quarta-feira, 25 de março de 2009

III Em nome da matemática

A matemática é certa

Mais uma vez: será? Não me parece. Porque, em boa verdade, quando se afirma a certeza, é algo bem diverso o que se pretende defender: é uma segurança pessoal de merceeiro. Quem o pensa está apenas a dizer: “o meu pai lá na mercearia quando somava dois e dois dava sempre quatro”. Em matemática dois MAIS dois não são sempre quatro. Depende da estrutura algébrica. Bendita seja ela que nos dá mais liberdade que a do merceeiro. A matemática não é para almas timoratas.

O que se quer dizer então? Não é que a matemática é certa, mas que é desprovida de aventura, instala-se ao balcão de uma mercearia, e as contas batem todas certas. Ora isto é exactamente o contrário da matemática.

É evidente que existem desenvolvimentos autónomos nesta área. Mas se tivesse de escolher um momento particularmente significativo na história da matemática diria que foi a criação da análise infinitesimal. Simplificando, existem dois grandes momentos: um grego, com a demonstração, outro europeu, com a análise.

A análise surge no fim do século XVII com Leibniz e Newton e desenvolve-se ao longo dos século XVIII sobretudo com a escola suíça e francesa (os Bernouilli, Euler, d’Alembert, Laplace).

O problema da análise é que tem duas vertentes. Por um lado é um instrumento poderosíssimo, que invade todas as áreas da ciência. Mas por outro, tem buracos imensos sob o ponto de vista formal. Um dos melhores exemplos disto é Euler. Genial matemático sem dúvida. Mas convenhamos: escrever 0/0 ou 0*∞? Não é de espantar que tenha sido tão desvalorizado perante alguma snobeira formalística da nossa época. Não lhe cai em demérito, no entanto. Quer apenas dizer que era capaz de mexer directamente na massa matemática e dela extrair resultados mesmo sem a imensa ajuda do formalismo. Mas o lapso de Euler é significativo. É o que outros matemáticos sentem estar a fazer na sua época e não são capazes de explicar.

Se os matemáticos padecessem do mal da época, um postulado de eficiência chã, diriam que não tem sentido perder tempo com os buracos da matemática. Aliás poderiam fazer bem melhor: quem repararia nos buracos da análise senão os matemáticos? Poderiam vender-nos um produto inegavelmente maravilhoso, a análise. E se nada nos dissessem dos seus buracos ninguém perceberia nada. Afinal é preciso ser matemático para o perceber.

E no entanto nos últimos duzentos anos grande parte do esforço matemático tem sido o de tapar os buracos impostos pela análise infinitesimal. Aparece Cauchy com a sua teoria dos limites. Vem o bom do Weierstrass e lembra que a coisa não é tão simples. Precisa-se de uma teoria da vizinhança. Aparece Cantor e dá a ideia da teoria dos conjuntos. Frege afirma que a coisa é redutível à lógica. E eis que o incomodativo Russell lembra que a teoria de Frege cai pela base. Pior: Gödel demonstra que um sistema lógico não pode ser consistente e completo ao mesmo tempo. Turing descobre que não se pode decidir a priori que uma proposição é demonstrável.

Simplifico a narrativa, é evidente, mas a História da matemática tem mostrado que quem a cultiva não tem medo da aventura, têm a probidade suficiente para isso. O merceeiro que tem as contas certas poderá ser probo, mas não gera cultura. Os matemáticos têm a vantagem inversa.

Se bem virmos o pano de fundo dos lugares comuns em relação à matemática é o de não ser cultura, de não fazer parte da cultura, de ser dela independente. Numa pequena parte os matemáticos têm culpas por insistirem na natureza universal dela, o que é verdadeiro quanto aos efeitos, mas esquecerem a natureza local da sua criação. No restante, a responsabilidade é de uma sociedade que tem horror à cultura superior e por isso se sente ofendida com a matemática, que lhe lembra que por mais retórica da igualdade que tenha, é apenas ignorante. Pode-se aldrabar na matemática, sem dúvida. Mas é das raras áreas onde mesmo para fazer fraude é preciso inteligência e um mínimo de conhecimentos. E isso custa a um mundo rapidamente cansado de tudo o que implique inteligência.

Quais são os lugares comuns? A matemática são fórmulas, é seria, objectiva, neutra e certa. Depois de termos feito uma viagem (rápida, a distância é curta) pelo cérebro do comum, vemos que afinal não é nada disso que quer dizer. No fundo afirma que a matemática não é cultura, é destituída de fineza, é inumana, vive fora da cultura que a criou e não tem aventura. Por muitas vias esta caracterização pelo vulgo pretende afastar a matemática do ser humano e da cultura, do que é viva.

Não preciso de falar em nome da matemática, que ela fala por si. Mas havendo tanta orelha mouca de vez em quando é preciso quem fale em vez dela. Algumas criações humanas são tocadas por centelha divina e a matemática é uma delas.



Alexandre Brandão da Veiga

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