quarta-feira, 19 de março de 2014

Ucrânia, Rússia e Crimeia I


E eis que a Europa se depara com uma nova crise da Crimeia cento e cinquenta anos depois da que deu fama a Florence Nightingale (não sem ironia de Disraeli) e à Cruz Vermelha, se não estou enganado.

Comecemos pela Crimeia. Sempre foi território russo e um ditador ofereceu-o como prenda à Ucrânia. O que pretende a Europa? Fazer respeitar a vontade caprichosa de um Nikita Krutschov. Creio que em 1991 Ieltsin teve a hipótese de ficar com a Crimeia, que lhe foi oferecida de mão beijada pelo presidente ucraniano da altura, mas Ieltsin com a sua visão de longo prazo, ou melhor de fundo de garrafa, não deu muita importância à coisa. Teria sido bem mais simples para todos nós caso Ieltsin tivesse tido sentido estratégico. Não é obra do acaso que não seja respeitado nem por russos nem pelo ditos ocidentais, e apenas tenha despertado alguma simpatia nestes últimos por algum desprezo.

O que pretendem os ocidentais ao exigir que a Crimeia permaneça ucraniana? Em primeiro lugar, sem dúvida, uma preocupação com um princípio de inércia das fronteiras. Embora tenham sido os mesmos ocidentais a apoiar entusiasticamente referendos (no Kosovo, no Sudão do Sul) neste caso a vontade popular já tem menos importância. Mas, bem além disto, comprazem-se no enfraquecimento da Rússia. Desde os anos 90 a falta de respeito pela Rússia tem-se manifestado pelo apoio americano à Turquia para esta se tornar numa influência junto da Ásia Central (tentativa largamente falhada, porque a Turquia nada tinha a oferecer à Ásia Central, salvo imãs e reconstrução de mesquitas) e separar a Ásia Central da esfera de influência russa. Benemerência? Não. Porque os americanos não queriam mais autonomia para a Ásia Central. Apenas queriam substituir a influência russa... pela americana. E tudo isto sob o discurso de que se convidou generosamente a Rússia a ser uma espécie de mega Suíça da Eurásia.

No meio disto, fica o problema ucraniano. Ao contrário dos propagandistas sobre a modernidade, os problemas têm sempre raízes bem fundas e a religião tem um papel definidor ainda hoje em dia. A Ucrânia foi desde há muitos séculos zona de fronteira entre o catolicismo e a ortodoxia. No século XV, no concílio de Ferrara-Florença há união com Roma por parte do arcebispo de Kiev, Nikon (refiro estes factos de cor, são forçosamente aproximativos) e no século XVI com o trabalho do polaco Piotr Skarga volta a haver união com Roma.

O facto de haver mais de uma união com Roma mostra até que ponto esta sempre foi relativamente frágil. Conquistando a Rússia a pequena Rússia, os uniatas tiveram sempre uma vida pouco fácil. Mas a verdade é que a Ucrânia foi sempre região de fronteira dentro da Europa, como o era a Jugoslávia.

Sob o ponto de vista simbólico a Ucrânia tem ainda um significado especial, tanto para a Rússia como para a Polónia Lituânia. Kiev foi o centro de nascimento da Rússia, onde reinaram os Rurikides. O célebre Ivan, o Terrível, era descendente desta dinastia, que tinha sido, antes de ser senhora de Moscovo, soberana de Kiev. (Para quem ache que Portugal nada tem a ver com isto lembro que o D. Afonso Henriques era primo em 10º grau do seu contemporâneo grão duque de Kiev Vsevolod III, antepassado de Ivan, o Terrível, por via do sangue Mamikonian, imperadores de Bizâncio – na Idade dita Média eram mais conhecedores dos laços que ligavam os vários países europeus que hoje em dia) É de Kiev que vem a «Rhos» obra de escandinavos nas planícies russas. Mas igualmente simbólica para a Polónia-Lituânia que governou a Ucrânia até ao século XVI, salvo erro. Não podemos olhar para a Europa como se fosse apenas a Europa ocidental e dentro desta apenas duzentos anos da sua História. Os Europeus de Leste têm mais vívida a sua História, porque ela os invadiu até muito recentemente. As fronteiras são novas e sempre semoventes.

 

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