Ucrânia, Rússia e Crimeia III
Mas revela outro aspecto
de muito mais longo fôlego. No fundo, a Europa nunca ultrapassou a divisão de
Bizâncio. Enquanto a Rússia insistentemente desde Gorbatchev fala da Casa Comum
Europeia, e mesmo Putin originariamente tentou aproximações à Europa, os bem pensantes
de esquerda e de direita, liberais, alternativos e quejandos (comem todos da
mesma gamela, as suas categorias são as mesmas, alimentados por uma superficial
cultura americana da esquerda à direita) continuam a opor-se a um Bizâncio que não
sabem ver como tal. São apenas reaccionários sem o saber, ignorantes sem o admitir.
Repetem as mesmas alergias de séculos. Quem não sabe História está condenado a repeti-la,
dizia o velho Santayana, completamente intranscendente em metafísica, mas
sensato em algumas coisas que disse em História. E pior ainda, a viver no
enfado e gerá-lo nos outros.
No fundo, o dito
Ocidente padece do preconceito típico do pós-modernismo: eu tenho sempre razão,
precisamente porque nego a natureza absoluta da razão. A Rússia não a tem toda,
mas o dito Ocidente ainda menos. A crise é bem mais grave do que parece, mas
não pela vontade de a levar às últimas consequências. A Europa e os Estados
Unidos precisam da Rússia tanto quanto esta precisa da Europa (um pouco menos
dos Estados Unidos). Em questões como as do Irão, da Coreia do Norte, da Síria,
mas também, muito menos falados, da Ásia Central e das relações com a China, a
Rússia é insubstituível. O espectáculo da indignação ficta, tão característico
dos pequeno-burgueses, vai continuar. Vamos todos fazer o papel que estamos
muito indignados, mas depois a Rússia vai levar a sua melhor. A questão é que
entretanto já a ofendemos mais uma vez, já a destratámos, já a afastámos mais
um pouco.
Qual o maior pecado da
Rússia? O de que querer ser independente, efectivamente independente dos Estados
Unidos, e da ordem mole que estes pretendem impor. Não vejo santos de um lado
nem do outro. Mas tenho muita vergonha de viver numa época em que a Europa, sem
grande dignidade, acata docilmente a instrução americana e se esquece do seu
maior parceiro, daquele que é o maior país europeu. Mais uma vez, e em nome da modernidade,
um tique velho de mais de mil anos persegue a Europa. Perseguir Bizâncio sem
perceber que sem este ela é incompleta.
Alexandre Brandão da
Veiga
1 comentários:
Muito interessante; partilho da sua visão.
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