terça-feira, 16 de julho de 2019

Dois erros sobre Nietzsche II






Nietzsche não é anticristão. A população gosta de o ver como tal, mas apenas porque isso lhe dá uma sensação de aventura, uma aventura que julga não perigosa, com cintos de segurança, das que são da predilecção da época.


O principal problema de Nietzsche é o Cristo. Ora os seus seguidores pretendem que Cristo deixou de ser problema. Como muitas vezes acontece, são os seguidores os maiores traidores.


Que entendo por isto? O tema da morte de Deus é tema cristão por excelência. Desde os Padres da Igreja que é expressão trivial. O paradoxo, um dos maiores paradoxos do cristianismo, é precisamente o da morte de Deus. Os chineses, quando contactam nos séculos XVI e XVII com o cristianismo, é exactamente essa objecção que fazem. O Mestre do Céu esteve durante trinta e três anos ausente, deixou de governar o mundo e depois morreu? No século VI na Arábia, antes do islão, missionários etíopes vêem ser-lhes atirado à cara o mesmo argumento, e Santo Agostinho fala de «Deus crucifixus».


A morte de Deus para Nietzsche não é uma mera verificação, uma certidão de óbito, uma peça burocrática. No «Zaratustra» o que é dito? «Matámos Deus! O que vamos fazer agora?» As frases são significativas. Cito de memória, mas revelam tudo o contrário do que a população julga. Em primeiro lugar não se trata de um evento exterior. Foi acto nosso. Matámos nós. Fomos nós a matar. De seguida há uma pergunta: que vamos fazer? É um problema. É o problema mais decisivo que existe. E é um problema nosso.


Nietzsche no fim da sua vida assinava como Dionísio ou o crucificado. O centro do pensamento de Nietzsche é precisamente o de se confrontar com Jesus. Jesus é o principal problema de Nietzsche, não uma peça sobressalente que se deixou para trás porque inútil. Nesse sentido é um pensador eminentemente cristão, como aliás era natural com a sua formação. Tentou ser o verdadeiro Israel, o que lutou com Deus. E perdeu.



Os dois problemas estão ligados, e em muitos mais níveis que os que possa agora desenvolver. Mas podemos ver os seus traços principais.


Nietzsche falava dele mesmo e não era pensador anticristão. Qual o centro da sua acusação? Muito simplesmente, o do «nulla salus sine Ecclesia». Não há salvação fora da Igreja. Nietzsche quis experimentar outra via. Criou o super-homem como substituto do Homem-Deus, bebeu dos profetas pagãos, seja os gregos seja um profeta de que pouco se sabe, Zaratustra, que foi desde sempre uma alternativa mítica ao cristianismo para os cristãos. E significativamente já tinha sido uma desilusão para os homens das Luzes e imagem de farsa em Mozart.


Quis demonstrar que era possível salvação fora da Igreja, mesmo que fosse uma salvação trágica, uma dissolução, um apagamento. E falhou. O fim da sua vida mostra que a experiência falhou. E é esse fracasso em grande medida que fascina os seus seguidores. O seu fracasso torna-o uma figura crística, que tanto fascina os que se dizem fora do cristianismo.


O seu projecto é a demonstração do seu fracasso, mas a população tem dificuldade em o ver.


Nietzsche seguiu um percurso nada original em si mesmo. Seguiu o percurso que se segue na Europa desde o advento do cristianismo. A forma de saída do cristianismo não é algo alem do cristianismo, mas sempre algo aquém do mesmo. Foi à cultura grega, imaginou ir ao mazdeísmo.


Ora este percurso é sempre e sempre o mesmo na História da Europa. Seja Celso, que ataca os cristãos, seja Porfírio, seja Juliano, o Apóstata, ou o pagão Damáscio, que segundo alguns é nada mais nada menos que o autor do Pseudo-Dionísio o Areopagita, o percurso foi sempre o mesmo. Retornar ao paganismo. Sim, mas que retorno é este, que é todo o retorno? O retorno nunca é nascer virgem, implica sempre trazer consigo o seu ponto de origem. Estes retornos ao passado foram sempre marcados pelo cristianismo. Ou a imitação da Igreja cristã, com Juliano, ou da doutrina, se for verdade a tese sobre Damáscio.


Mais que o pensamento de Nietzsche, o significativo na nossa época é o seu sucesso, e o seu sucesso por ser lido de certa maneira. Ora Nietzsche é lido como oráculo grego e anticristão. Que está por detrás disto? O que diz o sucesso de Nietzsche sobre a nossa época?


Que em boa verdade é simplista, tanto mais quanto supostamente invoca a imensa complexidade de cada átomo a que se refere. A ideia que está por detrás desta leitura de Nietzsche é que antes eramos todos cristãos e agora deixámos todos de o ser, porque em boa verdade mesmo os que têm fé fazem-no apenas por teimosia, sinceramente, concede-se, mas com muitas dúvidas.


Esta visão simplista do antes e do depois dá sucesso a Nietzsche, um sucesso errado, tão errado quanto o que teve na filologia, onde foi pouco original. Simplista e mentirosa. Em todas as épocas históricas houve dúvidas, em todas ser cristão foi sempre participar de uma vibração, nunca foi estar pura e simplesmente instalado. Os sinais que temos disso são por vezes fracos, mas isso não significa que a força de fundo seja fraca. No tempo de Gerbert d’Aurillac, o futuro papa Silvestre II, havia em Ravena um erudito que ensinava que os poetas antigos diziam a verdade e não os Evangelhos, uns anos depois São Pedro Damião agastava-se com os exageros dialécticos dos monges de Montecassino e em algumas cidades. No século XV Plethon irrompe na cultura europeia, dando impulso a uma forte presença de neopaganismo. Mas já séculos antes se praticava nos mosteiros e nas catedrais poesia erótica de inspiração antiga, mas de libido fresca.


Nietzsche não fala dos gregos, mas dele mesmo. Não é anticristão, mas mais um entre os muitos cristãos que tentaram o experimento de sair do cristianismo e pela mesma via que outros. Nietzsche é grande não pelo que disse sobre os outros, mas sobre si mesmo, grande como testemunho. Como certos médicos que experimentam consigo os medicamentos que inventaram, Nietzsche vale pelo experimento sobre si mesmo, pelo testemunho que dele deixou. E pelo seu fracasso.


Nisto vale portanto como prova que a modernidade apenas mente sobre si mesma. Idolatra Nietzsche como modelo, como doutrina. Mas é a mesma modernidade que tanto insiste que o pensador não pode ser sindicado pela sua vida - criação escolástica, o que esquece - que usa como modelo quem não separou a sua teoria da sua vida e se fez exemplo e experimento. A mesma modernidade que diz que já superou o cristianismo, que usa como modelo quem foi o atleta de Cristo alternativo por excelência. A mesma modernidade que invoca os deuses do complexo segue Nietzsche como modelo porque afinal só vê o passado de forma simplista. A mesma modernidade que segue Nietzsche porque não cristão, mas em boa verdade segue-o porque isso lhe permite viver os temas cristãos sem ter de o confessar. O que assusta a modernidade não é o facto, mas a confissão, por isso evacua.


Não, Nietzsche não falou dos gregos nem de Wagner: falou de si. Não, Nietzsche não é anticristão mas um pensador eminentemente cristão. Como todos nós: filhos de pagãos.







Alexandre Brandão da Veiga








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segunda-feira, 15 de julho de 2019

Dois erros sobre Nietzsche I






Entre a população imperam acima de tudo dois erros sobre o pensamento de Nietzsche. São simples de enunciar:

a)     Nietzsche fala dos gregos;

b)    Nietzsche é anticristão.


Estão mais intimamente ligados do que parece. Por isso, carecem de análise comum.


Nietzsche não fala dos gregos. É evidente que nas proposições que ele enuncia, nos temas que apresenta, os gregos estão permanentemente presentes. Quando Nietzsche passa a ter prestígio como grande filósofo, até os filólogos helenistas começaram a citar a sua obra, a usar as suas categorias, a salientar a importância das suas análises, para a compreensão da Grécia.


Mas Nietzsche não fala dos gregos. O grande equívoco passa-se ainda durante a sua vida. Quando von Wilamowitz-Moellendorf, o que virá a ser chamado de príncipe dos filólogos, lê a sua «Origem da Tragédia», fica de tal forma horrorizado que faz uma diatribe contra a obra de Nietzsche. Este não tinha percebido nada sobre a origem da tragédia. Faz entretanto um pequeno livro sobre o que é a tragédia ática. O adjectivo «ática» não é inocente, querendo salientar que a tragédia é feita nesta parte da Grécia, não é um fenómeno grego geral na sua origem.


Passados uns anos, quando Nietzsche já estava morto e já tem grande prestígio, von Wilamowitz repensa a questão e redime Nietzsche. Diz: realmente, as críticas que fiz foram injustas, Nietzsche não está a falar dos gregos, mas de Wagner. E teve a arte de, homem inteligente e culto que era, de falhar no alvo. Mais uma vez.


Nietzsche não fala dos gregos. E não fala de Wagner. Nietzsche fala dele mesmo. É esse o seu génio e a sua originalidade.


Se bem virmos, o que é vista como a grande originalidade de Nietzsche está bem longe de o ser. Este apenas traz para o público em geral o que já era movimento comum na erudição clássica, desde pelo menos a Renascença, para muitos filólogos, tanto os primitivistas ingleses do século XVII, como no fim do século XVIII e início do XIX com Wolf e Humboldt. O lugar comum era simples: o apogeu da cultura grega está na sua poesia primitiva, é em Homero, Hesíodo, ou Píndaro na melhor das hipóteses, que está o seu auge. A filosofia, a via discursiva, é já um sinal de decadência, de amaneiramento.


Esta a teoria que eventualmente prevaleceria na escola de Pforta, em que Nietzsche estudou. Nenhuma originalidade. Admirar Nietzsche pelo que ele tem de escolar é um paradoxo não pequeno da nossa época. Ou talvez não tão grande assim, porque a nossa época gosta de escolásticas, desde que não se apresentem como tal. Das encobertas, das clandestinas. Porque a nossa época é escolástica, mas não gosta de dizer o seu nome.


A grande originalidade de Nietzsche é ser uma espécie de ritual do Graal, do ciclo do rei Artur. Talvez por isso ele detestasse o «Parsifal» de Wagner, porque o punha nu. O grande ciclo que põe a nu as várias camadas de que somos feitos nós os europeus.

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