Da teoria da prática a algumas questões práticas da teoria
O meu texto anterior provocou uma série de reacções tendo transbordado, como notou o Paulo Rangel, para a relação entre teoria e prática. Acontece que, na minha opinião, sendo a distinção entre teoria e prática importante a dicotomia e oposição entre elas deve ser combatida. Perdoem-me o cliché de dizer que não há boa prática sem teoria nem boa teoria que não se traduza (ou comprove) numa prática. Sendo um cliché não deixa de ser largamente verdade… Dois exemplos (práticos e não "teóricos"...), na política e na universidade, com base nos comentários feitos:.
1 – Na política: a inconsistência das nossas políticas a que a Inês Dentinho faz referência é tanto produto da substituição da ideologia pelo pragmatismo como é consequência da prática política não ser orientada por uma teoria da política (talvez melhor, neste caso, uma teoria das políticas). Uma ênfase na prática e na produção de resultados que não é suportada numa reflexão sistémica sobre a nossa sociedade e os seus problemas vai traduzir-se necessariamente em políticas cíclicas e inconsistentes (o comentário do j. pinto correia concerne precisamente este fenómeno). Um ministério adopta normas que entram em conflito com a política de outro ministério; a cada ministro sucede-se uma política radicalmente diferente independentemente do governo, etc. A verdade é que a inconsistência ideológica (ou teórica, para não contaminar a ideia de ideias pela carga histórica das ideologias) acaba por minar os resultados práticos das políticas….
2 - Na universidade: estou em grande parte de acordo com a prioridade definida pelo Paulo Rangel. No entanto, confesso que tenho uma certa irritação em relação ao discurso sobre teoria e prática na nossa universidade. Em primeiro lugar, porque ele é frequentemente utilizado como manifestação de supremacia intelectual pelos que se arrogam do domínio da "teoria" (não estou a atribuir isto ao Paulo, para não gerar mais equívocos…). Em segundo lugar, porque, muitas vezes, aquilo que, entre nós, se define como teoria não passa de uma abstracção e generalização do pensamento prático. As nossas Faculdades de Direito (que o Paulo e eu bem conhecemos) são normalmente acusadas de serem excessivamente teóricas. Na verdade, a nossa dogmática jurídica é frequentemente bem incipiente do ponto de vista teórico. O que falta às nossas Faculdades de Direito é mais e melhor reflexão teórica e menos auto-referencialismo e generalização e formalização da prática. No que concerne a importância do ensino "teórico" a que faz referência o Paulo parece-me importante notar duas coisas. Por um lado, o bom ensino teórico é sempre o que fornece melhores instrumentos para a prática (um exemplo: a Faculdade de Direito de Yale faz um ensino do direito todo centrado na "teoria" e não na transmissão de informação, de tal forma que os seus alunos, de acordo com um estudo realizado, quando terminam o curso teriam uma elevada taxa de reprovação no exame para a ordem dos advogados; seis meses mais tarde, tendo estudado sozinhos no final do curso os códigos e a legislação, os alunos de Yale têm a melhor classificação nos exames da ordem e obtêm as melhores ofertas para sociedades de advogados…). Por outro lado, não podemos ignorar que a prática também pode ser uma boa forma de descobrir a teoria (também está comprovado que o ensino através da prática é frequentemente mais eficaz na transmissão de competências que o ensino ex-cátedra, através da clássica lição magistral e penso que é a isto que o Nuno Lobo Antunes faz referência). O que é mau é a prática despida de teoria (ou seja, sem reflexão crítica e sistémica sobre o que estamos a "praticar")!
PS: Espero que este último ponto esclareça alguns dos equívocos que o Nuno Lobo Antunes me atribui ter-lhe atribuido! Eu não atribuí ao Nuno nenhum reconhecimento de primazia da ciência aplicada sobre a ciência pura nem da acção sobre o pensamento. Eu nem sequer disse que achava que o Nuno acreditava na citação no Shaw. Eu apenas disse que discordava da citação. É uma caricatura mas é uma caricatura que reforça um equívoco e que acentua este tipo de dicotomia entre pensar/fazer ou teoria/prática que, pelos vistos, ambos combatemos….
6 comentários:
Equívocos esclarecidos. Tenho notado que diferentes formações e experiências académicas levam a discursos paralelos, tornando instáveis "pontes" de entendimento, como se fosse uma Babel, em que vários utilizam línguas distintas, desconhecidas do seu interlocutor, mas querendo, por vezes, transmitir a mesma ideia.
No meu Post referi a experiência no Ensino de uma disciplina, a Medicina, que é eminentemente "técnica", (curioso, não há muito tempo chamarem ao médico "prático" ou "físico"). Na minha área, (não duvidem), ensina-se, por exemplo, detalhes bioquímicos altamente complexos sobre o que é o "estado de choque", e nos exames, são esses aspectos teóricos do "saber" que dão ao aluno a sua classificação. Contudo, é uma exígua minoria de estudantes, que quando acabado o curso e confrontado com um doente com essa patologia, seja efectivamente capaz de "tratar" aquela pessoa, embora saiba, "na teoria", o que fazer. Quantos internos de Pediatria me dizem: "venho ASSISTIR á sua consulta", convictos que por me verem fazer, aprendem como se faz. Foi essa ilusão que quis comentar, porque, na verdade, quem sabe... faz.
PS:
Embora nunca tenha sido estudante de Direito, sei que existem diferenças profundas entre o Direito europeu e dos EUA que tornam as comparações, no mínimo, difíceis. Já na prática médica não existem tais diferenças, sendo legítimo comparar os diferentes métodos de ensino.
Maravilha!
Alguns comentários:
1) O problema de muito do nosso ensino universitário não é ser teórico demais: é ser sebenteiro. Exactamente o oposto da teoria.
2) Eu não gostava de ser operado por um médico que não soubesse anatomia: e isso é saber teoria. E não coloco problemas de penal a quem não sabe o que é uma falta de consciência da ilicitude ou não diferencia a imputação da culpa da objectiva, como já vi "práticos" fazerem... e perderem casos por isso.
3) Só os países que acolheram o desenvolvimento teórico conseguiram manter um desenvolvimento sustentado, seja fazendo o desenvolvimento teórico anteceder o económico (caso da Inglaterra, Alemanah, França), seja importanto esse conhecimento (caso de Roma e dos Estados Unidos).
4) O sentido prático dos direitos anglo-americanos permite-lhes adoptar soluções coxas mas eficazes para muitos problemas. Mas quem tem a prática destes direitos sabe que muitos problemas lhes passam ao lado e muitas soluções são exageradamente alambicadas... exactamente por não terem estrtura teórica de base (tente-se resolver cabalmente um problema de incumprimento no direito inglês, por exemplo).
5) As pessoas que se dizem práticas, nunca as vi resolver bem problemas práticos. Quando estão aflitas com um problema que não seja rotineiro (é de sentido rotineiro e não de sentido prático que se trata) vão sempre consultar quem tem... conhecimento teórico.
Caríssimo Alexandre:
Extraordinário como alguém inquieto, (no sentido intelectual), e Bom,(no sentido Moral), falha o ponto!
O saber da Anatomia é o exemplo máximo do sentido "prático". E os equívocos continuam! ninguém, (eu pelo menos), nega a importância da reflexão. O que digo, é que perante um problema médico, de Direito, Matemático, ou de Engenharia, (ou perante o carro que avariou, o fuzível que fundiu, a namorada com enxaqueca), é necessário encontrar a solução. O Bicho-Homem necessita da experiência, i.e., de ter ensaiado ou praticado, uma solução, e observado,(ver para crer), se ela resultou. O Ensino da Medicina, (e sejamos verdadeiros), de qualquer disciplina, passa pela práctica dessa disciplina, (pois se até para a poesia que conta, é necessária a rima,... no pain, no gain). E já agora, caro amigo, lembro-me de me ter dito que literatura verdadeira, apenas até meados do século XX, porque gostava de ver as vírgulas no sítio...
Um Tio de quem muito gostava, um dia ficou parado na estrada. Passou um "popular", e perguntou-lhe:" O amigo não tem uma chave de fendas?". O meu tio, (com camisa de impecável corte, mas sem um calo no polegar), descobriu uma chave de parafusos. Dez minutos mais tarde, o "ajudante" deixou-o com a "chave de fendas, uma dùzia de parafusos desirmanados, o carro parado, e um encolher de ombros. Suponho que tenha tirado o curso de mecânica numa Universidade portuguesa, ou, quem sabe, em Yale.
PS
Miguel, desculpa, mas quem tem como Alma-Mater, Columbia e Cornell não resiste à piada...
Caros Nuno e Alexandre,
Nenhum problema com a piada mas eu acho que o problema do ajudante era falta de teoria… No fundo, ele julgou que a prática com a chave de fendas o levaria a conseguir concertar o automóvel! Alguém que tenha uma percepção teórica das coisas sabe bem que só deve praticar aquilo de que sabe e que a prática raramente conduz a um novo conhecimento (apenas quando a ela e junta teoria esse pode ser o caso). Nem tudo se pode aprender apenas praticando…
Em qualquer caso, sem querer servir de mediador entre o Alexandre e o Nuno (estar algures entre os dois nem sempre é o centro de nada e, mesmo que seja, nem sempre o centro é onde está a virtude!), diria que o importante é uma prática "informed by theory" (teoricamente informada ou consciente) e uma teoria aberta à prática. É importante não confundirmos conhecimento abstracto com conhecimento teórico e conhecimento aplicado (para voltar ao tema inicial) com conhecimento prático (foi por isso que eu procurei não misturar os dois temas).
Um abraço a ambos
MIguel
o que provavelmente se torna interessante analisar igualmente (mas que por razões naturais não coube no post) é o modo como o desfaçamento entre teoria e prática e a ênfase nesta última dada por grande parte da nossa sociedade intelectual, contribui ela própria para a criação de modelos nacionais de reflexão sobre as diferentes ciências. Por outras palavras, como em Portugal se desenvolvem "escolas" de reflexão sobre as diferentes temáticas científicas normalmente motivadas por um conhecimento nacional e especificamente Portugues das diferentes temáticas e como esse mesmo conhecimento se regenera geração após geração - normalmente através de programas pós-graduados realizados em Portugal. Em suma, como as ciencias se desenvolvem de uma lógica que dá primazia absoluta à resoluçao de problemas da prática aplicando uma "teoria" prático/empírico-descritiva, de como essa mesma "teoria" (tida como tal por muitos que trabalham nela) se reproduz desenquadrada de qualquer reflexão consistente da disciplina (do modo como historicamente se desenvolveu e o que distingue cada disciplina de uma outra) e de como este "modelo portugues" de análise da nossa especificidade se vai arrastando ao longo do tempo. O problema da ciencia em Portugal será então um problema de consistência de teoria e de disciplinas uma vez que "teorias" não faltam. Há que especificar bem de que teorias se fala porque em Portugal existem muitos "teóricos" e seus dependentes. O problema da consistência da teoria é, por isso mesmo, o mais importante.
Uma outra forma em que isto poderá ser aplicado refere-se a todos os que investigam com (relativa) consistencia uma determinada área disciplinar mas que se dedicam a trabalhar sobre o "caso Portugues".O paroquialismo é diferente mas, no fundo, semelhante. A ênfase dada ao "caso Portugues" faz com que teoricamente não haja uma reflexão profunda sobre o tema em questão. A investigação é apresentada sem procurar promover uma mais valia no debate internacional mas mais para aplicar o "caso portugues" a um conjunto de literatura (relativamente) analisada. Tanto neste caso como no anterior o problema nao é de "teorias" porque elas existem (se bem que neste segundo caso enquadradas internacionalmente). O problema é de consistencia teorica. É o problema de se acabar com paroquialismo. É o problema de se teorizar e não "teorizar".
(P.S.- parabéns pelo espaço. Na opinião deste anónimo, ele é o melhor da blogosfera).
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