segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Meridiano de Sangue


Continuo a minha peregrinação por Cormac McCarthy. «Meridiano de Sangue» é a história negra da expansão americana para Oeste, narrada através da deambulações de um grupo de caçadores de escalpes pela fronteira entre o México e os EUA . É, como seria de esperar, um romance de uma invulgar crueza. «Encontraram os batedores desaparecidos pendurados de cabeça para baixo dos ramos de uma árvore de paloverde enegrecida pelo fogo. Tinham os tendões dos calcanhares trespassados por espigões aguçados de madeira verde e pendiam, lívidos e nus, acima das cinzas frias das brasas onde tinham assado em fogo lento até às cabeças ficarem carbonizadas e os cérebros borbulharem dentro do crânio e o vapor lhes sair pelas narinas a sibilar. Viam-se-lhes as línguas puxadas para fora da boca e presas com paus afiados que as atravessavam de lado a lado e tinham as orelhas cortadas e os torsos rasgados com lascas de sílex até as entranhas lhes penderem sobre o peito
Mas este Meridiano é também um tributo à grandeza desolada do Oeste Selvagem que, dir-se-ia, exerce sobre McCarthy o mesmo fascínio que um dia levou John Ford a fazer dela um personagem omnipresente da sua obra. «Desceram destas paragens por um fundo desfiladeiro,a trotar ruidosamente sobre os pedregulhos, cruzando hiatos de sombra fresca e azul. Na areia seca do leito do arroio havia velhos ossos e cacos de louça pintada e gravados nas rochas por cima deles pictogramas de cavalos e pumas e tartarugas e cavaleiros espanhóis de morrião e broquel, desdenhosos da rocha e do silêncio e do próprio tempo. Alojados em rachas e fissuras, cem pés mais acima, viam-se emaranhados de palha e pedaços de madeira trazidos pela água que em tempos chegara até ali e os cavaleiros ouviam o múrmurio do trovão na lonjura insondável e vigiavam a estreita língua de céu lá no alto em busca de quaisquer sombras prenunciadoras de chuva, calcorreando o espaço entre os flancos apertados da ravina, e as rochas secas e alvas do leito morto do rio eram curvas e macias como ovos misteriosos».
E como se não bastasse, este romance de 85, consegue ainda ser um livro de uma espantosa sensibilidade que, na aridez violenta daquelas paragens, vai despontando de forma quase paradoxal, ora nas deliciosas prelecções nocturnas do Juiz Holden, ora na imensa fragilidade do herói sem nome em cujo rosto de menino «se pode ler o destino do homem».
Decididamente este McCarthy é um caso sério.

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