Comentário a «O Lugar da Democracia» em Abusiva Forma de «Post»
A citação feita pelo João Luís Ferreira no seu «post», «O Lugar da Democracia», do tal Ministro que afirmava, na televisão, a propósito duma luta de gangs, tal não dever ser possível suceder em democracia, afigura-se-me espelhar bem a confusão a que chegou o dito «pensamento político» da actualidade em resultado exactamente da demissão ou recusa de pensar além do mero «pensamento ingénuo», o pensamento que a todos e a cada um dado à nascença, a todos imediatamente acessível, daí resultando também a não menos actual incapacidade de correctamente entender já sequer o real significado de um conceito tão simples como o de «democracia»: o governo do povo, da maioria, como uma das três formas puras que os regimes políticos podem assumir. Tão só isto, apenas isto e nada mais do que isto. E não obstante, hoje, um termo tão simples como «democracia», parece ser tido como significando mais, muito mais, do que uma simples forma de regime político para assumir ou encarnar mesmo a mais pura, suprema e absoluta das virtudes. Sim, a ninguém, hoje, importa saber de outrem se firme é em sua prudência, em sua temperança, fortaleza, coragem, como tampouco, e menos ainda, em sua fé, esperança ou caridade. Uma única e sempre a mesma preocupação parece a todos obsediar: quão democrata é?
Sem ironia, poder-se-á dizer no entanto que, na actual situação mental do mundo, é bem compreensível a razão da afirmação do dito Ministro: se a democracia supõe a existência de um povo composto de «democratas»; se «democrata» significa, antes de mais e acima de tudo, encarnar, de algum modo, a perfeita virtude, não podendo os actos de quem encarna a perfeita virtude virtuosos deixarem de ser, necessariamente virtuosa não poderá igualmente deixar de ser, por maioria de razão, a vida em «democracia», inaceitáveis se afiguram, na realidade, tais actos, tão contrários a toda a «democrática» existência.
Na verdade, não nos podemos esquecer, numa primeira instância, de se ter constituído, desde sempre, como um dos principais motivos de defesa e exaltação da «democracia», o facto de ser entendido e aceite como o único regime político a permitir, a qualquer momento, a destituição dos actuais governantes e uma consequente transição de poder por meios pacíficos, eliminando, por extensão, a violência como primeira e última ratio de resolução de conflitos. Aliás, tão eminentes e celebradas figuras como um Sir Karl Popper não encontram outros argumentos de defesa da «democracia» sobre todos os restantes regimes senão esses mesmos: possibilidade de destituição dos actuais governantes, a todo o momento, por meios pacíficos, transição pacífica do poder e eliminação da violência como primeira e última ratio de resolução de conflitos.
Não é garantido que assim seja, como é evidente, como não menos abusivo será ser sempre identificar a monarquia com tirania e a aristocracia com oligarquia, todavia, acreditando, como hoje se acredita, constituir a «democracia» exactamente isso, possibilidade de destituição dos actuais governantes, a todo o momento, por meios pacíficos, transição pacífica do poder e eliminação da violência como primeira e última ratio de resolução de conflitos, também com facilidade se compreende o alto valor que lhe é atribuído, sobretudo quando, mesmo se apenas por breves instantes, se rememora as sucessivas e terríveis «revoluções» ocorridas na História dos povos desde os dias da dita gloriosa Revolução Francesa até hoje.
Assim, o «pensamento ingénuo», confundindo tudo, como lhe é próprio e característico, princípios, meios e fins, decorrente também de um processo psicológico muito comum que podemos designar como «enviezamento holístico», acaba por transferir e atribuir à «democracia» qualidades e virtudes que lhe não são próprias, com a agravante, além de lhe atribuir todas as virtudes, tudo isto ser, ainda por cima, incentivado e reforçado pelos lugares comuns típicos do ciclo feminino-ilumininista-socialista-positivista-marxista-pragmatista-relativista que estamos vivendo e em que são figuras de proa, Marx, Darwin, Nietzsche e Freud.
Numa tal perspectiva, está, sem dúvida, o tal Ministro «democraticamente» certo. Ingenuamente? Talvez, mas certo, no enquadramento actual. A questão, o problema, a dificuldade, não está no Ministro, está nos desvairados tempos que estamos vivendo.
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