Vetos presidenciais e a feição moderna da "descontinuidade parlamentar"
A tradição dos parlamentos - vinda de Eduardo I e assumida pela teoria prática de séculos - é a tradição da descontinuidade. Isto é, os parlamentos não funcionavam continuamente - viviam com hiatos, férias e interrupções. A experiência traumática dos parlamentos em funcionamento contínuo - os long parliaments da revolução inglesa ou a "convenção" da revolução francesa - aconselhavam períodos relevantes de paragem. O envolvimento dos membros do legislativo nas tarefas diárias do executivo, cuja vida acompanhavam ou pretendiam acompanhar ao milímetro, tinha como resultado o arbítrio e a opressão. Por um lado, pelo estrutura plural e compósita do órgão parlamentar; por outro lado, pela ligação directa aos representados, de cujo voto dependiam. O executivo, apesar de tudo, tinha a distância da escolha indirecta e a estrutura hierárquica e vertical, que, putativamente, asseguravam uma certa racionalidade. Os grandes teóricos da separação de poderes recomendaram, invariavelmente, que o parlamento não deveria funcionar como um órgão "sempre em ser" (para usar a saborosa expressão de João Oliveira Carvalho na tradução do II Tratado do Governo de Locke).
Esses recomendáveis períodos de paragem podiam ser férias fartas (de três ou quatro meses), podiam ser hiatos longos entre a dissolução ou cessação de funções e as novas eleições. Tais intervalos serviam também para aliviar a pressão e a tensão exercitadas sobre os governos. Durante meses, livravam-se do escrutínio da turba dos deputados. Administravam mais folgadamente e, às vezes - impunha-o a urgência e a necessidade - legislavam. Na verdade, sempre que fosse necessário legislar fora dos períodos de funcionamento das assembleias, o governo usurpava-lhes a função e produzia os "decretos com força de lei". Decretos estes que, apesar de inconstitucionais, haviam de ser ratificados logo nas primeiras sessões do parlamento, assim que este assumisse ou "reassumisse" funções. Era a velha tradição inglesa dos "bills of indemnity".
Vem tudo isto a propósito dos vetos presidenciais e da gestão do "timing" político. Efectivamente, já naqueles contextos, os executivos aproveitavam os períodos de pausa ou pousio parlamentar para emanarem a legislação que mais facilmente queriam fazer passar e que, depois, havia de ser ratificada em bloco.
Muitos estranham por que razão concentrou o Presidente os vetos nesta época do ano. Alguns arriscam até que o fez, por se tratar de uma época morta (silly season), diminuindo o impacto da fricção institucional (sem deixar de avisar o Governo).
Mas uma tal visão não colhe. Quem determinou os tempos foi o Governo, através da sua maioria parlamentar. E não por acaso, concentrou no final do ano a aprovação dos diplomas mais polémicos ou mais arriscados. É que a Constituição dá vinte dias ao Presidente e, assim, se ele exprimir qualquer discordância ou reserva (política ou constitucional), ela passará anestesiada como passou.
Nada de novo debaixo do sol, portanto. Ontem como hoje, a "descontinuidade" parlamentar continua a ser aproveitada pelos executivos.
1 comentários:
Tudo se resolveria com naturalidade democrática no sistema parlamentarista de uma Monarquia Constitucional. A República e a sua legitimidade bicéfala aliada à opinião da amostra de povo na AR cria dificuldades na legendagem política da autoridade (parecidas com as que se viveram nos últimos tempos no BCP).
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