Ucrânia, Rússia e Crimeia I
E eis que a Europa se
depara com uma nova crise da Crimeia cento e cinquenta anos depois da que deu
fama a Florence Nightingale (não sem ironia de Disraeli) e à Cruz Vermelha, se não
estou enganado.
Comecemos pela Crimeia.
Sempre foi território russo e um ditador ofereceu-o como prenda à Ucrânia. O
que pretende a Europa? Fazer respeitar a vontade caprichosa de um Nikita
Krutschov. Creio que em 1991 Ieltsin teve a hipótese de ficar com a Crimeia,
que lhe foi oferecida de mão beijada pelo presidente ucraniano da altura, mas Ieltsin
com a sua visão de longo prazo, ou melhor de fundo de garrafa, não deu muita
importância à coisa. Teria sido bem mais simples para todos nós caso Ieltsin
tivesse tido sentido estratégico. Não é obra do acaso que não seja respeitado
nem por russos nem pelo ditos ocidentais, e apenas tenha despertado alguma
simpatia nestes últimos por algum desprezo.
O que pretendem os ocidentais
ao exigir que a Crimeia permaneça ucraniana? Em primeiro lugar, sem dúvida, uma
preocupação com um princípio de inércia das fronteiras. Embora tenham sido os
mesmos ocidentais a apoiar entusiasticamente referendos (no Kosovo, no Sudão do
Sul) neste caso a vontade popular já tem menos importância. Mas, bem além disto,
comprazem-se no enfraquecimento da Rússia. Desde os anos 90 a falta de respeito
pela Rússia tem-se manifestado pelo apoio americano à Turquia para esta se
tornar numa influência junto da Ásia Central (tentativa largamente falhada,
porque a Turquia nada tinha a oferecer à Ásia Central, salvo imãs e reconstrução
de mesquitas) e separar a Ásia Central da esfera de influência russa.
Benemerência? Não. Porque os americanos não queriam mais autonomia para a Ásia Central.
Apenas queriam substituir a influência russa... pela americana. E tudo isto sob
o discurso de que se convidou generosamente a Rússia a ser uma espécie de mega Suíça
da Eurásia.
No meio disto, fica o problema
ucraniano. Ao contrário dos propagandistas sobre a modernidade, os problemas
têm sempre raízes bem fundas e a religião tem um papel definidor ainda hoje em dia.
A Ucrânia foi desde há muitos séculos zona de fronteira entre o catolicismo e a
ortodoxia. No século XV, no concílio de Ferrara-Florença há união com Roma por
parte do arcebispo de Kiev, Nikon (refiro estes factos de cor, são forçosamente
aproximativos) e no século XVI com o trabalho do polaco Piotr Skarga volta a
haver união com Roma.
O facto de haver mais de
uma união com Roma mostra até que ponto esta sempre foi relativamente frágil.
Conquistando a Rússia a pequena Rússia, os uniatas tiveram sempre uma vida
pouco fácil. Mas a verdade é que a Ucrânia foi sempre região de fronteira
dentro da Europa, como o era a Jugoslávia.
Sob o ponto de vista simbólico
a Ucrânia tem ainda um significado especial, tanto para a Rússia como para a Polónia
Lituânia. Kiev foi o centro de nascimento da Rússia, onde reinaram os Rurikides.
O célebre Ivan, o Terrível, era descendente desta dinastia, que tinha sido,
antes de ser senhora de Moscovo, soberana de Kiev. (Para quem ache que Portugal
nada tem a ver com isto lembro que o D. Afonso Henriques era primo em 10º grau
do seu contemporâneo grão duque de Kiev Vsevolod III, antepassado de Ivan, o Terrível,
por via do sangue Mamikonian, imperadores de Bizâncio – na Idade dita Média
eram mais conhecedores dos laços que ligavam os vários países europeus que hoje
em dia) É de Kiev que vem a «Rhos» obra de escandinavos nas planícies russas. Mas
igualmente simbólica para a Polónia-Lituânia que governou a Ucrânia até ao século
XVI, salvo erro. Não podemos olhar para a Europa como se fosse apenas a Europa ocidental
e dentro desta apenas duzentos anos da sua História. Os Europeus de Leste têm mais
vívida a sua História, porque ela os invadiu até muito recentemente. As fronteiras
são novas e sempre semoventes.
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