sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Vetos presidenciais e a feição moderna da "descontinuidade parlamentar"

A tradição dos parlamentos - vinda de Eduardo I e assumida pela teoria prática de séculos - é a tradição da descontinuidade. Isto é, os parlamentos não funcionavam continuamente - viviam com hiatos, férias e interrupções. A experiência traumática dos parlamentos em funcionamento contínuo - os long parliaments da revolução inglesa ou a "convenção" da revolução francesa - aconselhavam períodos relevantes de paragem. O envolvimento dos membros do legislativo nas tarefas diárias do executivo, cuja vida acompanhavam ou pretendiam acompanhar ao milímetro, tinha como resultado o arbítrio e a opressão. Por um lado, pelo estrutura plural e compósita do órgão parlamentar; por outro lado, pela ligação directa aos representados, de cujo voto dependiam. O executivo, apesar de tudo, tinha a distância da escolha indirecta e a estrutura hierárquica e vertical, que, putativamente, asseguravam uma certa racionalidade. Os grandes teóricos da separação de poderes recomendaram, invariavelmente, que o parlamento não deveria funcionar como um órgão "sempre em ser" (para usar a saborosa expressão de João Oliveira Carvalho na tradução do II Tratado do Governo de Locke).
Esses recomendáveis períodos de paragem podiam ser férias fartas (de três ou quatro meses), podiam ser hiatos longos entre a dissolução ou cessação de funções e as novas eleições. Tais intervalos serviam também para aliviar a pressão e a tensão exercitadas sobre os governos. Durante meses, livravam-se do escrutínio da turba dos deputados. Administravam mais folgadamente e, às vezes - impunha-o a urgência e a necessidade - legislavam. Na verdade, sempre que fosse necessário legislar fora dos períodos de funcionamento das assembleias, o governo usurpava-lhes a função e produzia os "decretos com força de lei". Decretos estes que, apesar de inconstitucionais, haviam de ser ratificados logo nas primeiras sessões do parlamento, assim que este assumisse ou "reassumisse" funções. Era a velha tradição inglesa dos "bills of indemnity".
Vem tudo isto a propósito dos vetos presidenciais e da gestão do "timing" político. Efectivamente, já naqueles contextos, os executivos aproveitavam os períodos de pausa ou pousio parlamentar para emanarem a legislação que mais facilmente queriam fazer passar e que, depois, havia de ser ratificada em bloco.
Muitos estranham por que razão concentrou o Presidente os vetos nesta época do ano. Alguns arriscam até que o fez, por se tratar de uma época morta (silly season), diminuindo o impacto da fricção institucional (sem deixar de avisar o Governo).
Mas uma tal visão não colhe. Quem determinou os tempos foi o Governo, através da sua maioria parlamentar. E não por acaso, concentrou no final do ano a aprovação dos diplomas mais polémicos ou mais arriscados. É que a Constituição dá vinte dias ao Presidente e, assim, se ele exprimir qualquer discordância ou reserva (política ou constitucional), ela passará anestesiada como passou.
Nada de novo debaixo do sol, portanto. Ontem como hoje, a "descontinuidade" parlamentar continua a ser aproveitada pelos executivos.

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quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Telegramas

Há muito, muitos anos, numa terra distante e quando ainda havia “correios, telégrafos e telefones”, um jornalista inglês mandou um telegrama ao agente de Cary Grant perguntando-lhe: “How old Cary Grant?
Acidentalmente, e como só nesse tempo acontecia, o telegrama acabou por cair nas mãos do actor que, com panache e de coração ao alto, respondeu: “Old Cary Grant fine. How you?”.
O mundo já teve graça. Hoje não está perigoso, está chocho.


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O estado da Arte

Estando em Veneza visitei a Bienal de Arte e, em particular, a sua exposição principal: Think with the Senses - Feel with the Mind. Art in the present tense. A fazer fé em Veneza não me parece em muito bom estado o estado da arte! No geral, vi uma arte de umbigo ou assente em mensagens políticas maniqueístas. A arte sempre foi profundamente política e, até, subversiva. O que é notório, no entanto, na bienal de Veneza é que a arte se parece hoje esgotar na política. Não se sustenta enquanto arte mas sim através da adesão ou oposição que provoca a mensagem política que veicula. Por detrás das provocações sem substância, a grande maioria dos artistas representados em Veneza parece incapaz ou receosa de nos desafiar. Preferem antes o refúgio que lhe garantem os adeptos da sua mensagem política mais do que da sua arte. É uma arte que não permite várias leituras nem transmite a complexidade do mundo, antes se satisfaz em tomar posição. Eu tomo posição contra esta arte.

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III. Heidegger. Platon: Le Sophiste. Paris, Gallimard, 2001

Bochenski, na sua “História da Lógica formal” queixava-se da tendência que tinha a lógica actual de se limitar à simples manipulação algébrica. Repare-se que falamos de alguém que era tudo menos ignorante da riqueza da lógica matemática actual. No entanto, não posso deixar de lhe dar razão. Embora ficasse satisfeito que o homem público conhecesse regras de lógica elementares, a verdade é que não posso deixar de deplorar um fenómeno bem mais minoritário, mas não menos preocupante, que é o seu paralelo, o da especialização meramente algebrizante na lógica matemática. A passagem por Heidegger obriga-nos a repensar estruturas como a negação e a afirmação, género, espécies. Pensamento que mesmo sob o ponto de vista da lógica matemática não será inócuo e pode levar a desentranhar de uma só negação muitas realidades que se confundem, o mesmo valendo para as afirmações.

É que Heidegger obriga a reflectir sobre dados fundamentais da lógica. A base do dizível é indizível (63). A especulação, o teorético exige uma dupla imagem, o espelho (67). O “porque” é uma estatuição (78). A direcção do olhar é a fonte de hierarquia (78). A opinião é o oposto da investigação (148). "Eidos" é "apeiron" (525).

Reflecte igualmente sobre dados básicos da matemática e da física. O lugar tem uma força; a teoria do bootstrap na física é um retorno a esta ideia aristotélica (108). O problema do contínuo e a teoria da vizinhança já é problematizado por Aristóteles (110, 116). O números pitagóricos nada têm a ver com uma visão matemática da realidade em sentido estrito (398). O ser como ser oferecendo uma resistência, preparação da teoria da inércia (437). O dogmatismo dos materialistas (441).

É certo que Heidegger faz de Aristóteles e Platão um pouco mais fenomenologistas do que eles seriam (pp. 140, 390). Em quase anedota, seria curioso que o estrangeiro fosse Platão em jovem e a obra fosse auto-irónica (pp. 240, 451).

Heidegger dá-nos algumas surpresas, sobretudo para quem gosta de ver no fundador do existencialismo (seja lá o que isso for) um pensador anti-histórico: "apropriar-se do seu passado significa saber que se está em dívida em relação a esse passado" (20). “Este Dasein nós mesmos, somos História" (182). “Só a liberdade de se ater às coisas nos oferecerá a possibilidade de sermos, num sentido autêntico, históricos” (246) (ver 391).

Muitos lugares comuns são deitados borda fora, pela simples leitura desta obra:
1) em 1947 traduziam-se em França furiosamente autores alemães (351) logo após a guerra. não se viu a mesma coisa em relação a turcos. Fazer parte de uma mesma civilização é isto. Mesmo a morte não impede a comunicação, a troca.
2) a verdade é aquilo sobre que respeita a filosofia (86); quem diria, numa época supostamente relativista, de que Heidegger seria um dos percursores;
3) a melhor forma de conhecimento é a menos urgente (130); numa época em que a aceleração é vista como mérito, curioso que a grande cultura do Século XX ainda lembre o contrário;
4) o "hypo" é usado nos conceitos fundamentais (150); o que está em baixo, a fundação, a raiz, é afinal relevante para o pensamento. Bela lição para os que dizem que a Europa é uma construção sem raízes, anti-histórica;
5) a critica bíblica como antepassado da critica filológica em geral (298); curiosa observação para quem vê sempre os estudos bíblicos como obscurantistas;
6) "A novidade, de uma maneira geral, é fútil”. (306); machadada certeira no experimentalismo de feira e no gozo por uma cultura em perpétuo movimento (para ir onde?);
7) a natureza absorvente do ser (433); o que nos vai levar a outras conversas quando falar um pouco mais de filosofia tardo-antiga;
8) a imagem da alma como tábua de cera desde o gregos (489); o que mostra a falta de imaginação dos empiristas sob o ponto de vista imagético

É evidente que várias teses são aqui possíveis:
a) Heidegger não é capaz de deixar de pensar como um cristão quando analisa a cultura grega. E por isso apenas projecta nela critérios cristãos;
b) Pelo contrário, descreve o que efectivamente era a cultura grega, e apenas mostra mais uma vez que o cristianismo, para se verbalizar teve de recorrer ao instrumentário grego
c) Ou ainda, que cultura grega e cristianismo se entrelaçam tão bem porque desvelam as mesmas estruturas profundas da realidade de uma forma que não é casual (pelo discurso de Ratisbona, suspeito que esta seria a tese do teólogo Ratzinger).

Defender uma ou outra teses não é irrelevante. E em certo sentido todas podem ter a sua valia. O mais importante é que mais uma vez se verifica aqui que a Europa não pode ser profundamente pensada ou estruturada sem as suas duas veias do paganismo indo-europeu e cristianismo. Mais uma vez não faço demonstração completa. Mas como o bom do Arquimedes sigo o método da exaustão. Até cansar, não o intelecto (seria fácil demais), mas a verborreia dos adversários (tarefa esta sim hercúlea).



http://dogma.free.fr/txt/MG-cr-HeideggerPlaton.htm
http://www.humanite.fr/2001-09-10_Cultures_-Heidegger-et-Platon
http://www.evene.fr/livres/livre/martin-heidegger-platon-le-sophiste--6109.php
http://fr.wikipedia.org/wiki/Martin_Heidegger
http://heidegger.over-blog.com/

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quarta-feira, 29 de agosto de 2007

II. Heidegger. Platon: Le Sophiste. Paris, Gallimard, 2001

Vejamos apenas alguns pontos curiosos da obra.

O grande problema do “logos” é o da verborreia (p.33), a capacidade que tem a palavra se de tornar falsa, encobridora da verdade. A letra mata o espírito vivifica, diria São Paulo. Que a palavra possa ser falsa, que o “logos” possa encobrir, é verdade que poucos enfrentam com coragem. A nossa época em que a palavra se multiplica, e tudo invade devia-nos levar a pensar duas vezes antes de falar... ou escrever.

A tese de Antístenes de que só é verdadeiro o tautológico, o A é A, mostra uma tentação de todas as culturas para o monolitismo. É o pensamento islâmico do Deus sem associados. Expressão simples, aparentemente sem risco de incoerência, mas falhando no teste da realidade e no teste da própria consistência do discurso. A palavra não é apenas susceptível de falsidade. Ela é mais do que é singelamente.

Um dos lugares comuns possíveis é o de se dizer que a lógica grega é de procura do Ser, a cristã é a de revelação. Na relação entre o ser e a verdade a postura grega seria activa, a cristã passiva. Visão algo simplista da coisa. Porque mesmo para um grego, sem a corroboração do ser, que se abre e em dádiva se permite desvelar, não seria possível o acesso à verdade. Fora a verdade absolutamente opaca nunca seria possível aceder a ela. Inversamente, do lado cristão, o acesso à verdade implica esforço vivencial, não basta a revelação. Ou seja, destrinçar uma e outra cultura por este critério é tonto e superficial. Em ambas existem ambos os movimentos. Tanto numa como noutra a relação entre ser a verdade implica um movimento de ambos que se dirigem um ao outro. O mesmo fenómeno, afinal: o encontro.

Curiosa igualmente a observação de Heidegger, a insistente referência, ao facto de o ser para os gregos ser presença, “parousia”. O mesmo critério para a eucaristia, com o dogma da transubstanciação, da presença real. A plenitude do ser como plenitude de presença (264, 318, 372 ss., 376, 436 ss., 439, 443, 457, "entelecheia" como presença 490, 520), tema eminentemente católico.

Outros pontos de confluência entre o pensamento grego e o cristianismo saltam a cada momento, mesmo que isto não agrade provavelmente a Heidegger (ou melhor ao seu discurso expresso). A bipartição dos "nous" em Aristóteles como o mais concreto e o mais geral é um elemento católico de Heidegger (157). A ideia de felicidade em Aristóteles como pura contemplação, como desvelamento pleno da presença, ideia bastamente cristã (165). A ligação entre teologia e ontologia, herança grega e não só cristã (212). O diálogo, o ser, e o problema das trindades (421, 463) helenismo e cristianismo aptos a lidar com os mesmos problemas discursivamente. A dialéctica como "colocação em evidência das possibilidades, para o ente, de entrar conjuntamente em presença, na medida em que venha ao encontro do logos" (500) poderia ser definição da eucaristia como preparação da transubstanciação. A questão antropológica é a ontologia e vice-versa (545): Bento XVI não diria outra coisa. Negação, conceito cristão se o há, como fundação do mal, no caso a ilusão, do sofista (208), ou em Hegel como mera transição (529). A teoria dos ícones (e o problema da iconoclastia) antecipa a fenomenologia (378).

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Salazar

Não sou, confesso, um fã de Jaime Nogueira Pinto. Não me revejo na sua visão do Mundo, muito menos nas suas opções políticas. Dito isto, é justo que se diga que este seu «Salazar - O outro retrato» é um livro notável a vários títulos. Desde logo porque Nogueira Pinto consegue fazer, em pouco mais de 200 páginas, uma síntese cultivada e inteligente do pensamento político de Salazar e um retrato razoavelmente desapaixonado da sua personalidade. Depois porque a análise que faz de dois dos períodos mais cruciais da vida diplomática e política do Estado Novo, a Guerra Civil de Espanha e a 2ª Grande Guerra, é particularmente bem conseguida. Finalmente porque a obra constitui o primeiro grande retrato de Salazar feito de forma desassombrada e razoavelmente distanciada por uma personalidade de direita no pós 25 de Abril. E é nesse sentido um contributo inestimável para a história recente de Portugal.
Só é pena que Nogueira Pinto dispense uma análise do papel de Salazar nas políticas mais repressivas do regime. Sem a qual, convenhamos, também não é possível entender e conhecer o Estado Novo.

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terça-feira, 28 de agosto de 2007

Os radares

Os portugueses, já se sabe, não têm um grande sentido comunitário. Basta olhar para os jardins, paredes e espaços públicos um pouco por todo o país. Basta analisar o número, a representatividade e a vitalidade das associações cívicas, dos «think tanks», dos movimentos de cidadãos que, de resto, praticamente não existem. Culturalmente estamos nos antípodas da tradição anglo-saxónica que Toqueville tão bem descreveu. Verdade?
Nem sempre. Aparentemente há portugueses que resistem. Que, parafraseando Manuel Alegre, não se deixam calar. Que se indignam, se organizam e protestam. Só é pena que este tipo de movimentos nasçam pelas razões erradas. Ou não encontrará esta gente nada melhor para se indignar do que uns radares que tentam controlar o trânsito num país com taxas de mortalidade rodoviárias terceiro-mundistas? Será esta uma causa pela qual vale verdadeiramente a pena lutar?
Estranha concepção de cidadania esta.

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I. Heidegger. Platon: Le Sophiste. Paris, Gallimard, 2001

É certo. Para o homem público o aoristo é um problema dermatológico. E não lhe passa pela cabeça que um espírito rude seja uma categoria gramatical. Ouvindo a expressão apenas sorri, pensando que finalmente foi consagrada sob forma livresca a sua história familiar.

Não estou preocupado aqui em desenvolver as implicações filosóficas desta obra de Heidegger. Mas apenas e mais uma vez a falar da Europa. É muito fácil ao analfabeto proferir inanidades sobre o que é a Europa. O meu papel tem sido o da demonstração de uma tese muito simples. Por forma a que fique claro que a imensa maioria das pessoas que dissertam sobre a Europa apenas proferem flatus uocis.

É evidentemente impossível percorrer todas as fontes europeias. Não é um trabalho de uma vida, mas de muitas. Mas tentando analisar todas as dimensões da cultura europeia mostrar que o espaço público é apenas percorrido de inépcias.

Heidegger é por isso aqui apenas mais um exemplo. Mas que ao menos quem fala da Europa saiba os dar. E não ficar pela mera leitura de tratados ou documentos burocráticos. Esses mesmos que se dizem abertos e nada mais sabem fazer senão mostrar o que são: mangas-de-alpaca, pequenos funcionários de alma, por mais pomposos que sejam os seus títulos.

Este livro de Heidegger é francamente divertido. Não me vou dedicar a fazer análises do que tem de relevante sob o ponto de vista filosófico, apenas saliento até que ponto mostra a ingratidão típica de muitos filósofos em relação aos filólogos. E no entanto, percebe-se que a maioria dos trabalhos de base em que assenta o rigor da análise de Heidegger seria impossível sem o trabalho filológico. A sua irritação em relação a Jaeger é nesse aspecto sintomática (Heidegger critica Jaeger, mas afinal reconhece um jovem Aristóteles (p. 456)).

Livro sintomático num outro plano. Duas das obras mais interessantes da filosofia do século XX, esta e a “Ideia de Princípio em Leibniz” de Ortega e y Gassett, fazem um percurso algo estranho. Para chegar a um filósofo (Platão no primeiro caso, Leibniz no segundo), começam por Aristóteles. No caso de Ortega, acaba por nem se quer falar em Leibniz. Aristóteles é revisitado de forma tão intensa que nem ficou tempo para falar de Leibniz. Os arautos do fim de Aristóteles no século XX devem pensar duas vezes antes de dizer tais inconsequências. É inevitável, não se pode passar sem Aristóteles. Por mais burguês que ele cheire, mais escolar (em que sentido?), por mais cinzento de tão científico, ou desprezível de tão pouco científico que o queiram fazer, a sua presença é imensa e inevitável.

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domingo, 26 de agosto de 2007

Eduardo Prado Coelho

Há pouco mais de um ano, na editora “Guerra e Paz”, depois de ter conseguido que Agustina, num livro intitulado “Fama e Segredo na História de Portugal”, escrevesse 12 histórias sumarentas, de Viriato a Salazar, desafiei Eduardo Prado Coelho para fazer um livro de risco sobre um conjunto de objectos e conceitos que definem o que é, irrefutavelmente, ser português. Desse convite resultou “Nacional e Transmissível”, o último livro que publicou em vida. Do bacalhau ao pastel de nata, do mar do Guincho à saudade, do fado aos diminutivos, Prado Coelho inventariou, e as palavras são dele, “um certo número de tópicos que correspondem a realidades específicas daquilo que se designa como ‘ser português’”.
Prezo muito o livro de Agustina e prezo muito o livro do Eduardo. Mas se com Agustina era já o terceiro livro e a empatia era um dado adquirido, com Eduardo Prado Coelho era a primeira vez, sendo claro que conhecendo-nos há muito, e sem prejuízo de uma cordialidade distante, não era liquido que as nossas tão distintas idiossincrasias resistissem à experiência. Resistiram. Melhor, a forma tão pessoal como o Eduardo “atacou” os diferentes tópicos do livro desarmou-me . Tinha-lhe pedido um “livro de ideias” e ele presenteou-me com uma obra muitas vezes íntima e confessional. Mas há mais e eu, tenham ou não paciência para ler, vou contar-vos.
O Eduardo era vizinho da Guerra e Paz. Ali ao lado moram ou escrevem Lobo Antunes, o Rui Zink, tal como desenha o Vilhena. Todos a resistir no degradado Conde Redondo. De repente, ele, o Eduardo, e a Maria Manuel passaram a ser visitas regulares da editora. Vinham ao cafezinho que temos para todas as visitas e aos pastéis de Belém que íamos comprar a correr só para eles. E discutiam o lay-out do livro com o Luis Miguel Castro – definitivamente o meu “gráfico” preferido – dando-lhe quase sempre o imprimatur de que o Luís precisava.
A mim, o Eduardo deu-me ainda mais. Deu-me uma lição de tolerância, e de paz consigo mesmo, que me fica como referência. Completamente consciente da doença que o consumia, delirante e lucidamente optimista na impossível batalha que travava, o Eduardo atirou-se para o lançamento do livro no “Lux” – escolha dele, claro, incapaz que era de resistir a cumplicidades antigas – e aceitou fazer um périplo de entrevistas que, entre Imprensa, Rádio e Televisão, o deve ter obrigado, em duas semanas, a correr o mesmo que Carlos Lopes correu em toda a sua carreira. Isto sem contar com a viagem, com outro três autores da Guerra e Paz, para uma simpática sessão na livraria da Coimbra Editores.
Mas mais do que esses sinais exteriores, Eduardo Prado Coelho mostrou-me, nessa altura, o que já no livro me surpreendera. Mostrou-me os sinais interiores de uma riqueza (de uma sapiência) a que, se calhar, só se chega depois de um duro e longo aprendizado. Com ele, de quem dizem nunca ter fugido a uma boa polémica, as conversas fluíam agora no sentido de uma harmonia que não deixava de temperar com uma ironia que juntava mais do que dividia. Muito, muito mais do que o confronto, com o Eduardo Prado Coelho, de quem eu tinha lido o “Reino Flutuante” quando ainda era pouco mais do que um fedelho e de quem vim por acidente, a ser o último editor, reaprendi as regras da convivialidade, do sossego na relação entre seres humanos honestos e decentes, do direito a estarmos de bem com o nosso passado, seja qual for o seu cortejo de amores, de erros e omissões, de virtudes, de fracassos ou de êxitos.
Tratávamo-nos por você. A ele, por vezes, fugia-lhe a boca para o tu, a que a minha reserva beirã nunca se autorizou. Atrevo-me hoje: “Eduardo, espero que te tenham recebido bem. E já sabes, menos do que um café e um pastel de nata, é mandá-los bugiar. Para isso tens a Guerra e Paz, tão feliz para te acolher como Mrs. Muir ao seu fantasma”.



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sábado, 25 de agosto de 2007

Para nos continuarmos a entender...

"Se há algo que permite dizer que os homens são feitos para se entenderem não é o saber que trocam nas salas dos colóquios universitários, nem a racionalidade com que argumentam e provam as diversas configurações da verdade. Se há algo que permite dizer que os homens são feitos para se entenderem, é a morte. Sobre a morte não há muito que pensar (recomendava Spinoza). Mas é a partir da morte que tudo se pensa: as flores e as gárgulas, deus e os búzios da praia, o mar e os estalidos nocturnos das madeiras…"
Eduardo Prado Coelho

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O icebergue

E de repente uma verdadeira legião de virgens ofendidas pôs-se a vociferar, indignada, com o caso do alegado financiamento ilegal da Somague ao PSD. Como se o caso fosse único ou surpreendente. Como se o financiamento em causa, pelos seus contornos e dimensão, não fosse simplesmente patético quando devidamente contextualizado. Como se não fosse um exemplo entre muitíssimos que todos sabem existir. Como se estas virgens púdicas tivessem acordado agora para essa realidade sinistra que há muitos anos mina a qualidade da democracia portuguesa que é o financiamento ilegal dos partidos políticos. Como se não soubessem que não há grande obra do Estado, concurso público, ou licença atribuída que não sirva para aliviar o deficit crónico dos partidos. De todos os partidos. Como se não soubessem que esta sórdida teia de interesses é a «mãe de todas as corrupções». Como se não soubessem que é com esta prática que se compram silêncios e se vai criando uma cultura de corrupção que vai alastrando a todo o país.
Tenham dó. Se não querem atacar o problema, pelo menos poupem-nos a estas reacções de indignação hipócrita e patética.

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sexta-feira, 24 de agosto de 2007

V. La Proporción Áurea, La Historia de Phi, El Número más Sorprendente del Mundo; Mario Livio, ARIEL, 2006

O tema não se pode esgotar e em última linha talvez seja assim porque a matemática lida com os limites poéticos do ser humano. Descoberta e invenção são em última análise problemas poéticos e a sua destrinça gera iguais problemas na arte e na matemática. A cultura em que vivemos, desgraçadamente fragmentada, deixa muitos campos por estudar. Todo um campo que está por estudar, o do estilo na matemática, porque os matemáticos em geral ignoram retórica. Hamilton, o romântico, não escreve da mesma maneira que Laplace, o clássico (Félix Klein foi dos poucos que começou a abordar esta questão). Mas igualmente os das profundas estruturas matemáticas da poesia, que têm sido deixadas nas mãos de fraudes pseudo-estruturalistas (a velha inépcia de Júlia Kristeva, teórica não incompetente, mas que afirmou que a poesia tem mais que a potência do contínuo, tem a potência de 2, ou que coisa quisesse ela dizer…).

No que me respeita não posso deixar de elogiar este livro. Mostra um profundo bom senso, uma prudência, que só fica bem a quem tem formação matemática. A matemática também cultiva o bom senso, como a boa poesia, ao contrário do que se afirma. Os limites do livro ficam-se nos limites do autor. Se correctamente desconfia da aplicabilidade da constante Phi a certas obras poéticas que apressadamente foram qualificadas como seu desenvolvimento, mostra desconhecer o processo da criação artística. Muitas vezes o motivo é tão importante quanto a estrutura. Mesmo que a última não se construa com base na constante Phi, não deixa de nos fazer pensar até que ponto este não entrou no motivo.

Essa outra discussão. Mas já é muito saudável que quem sabe do que fala nos explique de forma simples do que sabe.

http://www.rodalia.com/libroforo_comentarios.asp?LibroID=58
http://www.casadellibro.com/fichas/fichabiblio/0,1094,2900001115456,00.html?codigo=2900001115456&titulo=LA+PROPORCION+AUREA%3A+LA+HISTORIA+DE+PHI%2C+EL+NUMERO+MAS+ENIGMATICO+DEL+MUNDO
http://goldennumber.net/
http://www.mcs.surrey.ac.uk/Personal/R.Knott/Fibonacci/phi.html
http://www.mcs.surrey.ac.uk/Personal/R.Knott/Fibonacci/
http://mathworld.wolfram.com/GoldenRatio.html
http://www.championtrees.org/yarrow/phi/phi1.htm

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quinta-feira, 23 de agosto de 2007

IV. La Proporción Áurea, La Historia de Phi, El Número más Sorprendente del Mundo; Mario Livio, ARIEL, 2006

O autor mostra-se muito prudente ao deitar fora todo este tipo de demagogias. Nem tenta encontrar fora do mundo grego ou europeu grandes avanços sobre o número Phi, nem se mostra crédulo perante as três mil teorias que sobre ele se quiseram construir.

O número Phi é uma das mais fascinantes constantes da matemática. Um pouco menos conhecido que e ou pi é no entanto igualmente misterioso, pela variedade de ligações que permite estabelecer. Proporção criada pelos gregos, é a razão que existe num segmento de recta, dividido em duas partes (desiguais), entre a parte maior e a menor, que tem de ser igual à que existe entre a totalidade do segmento de recta e a parte maior. Irreleva agora a configuração matemática da coisa, e a habilidade geométrica e algébrica que resolveu este tipo de problema. O mais espantoso é que esta constante Phi se encontra na construção de pentágonos, de estrelas de cinco pontas (as da bandeira europeia e prevalecentes em todo o espaço indo-europeu, curiosamente).

Como é típico da História da matemática nunca se pode definir a fronteira entre a invenção e a descoberta. Em última análise a destrinça torna-se sempre artificiosa. Porque esta constante se encontra tanto em formas naturais, como acaba por aparecer relacionada com os números de Fibonacci. Não é dos menores mistérios da matemática o desta capacidade de relacionar realidades que parecem estar muito distantes, seja realidades e problemas matemáticos entre si, seja estruturas matemáticas e a realidade.

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O deserto dos tártaros






Cheguei a Dino Buzzati através da meritória «Ficções» de Luísa Costa Gomes. O conto, magistral, que primeiro prendeu a minha atenção dá pelo nome de «Sete Andares» e narra a vida de um homem que entra numa clínica para um tratamento menor e que vai sendo transferido, aparentemente por razões kafkianamente burocráticas, de andar em andar até chegar ao piso onde se encontram os doentes terminais sem que nada nunca lhe seja dito acerca do seu real estado de saúde. Ataquei de seguida «Os sete mensageiros» o volume de contos em que originalmente fora publicado «Sete Andares» e confirmei a minha opinião. Este Verão dediquei-me ao «Deserto dos Tártaros», obra maior deste jornalista/escritor conotado com o realismo mágico e o existencialismo.


Drogo é um jovem oficial colocado na remota e semi-abandonada fortaleza Bastiani onde tudo gira em torno de uma mais do que anunciada invasão de tártaros que é a própria razão de ser do aquartelamento e a única esperança de glória para os seus soldados e oficiais desterrados para um inóspito fim do mundo. «O deserto dos tártaros» é a angustiante história dessa espera interminável por uma invasão que, obviamente nunca virá. É o retrato sufocante de uma vida gasta em vão, de um desfiar sem sentido de dias, meses e anos. Uma parábola sobre o significado da esperança e o sentido da vida.

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quarta-feira, 22 de agosto de 2007

III. La Proporción Áurea, La Historia de Phi, El Número más Sorprendente del Mundo; Mario Livio, ARIEL, 2006

Se bem me lembro, Eco, no Pêndulo de Foucault, lembra que os fascinados com as estruturas matemáticas fantasiosas que encontram nas pirâmides apenas escondem o que de mais importante existe. A existência destas estruturas matemáticas. Mais importante que isso, o facto de haver uma correspondência entre o espírito e o corpo que a matemática consegue muitas vezes traduzir.

Que realidades externas possam ser objecto de equilíbrios internos, e possam por eles ser traduzidos, até certo ponto não me espanta. Teríamos ser incapazes de sobrevivência se tal não acontecesse. Se a inadequação do nosso espírito ao mundo fosse tal que nenhuma acção fosse possível. Mas que exista uma tal consonância, por mais imperfeita que seja a sua formulação, entre o mundo interior e o exterior, que a matemática traduz como poucas expressões humanas (a poesia, a música, por vezes conseguem-no), é realidade que sempre me há-de espantar.

As hipóteses de solução são muitas. E uma não menos relevante será a de se admitir que no limite esta divisão entre espírito e matéria é assimptoticamente falaciosa, que no limite do psíquico e do físico encontramos o que Jung chamou de Psicoide, mas que de muitas formas diversas se encontra enunciado seja pelo dogma de Presença Real, seja pelo pela ideia do Uno.

É terreno perigoso, porque quem labora directamente nele sem sentido de prudência perde de uma mesma assentada o sentido religioso e a prudência, que são duas faces da mesma moeda.

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terça-feira, 21 de agosto de 2007

II. La Proporción Áurea, La Historia de Phi, El Número más Sorprendente del Mundo; Mario Livio, ARIEL, 2006

As pessoas tendem a confundir várias realidades diversas. Uma coisa é a estrutura matemática das realidades, outra ainda é a sua apercepção prática. Mas, mais importante e a anos-luz de quaisquer duas, é a sua compreensão matemática enquanto tal.
Não há matemática sem algoritmo consistente, ou sem demonstração. A última é criação grega e só grega. O primeiro foi o resultado de uma sedimentação que só se encontra desenvolvida desde a Idade Moderna na Europa. Fora da Europa encontramos sofisticação. Os árabes, os chineses e os persas nomeadamente. Encontramos vislumbres de génio entre os chineses, os Maias, os babilónios. Génio consistente apenas encontro de formas diversas entre dois primos: os indianos e os europeus.

Que o Nautilus tenha uma estrutura que reproduza a proporção dourada, só me pode provocar espanto. Mas não é o Nautilus que me espanta, mas espanta-ME QUE o Nautilus a tenha. O “me” é um dativo de interesse, o “que” uma conjunção integrativa. O Nautilus é quem é. Que eu tenha um óptimo sistema imunológico não faz de mim um grande imunologista. A estrutura rica das realidades, nomeadamente matemática, faz-me admirar a estrutura, não o objecto que é por ela constituída. A amiba nunca fez obra de ciência.

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segunda-feira, 20 de agosto de 2007

The Isle of Innisfree

"Is that real? She couldn't be."

"A fine, soft day in the spring it was when the train pulled into Castletown -- three hours late, as usual -- and himself got off."
Terra e tempo de visões. Nem o milho era transgénico, nem o pano da vergonha cobria o rosto de quem fazia aquilo em que acreditava.
Como diria um dos homens de Innisfree: "He'll regret it 'til his dying day, if ever he lives that long."


"When I drink whiskey, I drink whiskey, and when I drink water, I drink water"

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Meridiano de Sangue


Continuo a minha peregrinação por Cormac McCarthy. «Meridiano de Sangue» é a história negra da expansão americana para Oeste, narrada através da deambulações de um grupo de caçadores de escalpes pela fronteira entre o México e os EUA . É, como seria de esperar, um romance de uma invulgar crueza. «Encontraram os batedores desaparecidos pendurados de cabeça para baixo dos ramos de uma árvore de paloverde enegrecida pelo fogo. Tinham os tendões dos calcanhares trespassados por espigões aguçados de madeira verde e pendiam, lívidos e nus, acima das cinzas frias das brasas onde tinham assado em fogo lento até às cabeças ficarem carbonizadas e os cérebros borbulharem dentro do crânio e o vapor lhes sair pelas narinas a sibilar. Viam-se-lhes as línguas puxadas para fora da boca e presas com paus afiados que as atravessavam de lado a lado e tinham as orelhas cortadas e os torsos rasgados com lascas de sílex até as entranhas lhes penderem sobre o peito
Mas este Meridiano é também um tributo à grandeza desolada do Oeste Selvagem que, dir-se-ia, exerce sobre McCarthy o mesmo fascínio que um dia levou John Ford a fazer dela um personagem omnipresente da sua obra. «Desceram destas paragens por um fundo desfiladeiro,a trotar ruidosamente sobre os pedregulhos, cruzando hiatos de sombra fresca e azul. Na areia seca do leito do arroio havia velhos ossos e cacos de louça pintada e gravados nas rochas por cima deles pictogramas de cavalos e pumas e tartarugas e cavaleiros espanhóis de morrião e broquel, desdenhosos da rocha e do silêncio e do próprio tempo. Alojados em rachas e fissuras, cem pés mais acima, viam-se emaranhados de palha e pedaços de madeira trazidos pela água que em tempos chegara até ali e os cavaleiros ouviam o múrmurio do trovão na lonjura insondável e vigiavam a estreita língua de céu lá no alto em busca de quaisquer sombras prenunciadoras de chuva, calcorreando o espaço entre os flancos apertados da ravina, e as rochas secas e alvas do leito morto do rio eram curvas e macias como ovos misteriosos».
E como se não bastasse, este romance de 85, consegue ainda ser um livro de uma espantosa sensibilidade que, na aridez violenta daquelas paragens, vai despontando de forma quase paradoxal, ora nas deliciosas prelecções nocturnas do Juiz Holden, ora na imensa fragilidade do herói sem nome em cujo rosto de menino «se pode ler o destino do homem».
Decididamente este McCarthy é um caso sério.

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Liberdade geneticamente modificada

Por razões que não vêm ao caso, passei os últimos dias em casa, mais disponível para a televisão. Desde o primeiro minuto que fiquei estupefacto com a vandalização do campo de milho transgénico em Silves. E mais estupefacto ainda com a complacência dos media e, em particular, das televisões. E com a passividade das autoridades e do Governo em particular.
Tive agora oportunidade de visitar, com efeitos retroactivos, o Abrupto e o Bloguítica. Trabalho notável de cidadania que, por estes dias, ali se fez. De resto, como tem sido timbre de ambos, de há muito a esta parte.
Não restam dúvidas de que a blogosfera é hoje um dos suportes da cidadania e da democracia.

A propósito, a luta contra os transgénicos é legítima e a discussão em torno deles é salutar. Mas a invasão da propriedade privada e a destruição de bens alheios não são formas de exercício admissível da liberdade de expressão e da liberdade de manifestação. A mistura da "cara tapada" com a oportuníssima ocorrência de filmagens in loco e com a presença tímida da GNR é que já parecem uma estranha coincidência. Quem avisou os media? Quem chamou a GNR e quando? Que coragem é esta de defender princípios nobres de cara escondida? Quem é que modifica geneticamente a liberdade e nos pretende vendê-la como se fosse "pura" e "lisa"?

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I. La Proporción Áurea, La Historia de Phi, El Número más Sorprendente del Mundo; Mario Livio, ARIEL, 2006


A criança de três anos diz “dois”. Os pais entusiasmados chamam toda a vizinhança, e telefonam à família. A criança é um génio, está demonstrado. De uma só assentada a criança mostra conhecer cálculo infinitesimal, números imaginários, fórmulas de Euler, trigonometria. Com efeito, quem não sabe que o que a criança fez foi integrar a função seno de acordo com a complexa fórmula supra.

Pois é. Mas qualquer aluno com um mês de análise sabe que a formula é de uma constrangedora banalidade sob a sua aparência pomposa. Talvez os mecanismos cerebrais da criança tenham alguma ligação com esta fórmula, quem sabe? Mas de uma coisa podemos ter a certeza. Para dizer “dois” a criança não usou conscientemente nenhum destes instrumentos.

Os historiadores da ciência, e os antropólogos caíram muitas vezes nesta fraude, exactamente no mesmo plano que os especialistas em piramidologia (?), seja ela baseada nas pirâmides de Gizeh, seja nas da América pré-colombiana.

Os exemplos são muitos e a este entusiasmo não escaparam nem mesmo historiadores sérios da ciência. Descobriram (!) que os chineses, ou os bororós, ou quem seja, tinham descoberto há muitos séculos as coisas mais extraordinárias. A Bíblia diz que numa torre cilíndrica o perímetro da base era de 30 côvados e o diâmetro de 10? Logo, os hebreus tinham descoberto o número pi. Etc, etc.

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Salvos pelo FED e pelo BCE?

Os problemas dos mercados bolsistas que estamos a atravessar são demasiadamente complicados para breves palavras. Mas algumas conclusões interessantes se podem já retirar. A mais importante é inegavelmente que as lições da crise de 1929 estão a ser seguidas. O que os dois principais bancos centrais do mundo ocidental – o FED e o BCE – estão a fazer decorre directa e explicitamente dessas lições.

Em 1929, a então recém criada Reserva Federal norte-americana nada fez para ajudar os mercados bolsistas, vítimas de pânico generalizado. Isso agravou a crise financeira, que rapidamente contagiou a economia e, em particular, o emprego. O FED não tinha os meios de que dispõe hoje, mas também seguia uma filosofia diferente, de não intervenção. Isso já não é assim, uma vez que se sabe que às vezes é preciso intervir. Foi por isso que a Reserva Federal injectou milhares de milhões de dólares nos mercados financeiros e, esta manhã, baixou as taxas de juro de referência.

O Banco Central Europeu não ficou atrás. Aliás, o consenso sobre o tipo de orientações a tomar é de tal forma generalizado entre os economistas que este tipo de intervenções nasce espontaneamente dos dois lados do Atlântico. E porventura até no resto do Mundo. A independência do BCE, frente aos governos nacionais ou a Bruxelas, deu nestes últimos dias frutos e dos importantes. É por estes actos que o BCE ganha adeptos junto das opiniões públicas e dos eleitorados, que têm um número cada vez maior de pessoas mais interessadas na estabilidade dos mercados financeiros do que em intervenções neo-keynesianas nas economias. Sarkozy perdeu alguns pontos na sua batalha contra a enorme independência do BCE.

Mas ainda nem tudo está resolvido e há mais para além do que se tem passado ultimamente.

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domingo, 19 de agosto de 2007

Marshalltown, Iowa


Foi concebida, nasceu e casou em Marshalltown, Iowa.

Hoje por hoje, o meu Urgeist. Bonjour tristesse!

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Desabafos de Verão (I)


Começo as minhas férias. Finalmente. Com elas, vem o tempo para desabafos que a pressa dos dias cheios vinha adiando. Quase calando, afinal.

O primeiro chama-se Pontal. Ou, mais exactamente, o horror sentido perante as imagens da mais triste e pindérica decadência a que chegou a política de hoje. Mesmo para quem não se reveja especialmente no registo comicieiro – e confesso que estou entre esses -, o Pontal tem o peso simbólico de ter sido palco de expressivas demonstrações de militância, marcando sucessivas 'rentrées' políticas de um PSD forte e ganhador. Um PSD com inequívoca ambição de poder e obra.
Hoje, o regresso ao Pontal é patético. Feito à medida de pequenos e circunstanciais afrontamentos intestinos, serviu apenas para evidenciar a dura verdade de um partido sem nível, sem soluções e sem horizontes. Do anfitrião-entertainer, aos discursos e às provocações entre candidatos, ficou a certeza de um partido incapaz de olhar o país, de pensar o país, de falar para o país.

Para mim, que creio convictamente que ao PSD caberá (como coube sempre) um papel decisivo na democracia portuguesa e que dele se esperaria hoje a capacidade de refundar o projecto político do centro-direita – inovando no pensamento e no discurso, modernizando nos métodos e refrescando nos protagonismos -, o estado das coisas é dramático. E o Pontal, esse, é mesmo de cortar o coração.


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terça-feira, 14 de agosto de 2007

II. San Benedetto e l'Italia del suo tempo, Luigi Salvatorelli, Editori Laterza, Roma 2007

A questão é a de saber que sementes ele deixou, que deixam marca nos séculos, e ainda hoje nos marcam.

Pensemos numa instituição que assumiu a função de museu, universidade, hospital, centro de investigação, zona de experimentação económica. Centro de excelência de gestão, ponto de difusão de cultura, mecenas das artes, letras e investigação científica, zona de segurança física das pessoas, asilo, planeador e executor de grandes obras... O elenco não tem fim. Qual instituição hoje em dia se pode arrogar de ter esta multiplicidade de funções? Pode-se dizer que na altura mais ninguém o fazia. Ideia falsa, mas aceitemo-la para efeito de argumentação. Mas que alguém o tenha feito, e não tenha deixado despida a sociedade de possibilidades de actuação é facto mais que meritório. E poucas organizações se podem gabar de o ter feito com tanta eficiência e eficácia. Na nossa época nenhuma instituição se pode gabar de tanta multiplicidade de facetas e muito menos de tal grau de sucesso, salvo muita injecção tecnológica que dá aparência de maior virtude. As empresas bem podem tentar motivar os seus trabalhadores, mas não oferecem, pelo menos directamente, um projecto de eternidade.

Em segundo lugar reafirma um dado que é uma constante europeia, a da natureza limitada do poder. A começar pelo seu. O poder limitado do abade (125), tradição romana e cristã, é plenamente assumido na sua regra.

Em terceiro lugar cria uma forma de vida regrada, regrada igualmente pelo tempo. A palavra horário é-nos bastante conhecida e em todo o mundo esta é, para o bem e para o mal, herança beneditina. A racionalização da vida, seja a do militar, seja a do trabalhador, é obtida por via beneditina muitos séculos antes de os Estados ou as empresas se lembrarem de tal coisa.

Em quarto lugar fê-lo através de um “individualismo social” (p-.127). O monge faz parte de uma sociedade mas é para a sua salvação pessoal que lá se encontra. Esta é um marca da Europa. Sociedades civilizadas que esmagam o indivíduo, a História conhece-as muitas. Sociedades que o deixam à solta, indiferentes ao seu semelhante, também disso temos bastos exemplos. Mas este equilíbrio entre a integração social e a finalidade individual é marca que atravessa a cultura europeia até aos nossos dias.

Em quinto lugar instituiu a prudência como ideal religioso. Percebendo que os extremos são apenas um solução fácil – e perigosa quanto aplicada ao comum dos homens – e que este extremo rapidamente faz passar da disposição debochada à ascética, instituiu um sistema de equilíbrio, em que cada qual dá o que pode sob o ponto de vista religioso, desde que certos mínimos sejam cumpridos. É evidente que a prudência (a sophrosinè grega, para simplificar) tem um papel religioso bem mais antigo. Mas conseguir instilá-lo num corpo colectivo não é tarefa simples. Foi acusado de juridismo. Mas basta estudar a sua regra para perceber que tem pouco de jurídico. É antes do mais um guião de prudência, de assentimento equilibrado.

Em sexto lugar restringiu a violência. Numa época que se revelou particularmente violenta e em que o império “romano” (bizantino) fez talvez mais estragos que os bárbaros, conseguiu formar um corpo social em que a violência não era fundante do colectivo. Um dos elementos essenciais do espírito do homem dito moderno, o do corpo tutelado, protegido contra a violência, é em grande parte instituição sua.


Em síntese, mostrou o que só os grandes organizadores da humanidade têm: um profundo conhecimento da natureza humana." A voler fare gli uomini troppo buoni, non si rischi di farli divenire troppo malvagi: che mai: una fabbrica forzata di santi può trasformarsi facilmente in un covo di demoni" (p. 119). Um bom exemplo para as utopias comunista, multicultural, capitalista e outras tantas que pululam na nossa época bastamente analfabeta. Por isso e pode dizer com justiça que inventou uma nova forma de vida (p-.131). Quantos podem dizer o mesmo? E nessa forma de vida fomo-nos habituando a ver as marcas do que começámos a chamar de Europa.


http://www.lastampa.it/speciali/salvatorelli/index.html
http://www.liberonweb.com/asp/libro.asp?ISBN=8842080594
http://usato.unilibro.it/site/result_scrittori.asp?scrittore=Salvatorelli+Luigi&idaff=0
http://medioevo.leonardo.it/blog/studi_e_ricerche/san_benedetto_e_litalia_del_suo_tempo.html
http://www.unilibro.com/find_buy/result_scrittori.asp?scrittore=Salvatorelli+Luigi&idaff=unilibroES
http://www.liberalsocialisti.org/articol.php?id_articol=147







Alexandre Brandão da Veiga

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segunda-feira, 13 de agosto de 2007

I. San Benedetto e l'Italia del suo tempo, Luigi Salvatorelli, Editori Laterza, Roma 2007

Quando vi o então cardeal Ratzinger assumir o nome de Bento XVI apenas me pude sorrir. É sempre difícil adivinhar porque um papa assume um nome. Raras vezes isso é oficialmente explicado (tirando o caso dos papas João Paulo) e mesmo que o seja, as últimas razões que os levam a escolher este e não aquele ficam com ele. Mas que o nome de Bento seja escolhido por um homem com tão vasto conhecimento da cultura europeia apenas poderia ter um significado: escolheu o patrono da Europa.

São Bento pertence a um vasto conjunto de santos cujo nome não foi esquecido, mas que suscita fraca devoção hoje em dia. Em boa verdade trata-se de uma personagem cuja obra suscitou sempre mais entusiasmo que a própria pessoa. Na sua época a tipologia monacal já se encontrava muito desenvolvida, e já existam múltiplas tradições por toda a cristandade. No Oriente as regras de São Pacómio e de São Basílio imperavam. No Ocidente uma multiplicidade de experiências ocorria.

O que é de espantar é que pertença a uma época que já tinha experimentado muita da diversidade que se foi encontrando durante muitos séculos na Europa. As múltiplas modalidades de vida monacal já haviam antes sido experimentadas (cenobitas, eremitas, giróvagos etc.). Os cónegos regrantes já no fim do século IV era conhecidos com o bispo Eusebio di Vercelli (p. 33).

São Bento não parte do nada. Mais revolucionário e deixando obra bem mais perene que as recentes expressões do modernismo, pode fazê-lo exactamente porque parte de terreno sólido. A cultura clássica ainda estava presente e cultura cristã era já muito rica. O dogma estava estabelecido nos seus traços principais, a diversidade de experiência de vida que iria marcar a Europa já estava em formação.

A questão é a de saber porque é ele o patrono da Europa. Nada mais, nada menos, porque deu forma consistente ao movimento monacal. Que importância pode ter isso, pergunta-se o transeunte. Parece-lhe uma referência “apenas” histórica.

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sábado, 11 de agosto de 2007

Entretanto, algures nos Açores...


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Comentário a «O Lugar da Democracia» em Abusiva Forma de «Post»

A citação feita pelo João Luís Ferreira no seu «post», «O Lugar da Democracia», do tal Ministro que afirmava, na televisão, a propósito duma luta de gangs, tal não dever ser possível suceder em democracia, afigura-se-me espelhar bem a confusão a que chegou o dito «pensamento político» da actualidade em resultado exactamente da demissão ou recusa de pensar além do mero «pensamento ingénuo», o pensamento que a todos e a cada um dado à nascença, a todos imediatamente acessível, daí resultando também a não menos actual incapacidade de correctamente entender já sequer o real significado de um conceito tão simples como o de «democracia»: o governo do povo, da maioria, como uma das três formas puras que os regimes políticos podem assumir. Tão só isto, apenas isto e nada mais do que isto. E não obstante, hoje, um termo tão simples como «democracia», parece ser tido como significando mais, muito mais, do que uma simples forma de regime político para assumir ou encarnar mesmo a mais pura, suprema e absoluta das virtudes. Sim, a ninguém, hoje, importa saber de outrem se firme é em sua prudência, em sua temperança, fortaleza, coragem, como tampouco, e menos ainda, em sua fé, esperança ou caridade. Uma única e sempre a mesma preocupação parece a todos obsediar: quão democrata é?

Sem ironia, poder-se-á dizer no entanto que, na actual situação mental do mundo, é bem compreensível a razão da afirmação do dito Ministro: se a democracia supõe a existência de um povo composto de «democratas»; se «democrata» significa, antes de mais e acima de tudo, encarnar, de algum modo, a perfeita virtude, não podendo os actos de quem encarna a perfeita virtude virtuosos deixarem de ser, necessariamente virtuosa não poderá igualmente deixar de ser, por maioria de razão, a vida em «democracia», inaceitáveis se afiguram, na realidade, tais actos, tão contrários a toda a «democrática» existência.

Na verdade, não nos podemos esquecer, numa primeira instância, de se ter constituído, desde sempre, como um dos principais motivos de defesa e exaltação da «democracia», o facto de ser entendido e aceite como o único regime político a permitir, a qualquer momento, a destituição dos actuais governantes e uma consequente transição de poder por meios pacíficos, eliminando, por extensão, a violência como primeira e última ratio de resolução de conflitos. Aliás, tão eminentes e celebradas figuras como um Sir Karl Popper não encontram outros argumentos de defesa da «democracia» sobre todos os restantes regimes senão esses mesmos: possibilidade de destituição dos actuais governantes, a todo o momento, por meios pacíficos, transição pacífica do poder e eliminação da violência como primeira e última ratio de resolução de conflitos.

Não é garantido que assim seja, como é evidente, como não menos abusivo será ser sempre identificar a monarquia com tirania e a aristocracia com oligarquia, todavia, acreditando, como hoje se acredita, constituir a «democracia» exactamente isso, possibilidade de destituição dos actuais governantes, a todo o momento, por meios pacíficos, transição pacífica do poder e eliminação da violência como primeira e última ratio de resolução de conflitos, também com facilidade se compreende o alto valor que lhe é atribuído, sobretudo quando, mesmo se apenas por breves instantes, se rememora as sucessivas e terríveis «revoluções» ocorridas na História dos povos desde os dias da dita gloriosa Revolução Francesa até hoje.

Assim, o «pensamento ingénuo», confundindo tudo, como lhe é próprio e característico, princípios, meios e fins, decorrente também de um processo psicológico muito comum que podemos designar como «enviezamento holístico», acaba por transferir e atribuir à «democracia» qualidades e virtudes que lhe não são próprias, com a agravante, além de lhe atribuir todas as virtudes, tudo isto ser, ainda por cima, incentivado e reforçado pelos lugares comuns típicos do ciclo feminino-ilumininista-socialista-positivista-marxista-pragmatista-relativista que estamos vivendo e em que são figuras de proa, Marx, Darwin, Nietzsche e Freud.

Numa tal perspectiva, está, sem dúvida, o tal Ministro «democraticamente» certo. Ingenuamente? Talvez, mas certo, no enquadramento actual. A questão, o problema, a dificuldade, não está no Ministro, está nos desvairados tempos que estamos vivendo.

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sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Breve apontamento sobre a entrevista de Pinto da Costa à SIC


Da entrevista de Jorge Nuno Pinto da Costa à SIC não retive o conteúdo. Confesso que não fui sequer capaz de ouvir muito - não me interessa nada.
Mas registei o clima. O charme distribuído pelos bastidores, os sorrisos generalizadamente rendidos dos circunstantes (de Ana Lourenço e Reinaldo Serrano aos câmeras ou aos técnicos de som…), o tom ameno das conversas, a indisfarçável atitude de proximidade, simpatia e, mesmo, aparente admiração. Mais: registei o facto de tudo isso ter sido objecto de circunstanciada reportagem, repetida à saciedade nos noticiários subsequentes, por forma a que não escapasse ao mais desatento telespectador…
Em ordens jurídicas mais desenvolvidas do que a nossa, ciências jurídicas mais sofisticadas do que a nossa dedicam tempo e atenção ao estudo do ambiente que envolve as decisões judiciais. E fazem-no por reconhecerem nesse ambiente uma variável determinante do sentido e alcance da prática jurisdicional.
Por cá, não. Para o bem e para o mal, ainda não. Mas que las hay…

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quinta-feira, 9 de agosto de 2007

IV. O mérito

Mais outro vício, porque o que é expulso por uma porta aparece por uma janela. As teorias racistas apenas poderiam nascer em solo anti-aristocrático, como se pode ver pelo fenómeno nazi e fascista.

Se os exemplos históricos de meritocracia estão bem longe da democracia não é por acaso. É que a que se atribuiu mérito, quem atribui o mérito, e a quem se atribui mérito são mais factores de uma cultura que de um regime político. E quem detém esse mérito tem-no sempre em grande medida por causas que não escolheu: uma aptidão, uma inteligência, uma visão, uma atitude perante a vida cuja genética e educação desenvolveram.

Porque aqui entra a terceira faceta da meritocracia. A primeira está no que cada um leva, a sua genética, a sua educação. No segunda o que cada um recebe, a valoração que a sociedade faz dos seus méritos. A terceira faceta é a do sucesso. A meritocracia tende a adular o sucesso, seja o que isto signifique. E este lado institui nas sociedades (por mais democráticas que se digam) um factor de crueldade. Por exclusão de partes a grande maioria das pessoas não acedem aos pontos mais altos do sucesso, são escalonadas na meritocracia, por critérios que já vimos podem ser os mais variados. Que uma sociedade tenha forçosamente elementos de crueldade é inevitável. Que se diga que, sendo o mérito inerente à democracia, a democracia é geradora desta crueldade já a carrega de um outro peso. Os excluídos do mérito seriam os desclassificados da democracia. Ora se para algo existe a democracia é para ponderar as desclassificações, não para as instituir.

Que a democracia recolha ideias de mérito é inevitável, apenas porque todas as culturas sempre viveram de ideias de mérito. Que se tenha a ilusão de que esta é uma figura democrática apenas pode resultar de um etnocentrismo europeísta e modernista que julga que vivemos no paradigma da História e que o solo que pisamos é o solo natural da humanidade. Quando este vale apenas para um tempo e para um espaço. A diversidade humana tem a maravilha de ser infinitamente mais rica que essa ilusão.




Alexandre Brandão da Veiga

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Sic transit gloria mundi

Choca-me de sobremaneira a violação do segredo de justiça no caso Maddie. Mas choca-me ainda mais o silêncio dos "media" e dos "profissionais" quanto a essa violação. Todos os dias a Polícia Judiciária parece alimentar novos cenários, todos eles com imenso "piri-piri" mediático. Ou os órgãos de comunicação social - em delírio de fome noticiosa de Verão - mentem ou a polícia não honra os seus compromissos. Tudo é ainda mais impressionante quando substantivamente as notícias andam à volta do círculo íntimo da criança. Pobre país - ou pobre mundo - este em que se perdeu por completo sentido da dignidade pessoal e institucional.

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quarta-feira, 8 de agosto de 2007

III. O mérito

Uma cultura pode dar imenso valor ao mérito (os príncipes da Renascença são disso bom exemplo) sem ser democrática, e muitas democracias menosprezam muitas formas de mérito (para simplificar, nos países anglo-saxónicos, os pensadores, artistas e escritores são menos valorizados, nos países latinos o mesmo se passa com os cientistas e homens de negócios). É a Inglaterra menos democrática por atribuir menos importância pública aos seus escritores e pensadores ou a França menos democrática por esquecer os seus imensos cientistas?

As democracias recolhem a ideia de mérito, porque todos os regimes recolhem a ideia de mérito. Cada um o faz de forma diversa. Nada mais trivial que isto. A Inglaterra nada democrática do tempo de Haendel dá tanta importância aos seus cientistas quanto a Inglaterra um pouco mais democrática do tempo de Eduardo VII. A França de Luiz XIV dá uma importância aos escritores igualmente grande à que uma França bem mais democrática de De Gaulle.

A ideia de mérito pessoal cheira a democrática porque afasta uma determinada ideia aristocrática, tipicamente europeia, ligada à hereditariedade. Nem todos os sistemas aristocratizantes são hereditários, no entanto. Fora da Europa, o império otomano e a China do mandarinato mostram bem o sistema contrário. Na China aliás a inversão era total. Nobilitavam-se os antepassados, não os descendentes. Ligar a ideia de mérito à democracia é assim ir beber ao mito da Revolução Francesa e não olhar a História de frente.

Relacionar democracia com meritocracia é uma ideia que apenas poderia passar na cabeça de um europeu, que associa (associação histórica algo apressada sob o ponto de vista estrutural) aristocracia e hereditariedade. E que vive de um certo mito, tanto dado pela Revolução Industrial inglesa como pela Revolução Francesa, de que a modernidade se faz do apagamento da hereditariedade.

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terça-feira, 7 de agosto de 2007

TAP e FCP: um comentário incidental

Em plena silly season, os meios de comunicação resolveram dar um assinalável destaque às atribulações por que passou o vôo Amesterdão-Porto-Lisboa, que acabou por ser um simples vôo directo Amesterdão-Lisboa. Vôo esse que, por entre vicissitudes várias em terra e no ar, se prolongou por dez horas.
O caso chamou-me a atenção, não enquanto adepto portista, mas enquanto utilizador frequente da TAP e, em especial, do "corredor da discórdia" Porto-Lisboa, Lisboa-Porto. E devo dizer, para que conste, que, de há vários meses a esta parte, não há pior serviço que o da TAP. Não há um vôo no horário. Foi instituído o princípio de que o avião só arranca quando estiver cheio (ou, como sucedeu no referido caso, mais que cheio). Não há mala que se encontre. As portas de embarque mudam. Os autocarros de transporte de passageiros dentro do aeroporto ficam horas parados, com todos os viajantes dentro.
Dizem que os resultados da TAP têm melhorado, embora haja previsões de uma inflexão séria a breve prazo. Mas têm melhorado à custa de um serviço de péssimo nível. Já não se fala em luxos; já nem se cogita em qualidade. Só se pede respeito: respeito pelo passageiro, que é cliente e que é cidadão. Mas, nesta como noutras matérias, não há respeito.

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II. O mérito

Em primeiro lugar, a que se atribui mérito? À coragem guerreira, à inteligência, à capacidade estratégica para os negócios, à profundidade mística? Por uma ou por outra via facilmente vemos que existe em todas as qualidades a que atribuímos mérito um elemento de esforço pessoal. É inegável. Mas os dados de base não nos foram dados.

Se o mérito for uma qualidade democrática, porque razão quem tem uma genética de maior inteligência, estando por isso favorecido pelo destino, pode ter mais mérito que o aluno que se esforçou duas vezes mais mas nunca há-de perceber o mais elementar teorema de topologia? A imensa maioria das pessoas que estudaram muito mais matemática que Leibniz não lhe poderão chegar nunca aos calcanhares.

Muitas pessoas têm capacidade estratégica para os negócios, mas só uma ou mais gerações depois as suas ideias vencem. Da mesma forma o trabalho místico de Nietzsche ou de Mestre Erckhart levou gerações a ser valorizado. Bach na sua geração era considerado apenas o sétimo melhor músico, muito depois de Telemann. Porquê o imenso erudito, fruto de um trabalho e esforço titânico, que era o padre Martini, que ensinou Mozart, terá menos mérito que o próprio Mozart? Não fora a divina inspiração do segundo, sem lhe retirar o mérito do trabalho, seria muito inferior a Martini. E no entanto...

Entramos aqui no segundo aspecto nada democrático do mérito. Que tipos de mérito são adulados por uma sociedade? Quem estabelece o grau de mérito? Quantas vezes não vimos grandes criadores e pensadores serem desprezados? Para a sociedade do seu tempo Camões teve menos mérito e menor reconhecimento que outros poetastros muito mais bem instalados na vida que ele.

Não, o mérito não é uma qualidade democrática, porque as sociedades não são nunca plenamente democráticas. Vivem de um imenso lastro que aceitam sem muitas vezes dele terem consciência e acumulam historicamente outra tanta bagagem. A democracia portuguesa, a japonesa e a neozelandesa são muito diferentes, dão diverso valor ao mérito, escolhem diversas versões do mérito, não por serem democracias diversas enquanto tal, mas por serem culturas diferentes.

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O futuro do WSJ

A compra do WSJ pelo Sr. Murdoch (sobre a qual José Manuel Fernandes assina hoje um artigo notável no Público) é um enorme acontecimento no panorama mediático mundial. Arrisco-me mesmo a dizer que, nos próximos meses, o WSJ vai ser um laboratório de teste para as grandes questões com que hoje se depara a imprensa. A saber:
- Qual o efectivo valor da «qualidade» (leia-se rigor e isenção na informação, credibilidade, «expertise», capacidade de investigação) na imprensa? Continua válido o modelo dos jornais ditos de referência que apostam nesses valores para encontrar um mercado (ou um nicho de mercado) que os tornam projectos editoriais rentáveis e de sucesso? Existe ainda um mercado para a qualidade? A credibilidade compensa, quanto mais não seja a prazo?
- Qual o efectivo valor da independência? Continua actual a máxima segundo a qual a independência editorial dos grandes jornais face aos seus accionistas, anunciantes e demais «stakeholders» é um garante da sua credibilidade e sobrevivência a prazo?
- É possível continuar a compatibilizar rentabilidade e qualidade (e assim assegurar a independência editorial) num mercado com cada vez menos índices de leitura e ameaçado por novos hábitos de consumo de media?
- E é possível fazer «migrar» estes conteúdos e este modelo para novas plataformas de distribuição? Os jornais de referência, devidamente adaptados ao novo meio, têm um futruro na Internet?
- Continua a fazer sentido o modelo «dualista» do WSJ de separar completamente a informação da opinião, pugnando por notícias factuais e inatacáveis do ponto de vista deontológico e uma opinião com alma e com «causas» conhecidas de todos?
No meu intimo espero que, a bem ou a mal, o caso do WSJ venha a dar razão a todos quantos os que, como eu, acreditam não apenas na sobrevivência deste modelo mas até na sua crescente importância num mundo de «overload» informativo onde são cada vez mais necessários «portos de abrigo» de confiança com capacidade para organizar e prioritizar uma informação dispersa e muitas vezes sem rosto. No meu intimo espero que o Sr. Murdoch saiba perceber a diferença fundamental entre o WSJ e o New York Post ou o Sun. Ou que, não a percebendo, o mercado saiba castigar uma eventual deriva do WSJ.
Mas a última palavra pertencerá, de facto, ao mercado. E nada do que se passar nos distantes EUA será indiferente para o futuro da imprensa em Portugal. Sobretudo num momento em que no mercado se confrontam projectos que apostam claramente no modelo dos jornais de referência (o Nuno Lobo Antunes dirá que nem sempre o fazem com sucesso, eu respondo com a garantia que tentam todos os dias fazê-lo com seriedade e empenho) com projectos que cedem de forma evidente à tentação tabloidizante. Por cá os sinais são animadores (pelo menos no que diz respeito à imprensa semanal). Será também assim nos EUA? Estou confiante que assim será. A bem das nossas democracias liberais.
PS:1 Talvez seja escusada mas aqui fica a declaração de interesses: não escrevo como administrador do Expresso mas também não tenho nenhuma presunção de isenção nesta matéria.
PS2: A «conectividade» não é, infelizmente, o forte da Ilha das Flores. O meu silêncio nos próximos dias tem essa desculpa. E terá, para mim, larguíssimas compensações...

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segunda-feira, 6 de agosto de 2007

A Europa dos pobres

Às vezes dou por mim como sendo a única pessoa que neste País ainda fala dos Fundos de Coesão da União Europeia (ver post anterior a este). Faço isso porque a teoria económica e alguns trabalhos empíricos me convenceram sobre a capacidade dos fundos para ajudar o crescimento dos países mais pobres da EU. Na verdade, apenas conheço estudos aplicados aos casos da Irlanda, da Grécia e da Espanha, onde se conclui que o impacto dos fundos foi amplamente positivo. Não me lembro de nenhum trabalho sobre os efeitos dos fundos de coesão para o caso português embora, indirectamente, Alfredo Marvão Pereira e associados apontem para efeitos positivos do investimento público e por isso também dos fundos europeus.

Como tenho sempre dúvidas e frequentemente me engano, dou por mim preocupado em perceber se não estou perante uma obsessão minha e se o meu país é o único que não consegue beneficiar dos ditos fundos. Mas a verdade é que é mesmo difícil perceber a pouca importância que é dada por cá ao assunto. Bem sei que há muitos economistas que pensam que não se devem dar ajudas, uma vez que isso distorce o mercado. Eu também penso assim, regra geral, mas o caso da União Europeia é diferente, uma vez que, para dizê-lo em breve palavras, os fundos servem de contrapartida ao alargamento do mercado europeu.

Hoje fiquei todavia contente ao ler a coluna “Charlemagne” no Economist desta semana sobre, precisamente, os fundos de coesão. Aí se diz: “there are sound economic and political arguments for investing in backward parts of such open economic zones. EU projects in poor neighbourhoods are notoriously prone to corruption and waste, but the risks are matched by high rates of return”. E continua dizendo que esses investimentos ajudam a criar novos mercados, novos consumidores, a estabilizar democracias frágeis e a limitar o risco de migrações massivas dentro da União. Bingo! Esta citação é importante tratando-se de uma coluna de opinião que é geralmente céptica relativamente aos efeitos de políticas públicas.

Este tema é importante: haver uma opinião pública conhecedora das vantagens dos fundos de coesão pode levar a que o Governo nacional dê mais importância aos fundos nas conversações com Bruxelas e, por essa via, manter ou aumentar o fluxo das ajudas.

Os últimos dez anos assistiram à diminuição do ritmo de crescimento da economia portuguesa. Mas isso não foi por causa dos fundos. Foi, isso sim – é a minha principal hipótese ainda não totalmente confirmada empiricamente –, porque houve um aumento do nível de abertura da economia portuguesa sem contrapartida na intensidade das ajudas.

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Lealdade, Fidelidade e Mérito

Um dos nossos problemas é termos transformado aquilo que pode ser uma virtude privada (a fidelidade) num critério de organização social. Não se deve confundir a lealdade (que é uma virtude pública) com a fidelidade (uma virtude privada que se transforma num vício quando aplicada no domínio público). A lealdade admite a discordância e promove o mérito. A fidelidade impõe a subserviência e dissemina a mediocridade. E, já agora, talvez seja bom recordar aqueles que promovem a fidelidade que ela não deve ser confundida com amor… Onde há amor pode esperar-se fidelidade mas nem sempre da existência de fidelidade se pode deduzir a existência de amor….

Vem isto a propósito dos posts anteriores que me trouxeram à memória (perdoem-me o egocentrismo bloguista…) um texto dos meus tempos de cronista no DN. Intitulava-se Fidelidade e Mérito e contrapunha dois modelos de organização da nossa sociedade: um assente numa promoção da fidelidade (dar preferência aos que "fazem parte de nós") o outro numa lógica de reconhecimento do mérito (premiando os melhores). Não vou, no entanto, repetir aqui esse texto, que reconhecendo certos méritos à fidelidade (promove a coesão e solidariedade dentro do grupo e é mais igualitária), procurava demonstrar que (independentemente de outros juízos éticos) a fidelidade se traduz na disseminação de uma cultura de subserviência e repetição, contrária à inovação e criadora de uma espécie de consanguinidade social, cultural e política que, a longo prazo, atrofia qualquer sociedade e o seu potencial de desenvolvimento. Outra questão é o que é exactamente o mérito (a questão suscitada pelo post do Alexandre talvez não seja tanto sobre a relevância do mérito mas sim soube diferentes tipos de mérito e de formas de o determinar)..

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I. O mérito

Existe uma ilusão, a de se considerar que o mérito é uma instituição democrática. Não é assim.

A primeira democracia, a ateniense (deixemos esta premissa na sua nua simplicidade) baseava-se sobretudo no acaso, o sorteio, para a escolha dos representantes. O mérito era deixado a apenas algumas funções o de natureza técnica e militar.

Ainda hoje em dia, e estruturalmente, a democracia baseia-se na escolha pelo povo. Será que esta escolha tem algo a ver com o mérito? Não haverá pessoas de maior mérito muitas vezes em pequenos partidos que não são escolhidos apenas porque pertencem a pequenos partidos? A própria escolha democrática se opõe necessariamente à ideia de mérito. Gramsci ou Berlinguer eram bem maiores na perspectiva do serviço público que Berlusconi e nunca tiveram o seu poder.

Quais são os exemplos históricos de meritocracia? O sistema napoleónico, com as Grandes Ecoles, sem dúvida. O sistema de mandarinato na China. O vizirato turco. E para culminar o elenco, o sistema de promoções das SS, profundamente anti-aristocrático, desejando subverter os valores burgueses, os títulos (nem o Reichsführer-SS Himmler podia ser tratado por Herr).

Que os sistemas de meritocracia pura sejam tudo menos democráticos não nos pode fazer espantar. Há boas razões estruturais para que assim seja.

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domingo, 5 de agosto de 2007

A propósito do ‘caso Dalila Rodrigues’

Quase tudo foi escrito e dito. Tentei ler e ouvir. Até as derivações inusitadas de alguma opinião que me habituei a considerar e respeitar…
Por mim, em rigor, não tenho nada de decisivo a acrescentar sobre o caso. Não conheço toda a história, não conheço os pormenores, não conheço as pessoas. Poderia, evidentemente, raciocinar com base na minha própria pré-compreensão dos factos, assumindo as premissas de que partiria. Desde logo, a presunção legítima de não tomar uma respeitada professora catedrática, com nome, obra e carreira, por pessoa imatura, leviana e irresponsável, capaz de desrespeitar, com ligeireza, e movida por uma qualquer ânsia de protagonismo, o quadro de actuação institucional aplicável ao exercício das suas funções. Como também a presunção, igualmente legítima, de reconhecer no actual Governo e na Ministra da Cultura uma investida metódica contra aqueles que não identificam como instrumentos obedientes e anódinos das suas políticas e do seu modo de estar na vida pública. Poderia, mas não vou fazê-lo.
É claro que estou profundamente convencida de que o afastamento de Dalila Rodrigues é uma perda imensa para o Museu Nacional de Arte Antiga e para a nossa prática museológica. É claro que vejo neste caso mais uma trágica intervenção da Ministra da Cultura, depois de ter sacrificado o Centro Cultural de Belém às conveniências do Comendador Berardo e de anunciar vir a privilegiar o fogacho constituído pelo acordo com o Ermitage à construção de soluções sérias para refundar (e sanear) a rede de museus nacionais. Mas, muito mais do que isso, interessa-me o fundo da questão, o que aqui é subliminar e profundo. Mais do que o caso, interessa-me o que se pode perceber e discutir a pretexto dele.
Afinal, o real problema foi a evidência de se estar perante alguém com uma opinião sobre as coisas. Uma opinião sobre as suas funções e o sentido do que fazia. Pior, alguém capaz de expor essa opinião e de se bater por ela. Com coragem, com frontalidade e em voz alta (desgraçadamente para o Governo, e ao contrário do que foi escrito por alguns, sem quebra dos deveres de lealdade ou de obediência, já que a dita opinião surgiu no quadro da discussão formal de regimes orgânicos e modelos de gestão, sempre referenciada à defesa dos interesses do MNAA).
O pecado foi, portanto, esse. Dalila Rodrigues deveria ter olhado para o seu mandato como para um emprego. Ou um tacho. Pacato, discreto, silencioso, resignado, agradecido. Um emprego ou um tacho sossegados, bem comportados e nada mais. Nunca deveria ter ousado um projecto. Jamais uma visão. Nunca deveria ter-se imposto objectivos. E nunca, nunca poderia ter tido o topete de propor um caminho para lá chegar…
E este é o nosso problema. Muito mais sério do que geralmente se pensa, porque profundamente entranhado no nosso modo de estar e de pensar.
Nós não educamos – e não fomos educados – para o pensamento crítico. Culturalmente, não valorizamos o argumento ou a discussão das ideias. Em paralelo, e por decorrência, não promovemos o confronto, o debate, a dialéctica da diversidade. Consequentemente, sem darmos por isso, não nos formamos na defesa veemente de coisa nenhuma. E, ao mesmo tempo, não aprendemos a assumir responsavelmente os êxitos e os fracassos a que tenhamos dado causa.
O estilo ‘português suave’ vem de há muito. E faz-se de pequenino, em cada um de nós. Aliás, cedo se descobrem os talentos deste caldo luso: o menino que se senta na primeira fila e dá graxa ao professor, o menino que não empresta a bola, o menino queixinhas, o menino sonso, o menino intriguista, o menino mentiroso, o menino da mamã (claro que há meninas para cada um dos ditos meninos, algumas mesmo muito promissoras…). Estes meninos encantadores, de geração em geração penhor do país que somos, costumam ser adultos bem enquadrados e sucedidos: singram nas empresas, na função pública, na política, na vida em geral. O segredo do êxito é o seu perfil, subserviente, disponível, calado, passivo, elástico. Os que chegam mais longe são, em princípio, os mais hábeis nas artes da dissimulação e da manipulação, sempre adequadamente tergiversantes, envolventes, imprescindíveis e dúcteis. De entre todos, destacam-se os bajuladores e sabujos a quem estão reservadas as mais cobiçadas glórias mundanas. Estão por todo o lado. Em cada vez maior número e com um sucesso crescente. O sinal é inequívoco: é esta gente que se quer, é esta a gente que a sociedade reconhece e premeia.
O regime também. Por isso, os convites para o exercício de cargos públicos dirigidos a pessoas de excelência, em nome dessa excelência, devem ser entendidos nos seus devidos termos, isto é, numa lógica de pura instrumentalização. Não se espera – e não se admite – que tenham opinião ou projecto. Contudo, porque são quem são, assume-se subliminarmente que dirão o que for necessário dizer e, portanto, que se nada disserem é porque nada haveria para ser dito. Ou seja, impõe-se-lhes o silêncio para, depois, se retirar uma leitura desse silêncio. E, evidentemente, decorrendo do silêncio um aval tácito das políticas, credibiliza-se o sistema. Reconheça-se que não está mal pensado…
O pior é mesmo o país. Na iniciativa privada e, por maioria de razão, no serviço público, Portugal como projecto precisa de gente capaz de opinião. E precisa do exercício livre e responsável do direito à opinião. Senão, será tudo apenas uma espécie de…

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O Euro de Sarkozy

Porque é que Sarkozy fala agora do governo económico do Euro? Por ser francês, dizem alguns, querendo com isso implicar que naquele pais o Estado e o centralismo económico prevalecem sempre. Mas, então, porque é que Chirac não trouxe esse tema para a agenda? O paradoxo é resolvido, penso eu, se for tido em consideração que o que o novo Presidente francês quer de facto é relançar o aprofundamento da integração europeia e que isso passa por lançar a ideia do governo económico europeu. Sarkozy, aliás, logo no dia seguinte à eleição, mostrou a sua faceta europeísta ao revelar que dava mais importância ao novo Tratado a 27 do que à forma como ele deveria ser ratificado. Mas vejamos algumas destas questões por partes.

A unificação das moedas que hoje fazem o Euro resultou acima de tudo da preocupação em melhor controlar definitivamente as taxas de câmbio num regime de liberalização dos mercados de capitais. Tratou-se de uma medida tipicamente intervencionista e foi por isso que nasceu com o apoio da França e da Alemanha, dois dos Estados mais intervencionistas da Europa. O Euro não recebeu inicialmente o apoio da Grã-Bretanha. Todavia, uma vez que veio contribuir para a liberalização dos mercados de capitais na esfera internacional e, particularmente, dentro da União Europeia, a nova moeda acabou por ter o apoio de Margaret Thatcher.

A União Económica Monetária coroou-se de êxito, como se pode ver pelo facto de o Euro se ter valorizado grandemente, em relação ao dólar. Essa valorização não foi só mérito da nova moeda, mas também uma consequência do estado da economia norte-americana, fortemente endividada perante o exterior, por causa, entre outras coisas, da Guerra do Iraque (note-se a analogia: a Guerra do Vietname foi causa directa do fim do sistema de Bretton Woods, em 1971). Para o êxito do Euro foi igualmente necessário o forte controle da inflação por parte do Banco Central Europeu e o Pacto de Estabilidade e Crescimento que obrigou os países aderentes a comportarem-se bem do ponto de vista da estabilidade orçamental.

Assim, os governos nacionais do Euro levaram os últimos 15 anos a tudo fazer para que a nova moeda fosse um êxito e conseguiram-no. Uma vez conseguida a afirmação do Euro nos mercados internacionais, abriu-se a possibilidade de seguir em frente e é disso que Sarkozy nos fala agora. A construção europeia é tipicamente feita por etapas. Ultrapassada a década do Euro, seria de esperar que algum “motor” da Europa liderasse o caminho para o passo seguinte. Ao falar do governo económico, Sarkozy está apenas a dizer que é preciso fazer algo mais do que dormir sobre os louros do Euro. Acontece que este passo está a ser dado pela França e isso é importante, mas não pelas razões comummente aduzidas.

O que se passa então? Passa-se que a zona do Euro não é uma zona monetária óptima, para usar uma expressão técnica. Com efeito, as economias dos países em causa ainda não estão suficientemente integradas e a nova moeda não as afecta do mesmo modo. Por razões que têm que ver com o trauma da hiper-inflação a que só Hitler pôs fim, e com a estrutura federal de Governo, a Alemanha seguiu desde a segunda Guerra Mundial, persistentemente, políticas de taxas de câmbio relativamente elevadas. Isso implicou o desenvolvimento de uma estrutura económica específica. A Alemanha há muito que é um grande exportador de produtos industriais com vantagens competitivas em muitos sectores. À Alemanha não importa muito que o Euro esteja com um preço elevado. A situação francesa é diferente e muitos agentes económicos beneficiariam de uma moeda menos forte. A Alemanha é também mais dependente da importação de petróleo do que a França, e as taxas de câmbios elevadas permitem-lhe poupar no preço do petróleo, cotado em dólares. A França é mais dependente da energia atómica nacional (42% do consumo total de energia tinha origem nuclear, em 2004, contra 12% na Alemanha). Outro exemplo: a França depende mais do que a Alemanha do sector do turismo, sector que sofre com moedas valorizadas.

Sarkozy não quer acabar com o Euro. Ao contrário, quer que a moeda única tenha futuro. Por isso pede uma coisa: que o valor do Euro nos mercados internacionais não suba demasiado, aproximando-se dos interesses da economia francesa. Para tal, pede uma menor subida das taxas de juro por parte do Banco Central Europeu. Ou melhor, no fundo pede que o BCE seja um pouco menos independente e se aproxime porventura dos níveis de dependência dos congéneres nos EUA e no Reino Unido.

O comércio livre, os orçamentos públicos equilibrados e a flexibilização dos mercados do trabalho e financeiros são condições necessárias, embora não suficientes, para melhorar o ritmo de crescimento económico na Europa. Mas essas condições não caem do céu. São precisos governos (não confundir com Estados) fortes para que elas se desenvolvam. Um pouco mais de governo económico da Europa podia ser uma contribuição importante.

E, para Portugal, o que convém mais? Bem, deve dizer-se que Portugal está muito distante dessa discussão pois um pequeno ajuste do Euro de pouco serviria, uma vez que o défice de competitividade nacional é muito grande. Mas Portugal pode beneficiar da discussão em torno do governo económico europeu, se isso implicar a regresso das preocupações directas com o estado das economias europeias. Há muito que muitos perceberam que não basta olhar para o défice público para se resolverem os problemas das economias mais atrasadas da Europa. Sendo assim, podia ser vantajoso que o governo português procurasse que o tal governo económico europeu tivesse em conta a necessidade do reforço das políticas de coesão.

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Ensino

Quando em férias, há uns dias, li de relance um debate neste blog em que a certa altura o Nuno Lobo Antunes dava a sua concordância com a frase, tornada ditado popular, que diz que “quem sabe faz, quem não sabe ensina”. Na altura não tive tempo para reagir e agora apetecia-me discordar dessa ideia.

Ensinar é obviamente uma ocupação importantíssima e muito do que cada um de nós é decorre da aprendizagem ao longo dos vários ciclos de ensino. Dou o meu exemplo: porque tive um óptimo professor de Matemática no Liceu, consegui fazer um curso de Economia com maior facilidade pois essa disciplina nunca foi para mim um bicho-de-sete-cabeças. Porque não tive praticamente educação musical (ninguém a teve na altura) e tive professores péssimos de desenho, sou um zero-à-esquerda nessas matérias. Talvez com uma análise aprofundada mudasse de ideias sobre isto, mas por agora é essa a minha impressão. E consigo ver outras formas de a confirmar. Mais um exemplo: os poucos alunos de mestrado que me passam pelas mãos distinguem-se claramente por duas coisas: pelas médias de licenciatura que trazem com eles (o que mostra que as avaliações nas universidades portuguesas tendem a ser fiáveis); e pelas faculdades de origem (o que prova que há formas diferentes de ensinar, com resultados também diferentes).

A prova que o Nuno às tantas dá, de que nos EUA se pergunta onde treinaste mas não onde aprendeste, pode ser uma verdade apenas parcial. Porquê? – Porque o sítio onde se aprende pode ser crucial para se ir parar a um bom sitio para o treino. Aliás, de outro modo não se entenderia que houvesse quem investisse 50 mil dólares ou mais para tirar um curso de medicina numa Universidade da Ivy League.

Falta muita prática ao ensino feito em Portugal e isso deve ser apontado como um enorme defeito – mas também aqui se deve recordar que isso na maior parte das vezes acontece por falta de meios e não por questões de princípio. Comparar Portugal com a Ivy League é necessariamente injusto e é preciso recordar que nos EUA há muitas universidades muito fracotas.

Ao reler este texto, pareceu-me que estava a defender a Universidade portuguesa. Não: ela é péssima e tem de mudar muito. Mas convém fazer diagnósticos acertados para encontrar as curas certas.

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A estrada


Há anos que tenho discussões verdadeiramente épicas com o meu amigo Domingos Amaral. Não concordamos em nada. Do Benfica ao cinema, da política à música, da literatura a um alegado desnível permanente que ele jura existir entre os oceanos Atlântico e Pacífico. Se ele diz branco eu digo preto, se eu aplaudo, ele apupa, e aí por diante. É dessa inesgotável capacidade de discordância, e da imensa tolerância que a acompanha que é, aliás, feita a nossa amizade.

Pois bem não há regra sem excepção. O Domingos recomendou-me o último romance de Cormac Mc Carthy e eu, para poder contrariá-lo, lá ataquei o livro. Mas, surpresa das surpresas, rendi-me quase imediatamente à grandeza da obra. Mc Carthy não engana. Merece um lugar ao lado de Faulkner ou de Roth e este «A estrada» é um dos grandes romances do ano.

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Mediocridade Cultural

A Ministra da Cultura prossegue a sua cruzada contra todos os que vão tendo o supremo desplante de se erguer acima da mediocridade generalizada. Depois da Cinemateca, do São Carlos, agora a o Museu Nacional de Arte Antiga.
«Em terra de cegos quem tem um olho é rei», diz o ditado. À falta de uma visão para a Cultura a Ministra vai-se rodeando de ceguinhos. É uma forma peculiar de fazer política...

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quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Da teoria da prática a algumas questões práticas da teoria

O meu texto anterior provocou uma série de reacções tendo transbordado, como notou o Paulo Rangel, para a relação entre teoria e prática. Acontece que, na minha opinião, sendo a distinção entre teoria e prática importante a dicotomia e oposição entre elas deve ser combatida. Perdoem-me o cliché de dizer que não há boa prática sem teoria nem boa teoria que não se traduza (ou comprove) numa prática. Sendo um cliché não deixa de ser largamente verdade… Dois exemplos (práticos e não "teóricos"...), na política e na universidade, com base nos comentários feitos:.

1 – Na política: a inconsistência das nossas políticas a que a Inês Dentinho faz referência é tanto produto da substituição da ideologia pelo pragmatismo como é consequência da prática política não ser orientada por uma teoria da política (talvez melhor, neste caso, uma teoria das políticas). Uma ênfase na prática e na produção de resultados que não é suportada numa reflexão sistémica sobre a nossa sociedade e os seus problemas vai traduzir-se necessariamente em políticas cíclicas e inconsistentes (o comentário do j. pinto correia concerne precisamente este fenómeno). Um ministério adopta normas que entram em conflito com a política de outro ministério; a cada ministro sucede-se uma política radicalmente diferente independentemente do governo, etc. A verdade é que a inconsistência ideológica (ou teórica, para não contaminar a ideia de ideias pela carga histórica das ideologias) acaba por minar os resultados práticos das políticas….
2 - Na universidade: estou em grande parte de acordo com a prioridade definida pelo Paulo Rangel. No entanto, confesso que tenho uma certa irritação em relação ao discurso sobre teoria e prática na nossa universidade. Em primeiro lugar, porque ele é frequentemente utilizado como manifestação de supremacia intelectual pelos que se arrogam do domínio da "teoria" (não estou a atribuir isto ao Paulo, para não gerar mais equívocos…). Em segundo lugar, porque, muitas vezes, aquilo que, entre nós, se define como teoria não passa de uma abstracção e generalização do pensamento prático. As nossas Faculdades de Direito (que o Paulo e eu bem conhecemos) são normalmente acusadas de serem excessivamente teóricas. Na verdade, a nossa dogmática jurídica é frequentemente bem incipiente do ponto de vista teórico. O que falta às nossas Faculdades de Direito é mais e melhor reflexão teórica e menos auto-referencialismo e generalização e formalização da prática. No que concerne a importância do ensino "teórico" a que faz referência o Paulo parece-me importante notar duas coisas. Por um lado, o bom ensino teórico é sempre o que fornece melhores instrumentos para a prática (um exemplo: a Faculdade de Direito de Yale faz um ensino do direito todo centrado na "teoria" e não na transmissão de informação, de tal forma que os seus alunos, de acordo com um estudo realizado, quando terminam o curso teriam uma elevada taxa de reprovação no exame para a ordem dos advogados; seis meses mais tarde, tendo estudado sozinhos no final do curso os códigos e a legislação, os alunos de Yale têm a melhor classificação nos exames da ordem e obtêm as melhores ofertas para sociedades de advogados…). Por outro lado, não podemos ignorar que a prática também pode ser uma boa forma de descobrir a teoria (também está comprovado que o ensino através da prática é frequentemente mais eficaz na transmissão de competências que o ensino ex-cátedra, através da clássica lição magistral e penso que é a isto que o Nuno Lobo Antunes faz referência). O que é mau é a prática despida de teoria (ou seja, sem reflexão crítica e sistémica sobre o que estamos a "praticar")!
PS: Espero que este último ponto esclareça alguns dos equívocos que o Nuno Lobo Antunes me atribui ter-lhe atribuido! Eu não atribuí ao Nuno nenhum reconhecimento de primazia da ciência aplicada sobre a ciência pura nem da acção sobre o pensamento. Eu nem sequer disse que achava que o Nuno acreditava na citação no Shaw. Eu apenas disse que discordava da citação. É uma caricatura mas é uma caricatura que reforça um equívoco e que acentua este tipo de dicotomia entre pensar/fazer ou teoria/prática que, pelos vistos, ambos combatemos….

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