terça-feira, 7 de agosto de 2007

II. O mérito

Em primeiro lugar, a que se atribui mérito? À coragem guerreira, à inteligência, à capacidade estratégica para os negócios, à profundidade mística? Por uma ou por outra via facilmente vemos que existe em todas as qualidades a que atribuímos mérito um elemento de esforço pessoal. É inegável. Mas os dados de base não nos foram dados.

Se o mérito for uma qualidade democrática, porque razão quem tem uma genética de maior inteligência, estando por isso favorecido pelo destino, pode ter mais mérito que o aluno que se esforçou duas vezes mais mas nunca há-de perceber o mais elementar teorema de topologia? A imensa maioria das pessoas que estudaram muito mais matemática que Leibniz não lhe poderão chegar nunca aos calcanhares.

Muitas pessoas têm capacidade estratégica para os negócios, mas só uma ou mais gerações depois as suas ideias vencem. Da mesma forma o trabalho místico de Nietzsche ou de Mestre Erckhart levou gerações a ser valorizado. Bach na sua geração era considerado apenas o sétimo melhor músico, muito depois de Telemann. Porquê o imenso erudito, fruto de um trabalho e esforço titânico, que era o padre Martini, que ensinou Mozart, terá menos mérito que o próprio Mozart? Não fora a divina inspiração do segundo, sem lhe retirar o mérito do trabalho, seria muito inferior a Martini. E no entanto...

Entramos aqui no segundo aspecto nada democrático do mérito. Que tipos de mérito são adulados por uma sociedade? Quem estabelece o grau de mérito? Quantas vezes não vimos grandes criadores e pensadores serem desprezados? Para a sociedade do seu tempo Camões teve menos mérito e menor reconhecimento que outros poetastros muito mais bem instalados na vida que ele.

Não, o mérito não é uma qualidade democrática, porque as sociedades não são nunca plenamente democráticas. Vivem de um imenso lastro que aceitam sem muitas vezes dele terem consciência e acumulam historicamente outra tanta bagagem. A democracia portuguesa, a japonesa e a neozelandesa são muito diferentes, dão diverso valor ao mérito, escolhem diversas versões do mérito, não por serem democracias diversas enquanto tal, mas por serem culturas diferentes.

2 comentários:

Miguel Poiares Maduro disse...

Caro Alexandre,
Duas discordâncias:
1º - Pergunto-me se, em parte, não confundes democracia com igualdade. A democracia exige uma igualdade de acesso ao sistema político de forma activa e passiva mas não impede que a nossa participação no processo político seja guiada por critérios de mérito. Por outras palavras, eu mereço e reconheço a todos iguais direitos de participação no sistema democrático mas isso não impede que o meu voto possa ser orientado pelo reconhecimento do mérito: o facto de se dever ter igual respeito por uma pessoa inteligente ou por uma pessoa menos inteligente não significa que deva ser indiferente em qual votamos. Essa lógica tornaria absurdo o próprio voto uma vez que, em última análise (seja pelos factores genéticos seja por factores sócio-culturais) ninguém é verdadeiramente responsável pelo seu mérito (ou, já agora, por qualquer outra característica). Mas reconheço que esta posição seria coerente com um regime de selecção por sorteio (como pareces sugerir no post anterior) e que, em certos casos (limitados na minha opinião), este até poderia constituir um bom mecanismo democrático.
2º É verdade que nem sempre as pessoas com mais mérito vêm o seu mérito reconhecido. No entanto, isso não é, por si só, suficiente para excluir um regime assente numa lógica predominante de mérito. Vivemos num mundo de alternativas imperfeitas e eu acho que esta é a menos imperfeita que conheço. Concordo é que é necessário tentarmos aperfeiçoar o mais possível os nossos critérios e processos de selecção com base no mérito e que, se necessário, devemos criar mecanismos de compensação e promoção para aqueles que pertencem a grupos sociais que podem ter menos condições de acesso ao que favorece o mérito. Em certa medida o mérito deve ser medido ou promovido em "condições de diversidade" de forma a garantir que ele não se transforma noutro obstáculo à mobilidade social. Em qualquer caso, os regimes de mérito têm, historicamente, promovido mais mobilidade social que regimes "teoricamente" mais igualitários.
Um abraço
Miguel

Alexandre Brandão da Veiga disse...

Agradeço o teu comentário.

Mas apenas saliento que quis demoinstrar que mérito e democracia nada têm de relação necessitante. Todas as culturas premeiam o mérito, cada uma à sua maneira.

O mérito nada tem a ver com democracia. Associá-los é sofrer do mito da Revolução Francesa de que "antes" era tudo hereditário e "depois" vale o mérito (basta ver os exemplos de Jacques Coeur e de João das Regras, ou muitos percursos eclisáticos ou culturais - Rubens "pictor doctus", os Fugger, os Medicis, para ver o contrário).

Uma questão que nem sequer discuto nestes posts (ainda vêem mais uns) é a de saber se a democracia é efectivamente o regime mais eficaz a premiar o mérito. E essa será uma outra questão.