas as devidas proporções (a Rússia tem fronteiras e possibilidades de encontro bem mais vastos que Portugal) é essa a posição da Rússia. As suas zonas de influência uma por uma foram absorvidas pela pata americana. Não interessa agora saber quem são os bons ou os maus, mas visto da Rússia, há um estreitamento, e mesmo um estrangulamento, das suas fronteiras que é perigoso e que têm toda a razão de sentir como uma ameaça.

Junte-se a isto uma política militar agressiva que começa com Clinton e continua com Bush filho. A diferença entre um e outro é muito menor do que se julga. Acrescente-se um país que vive humilhado pelo facto de o seu sucesso se basear sobretudo em matérias-primas, quando se trata de uma imensa cultura, rica, profunda e sofisticada.

Acrescente-se a esta receita o facto de a Rússia não ter passado pela versão triste da modernidade que é o pós-modernismo. A Rússia vive ainda os primeiros modernismos, ou seja, sem arrependimento permanente, sem pedidos de desculpa, sem a aceitação de toda e qualquer aldrabice só porque existe. Na Rússia ainda se sabe pintar, não se toca música apenas de ouvido, as matemáticas tem de ser efectivamente estudadas. Não é pós-moderna porque, apesar de a obsessão de poder americana não ser inferior à Rússia, os russos não estão preocupados com o embrulho dourado feito de direitos do homem, liberdade e quejandos. A Rússia em acréscimo despreza a Europa, e com as suas razões, porque esta é submissa aos Estados Unidos ao ponto de aceitar como país europeu o que mais não é que um país asiático, a Turquia. Ri-se com gosto e não sem malicia do grau de sujeição em que estão os europeus, sem vontade, sem necessidade de espaço próprio de actuação.

A Rússia não tem vergonha de ter poder, e precisa de poder. É uma imensa barreira contra a Ásia (nisto estou bem acompanhado, Eça de Queiroz achava o mesmo). os seus vizinhos não são brincadeira. Entre os turco-mongóis e os chineses está rodeada de povos pouco sensíveis (é o mínimo que se pode dizer) aos direitos do homem e ao delicodoce convívio civilizado à europeia. Os asiáticos usam o poder e a crueldade sem pejo, nem problemas de consciência, e nem no segredo dos seus quartos têm de rezar a um Deus que lhes pede contas dos seus sucessos. Apenas dos seus fracassos. A Rússia presta-nos o serviço sujo do guarda, para que os ditos ocidentais possam dormir descansados nas suas consciências.

 E como não se bastara, há a maior falha da política europeia dos últimos 25 anos. O muro de Berlim caiu para os dois lados, não me canso de o dizer. E a Europa, em vez de perceber que o seu maior desafio era do a integração da Rússia, em vez de fazer um plano Marshall para a Rússia, deixou-a embebedar-se, apodrecer, decair durante os anos 90. Humilhar um povo é injusto, humilhar um grande povo é além do mais perigoso.

O que temos como resultado é um grande festival de sanções pelos países ocidentais, mas mais de fachada que outra coisa. A Rússia gerando 18 milhões de turistas por ano para a Europa, sendo um forte de mercado de importação de produtos europeus, e de exportação de energia, sendo estrategicamente central para a estabilização da Ásia Central e do Cáucaso e barragem natural da Europa contra a Ásia, não vai ser fortemente hostilizada. Sanções de fachada e pouco mais.

O problema é que esta fachada gera mais e mais feridas na relação entre a Rússia e a Europa. A Rússia é o maior país europeu, para a Europa é central, para os Estados Unidos não.

O problema é o que todo este processo revela da mentalidade europeia. Da Rússia diz-se sempre que o copo está meio vazio, da Turquia meio cheio. Cada pequenina conquista democrática na Turquia é vista com imensa alegria, os recuos são entendidos como percalços naturais num percurso complexo. Porquê? Porque, no fundo, todos sabem que não é um país europeu, e se não exige tanto deles. Quanto à Rússia a exigência é a que se tem em relação a qualquer país europeu e por isso a crítica é bem mais forte. A mentira tem perna curta, e quanto mais se critica a Rússia mais se tem de reconhecer que não se tem outro remédio senão confessar que é um país europeu.

 

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