quarta-feira, 8 de agosto de 2007

III. O mérito

Uma cultura pode dar imenso valor ao mérito (os príncipes da Renascença são disso bom exemplo) sem ser democrática, e muitas democracias menosprezam muitas formas de mérito (para simplificar, nos países anglo-saxónicos, os pensadores, artistas e escritores são menos valorizados, nos países latinos o mesmo se passa com os cientistas e homens de negócios). É a Inglaterra menos democrática por atribuir menos importância pública aos seus escritores e pensadores ou a França menos democrática por esquecer os seus imensos cientistas?

As democracias recolhem a ideia de mérito, porque todos os regimes recolhem a ideia de mérito. Cada um o faz de forma diversa. Nada mais trivial que isto. A Inglaterra nada democrática do tempo de Haendel dá tanta importância aos seus cientistas quanto a Inglaterra um pouco mais democrática do tempo de Eduardo VII. A França de Luiz XIV dá uma importância aos escritores igualmente grande à que uma França bem mais democrática de De Gaulle.

A ideia de mérito pessoal cheira a democrática porque afasta uma determinada ideia aristocrática, tipicamente europeia, ligada à hereditariedade. Nem todos os sistemas aristocratizantes são hereditários, no entanto. Fora da Europa, o império otomano e a China do mandarinato mostram bem o sistema contrário. Na China aliás a inversão era total. Nobilitavam-se os antepassados, não os descendentes. Ligar a ideia de mérito à democracia é assim ir beber ao mito da Revolução Francesa e não olhar a História de frente.

Relacionar democracia com meritocracia é uma ideia que apenas poderia passar na cabeça de um europeu, que associa (associação histórica algo apressada sob o ponto de vista estrutural) aristocracia e hereditariedade. E que vive de um certo mito, tanto dado pela Revolução Industrial inglesa como pela Revolução Francesa, de que a modernidade se faz do apagamento da hereditariedade.

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