quarta-feira, 29 de agosto de 2007

II. Heidegger. Platon: Le Sophiste. Paris, Gallimard, 2001

Vejamos apenas alguns pontos curiosos da obra.

O grande problema do “logos” é o da verborreia (p.33), a capacidade que tem a palavra se de tornar falsa, encobridora da verdade. A letra mata o espírito vivifica, diria São Paulo. Que a palavra possa ser falsa, que o “logos” possa encobrir, é verdade que poucos enfrentam com coragem. A nossa época em que a palavra se multiplica, e tudo invade devia-nos levar a pensar duas vezes antes de falar... ou escrever.

A tese de Antístenes de que só é verdadeiro o tautológico, o A é A, mostra uma tentação de todas as culturas para o monolitismo. É o pensamento islâmico do Deus sem associados. Expressão simples, aparentemente sem risco de incoerência, mas falhando no teste da realidade e no teste da própria consistência do discurso. A palavra não é apenas susceptível de falsidade. Ela é mais do que é singelamente.

Um dos lugares comuns possíveis é o de se dizer que a lógica grega é de procura do Ser, a cristã é a de revelação. Na relação entre o ser e a verdade a postura grega seria activa, a cristã passiva. Visão algo simplista da coisa. Porque mesmo para um grego, sem a corroboração do ser, que se abre e em dádiva se permite desvelar, não seria possível o acesso à verdade. Fora a verdade absolutamente opaca nunca seria possível aceder a ela. Inversamente, do lado cristão, o acesso à verdade implica esforço vivencial, não basta a revelação. Ou seja, destrinçar uma e outra cultura por este critério é tonto e superficial. Em ambas existem ambos os movimentos. Tanto numa como noutra a relação entre ser a verdade implica um movimento de ambos que se dirigem um ao outro. O mesmo fenómeno, afinal: o encontro.

Curiosa igualmente a observação de Heidegger, a insistente referência, ao facto de o ser para os gregos ser presença, “parousia”. O mesmo critério para a eucaristia, com o dogma da transubstanciação, da presença real. A plenitude do ser como plenitude de presença (264, 318, 372 ss., 376, 436 ss., 439, 443, 457, "entelecheia" como presença 490, 520), tema eminentemente católico.

Outros pontos de confluência entre o pensamento grego e o cristianismo saltam a cada momento, mesmo que isto não agrade provavelmente a Heidegger (ou melhor ao seu discurso expresso). A bipartição dos "nous" em Aristóteles como o mais concreto e o mais geral é um elemento católico de Heidegger (157). A ideia de felicidade em Aristóteles como pura contemplação, como desvelamento pleno da presença, ideia bastamente cristã (165). A ligação entre teologia e ontologia, herança grega e não só cristã (212). O diálogo, o ser, e o problema das trindades (421, 463) helenismo e cristianismo aptos a lidar com os mesmos problemas discursivamente. A dialéctica como "colocação em evidência das possibilidades, para o ente, de entrar conjuntamente em presença, na medida em que venha ao encontro do logos" (500) poderia ser definição da eucaristia como preparação da transubstanciação. A questão antropológica é a ontologia e vice-versa (545): Bento XVI não diria outra coisa. Negação, conceito cristão se o há, como fundação do mal, no caso a ilusão, do sofista (208), ou em Hegel como mera transição (529). A teoria dos ícones (e o problema da iconoclastia) antecipa a fenomenologia (378).

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