II. Em nome do dogma
No caso do cristianismo o dogma é enunciado sobretudo em duas línguas: grego e latim. Theotokos e Mãe de Deus não se colam totalmente bem, hipóstases e pessoas igualmente. E por isso uma correcta interpretação do dogma recusa o fetichismo das palavras. A enunciação é rigorosa, mas é enunciação, e por isso com os seus limites. Usa uma língua pré-existente, com as suas conotações, a variação dos seus campos semânticos, as cargas que o contexto histórico e social lhes deu.
Por isso quem não gosta de dogmas, desde que devidamente entendidos, pode cair muitas vezes no feiticismo da palavra. Precisamente o que despreza assume nele uma importância indevida. Acha-a incapaz, mas cola-se a ela, o que é movimento só aparentemente paradoxal. Vemos exemplos disso nas traduções literais de produtos químicos que alguns ecologistas extremos fazem, na tendência para a interpretação literal de que padecem (um exemplo foi a infeliz frase de um presidente americano algo destituído que falou em “cruzada” contra o terrorismo, quando em inglês americano “cruzada” no contexto nada tem de conotação religiosa, mas significando esforço dirigido e obstinado).
O cristianismo nem sempre teve esta consciência da vibração da palavra do dogma em duas línguas. E os equívocos surgiram de uma parte e de outra. Seria por isso desonesto desconsiderar que também houve feiticismo do lado das ortodoxias ocidental e oriental. Mas esta é uma tendência histórica variável, embora muito durável. Já quem nega ao dogma, visando em suma o dogma cristão, e todos eles, recusa esta vibração das palavras e a necessidade de diálogo que impeça o feiticismo da palavra.
O dogma enuncia-se fora do texto sagrado. Pressupõe uma instituição humana dotada de poderes de enunciação, seja o concílio, seja o papa (essa discussão não é determinante aqui). Este simples facto tem várias implicações que nunca são salientadas.
Em primeiro lugar há enunciações essenciais que não são textos sagrados. Em segundo lugar essa enunciação separa claramente o discurso sobre o sagrado dos restantes: do poético, do filosófico, do científico. Sob o ponto de vista das mentalidades a enunciação de dogmas teve por isso um efeito fundamental para a separação da Igreja e do Estado. A lei não enuncia dogmas, o dogma não se confunde com a lei. Em terceiro lugar, existe uma instância autónoma que decide sobre o essencial do sagrado. Este é mais um contributo para a separação das esferas. O qadi muçulmano ou o tribunal ateniense não enunciam dogmas. O pretor romano tutela a religião oficial do Estado romano. Uma sociedade sem dogmas tende sempre para a juridificação da religião. No paraíso grego em que não havia dogmas nem clero é o tribunal cível que condena Anaxágoras e Sócrates por impiedade. São as instituições civis que garantem o respeito da religião.
Este aspecto é importante, porque mostra que a ausência de dogmas não impede a perseguição religiosa, apenas a torna mais aleatória. Os limites do proibido e do permitido são mais fluidos. O dogma é assim o antecessor da garantia constitucional.
Para quem achar que apenas navego em elucubrações, apenas pergunto: será um acaso que a separação entre o Estado e a Igreja tenha sido conseguida apenas no espaço cristão? A existência do dogma cria essa possibilidade, dá instrumentos de linguagem para a separação e pressupõe instituições com autonomia nessa matéria que permitem uma autonomia do religioso. É que a maior tentação foi sempre a do poder político deglutir o religioso, mais que o contrário. O religioso aparece como justificação de um poder político antecedente. Numa perspectiva de longo prazo, não foi tanto o Estado que se libertou da Igreja, mas a Igreja que se libertou do Estado.
Em nome do dogma, porque o dogma carece de nomes, de palavras. Porque o dogma dá nome a uma enunciação sagrada. E porque pelo nome do dogma também as fronteiras do sagrado foram delimitadas, e assim, as da liberdade.
Alexandre Brandão da Veiga
I Em nome da matemática
II Em nome da matemática
III Em nome da matemática
Por isso quem não gosta de dogmas, desde que devidamente entendidos, pode cair muitas vezes no feiticismo da palavra. Precisamente o que despreza assume nele uma importância indevida. Acha-a incapaz, mas cola-se a ela, o que é movimento só aparentemente paradoxal. Vemos exemplos disso nas traduções literais de produtos químicos que alguns ecologistas extremos fazem, na tendência para a interpretação literal de que padecem (um exemplo foi a infeliz frase de um presidente americano algo destituído que falou em “cruzada” contra o terrorismo, quando em inglês americano “cruzada” no contexto nada tem de conotação religiosa, mas significando esforço dirigido e obstinado).
O cristianismo nem sempre teve esta consciência da vibração da palavra do dogma em duas línguas. E os equívocos surgiram de uma parte e de outra. Seria por isso desonesto desconsiderar que também houve feiticismo do lado das ortodoxias ocidental e oriental. Mas esta é uma tendência histórica variável, embora muito durável. Já quem nega ao dogma, visando em suma o dogma cristão, e todos eles, recusa esta vibração das palavras e a necessidade de diálogo que impeça o feiticismo da palavra.
O dogma enuncia-se fora do texto sagrado. Pressupõe uma instituição humana dotada de poderes de enunciação, seja o concílio, seja o papa (essa discussão não é determinante aqui). Este simples facto tem várias implicações que nunca são salientadas.
Em primeiro lugar há enunciações essenciais que não são textos sagrados. Em segundo lugar essa enunciação separa claramente o discurso sobre o sagrado dos restantes: do poético, do filosófico, do científico. Sob o ponto de vista das mentalidades a enunciação de dogmas teve por isso um efeito fundamental para a separação da Igreja e do Estado. A lei não enuncia dogmas, o dogma não se confunde com a lei. Em terceiro lugar, existe uma instância autónoma que decide sobre o essencial do sagrado. Este é mais um contributo para a separação das esferas. O qadi muçulmano ou o tribunal ateniense não enunciam dogmas. O pretor romano tutela a religião oficial do Estado romano. Uma sociedade sem dogmas tende sempre para a juridificação da religião. No paraíso grego em que não havia dogmas nem clero é o tribunal cível que condena Anaxágoras e Sócrates por impiedade. São as instituições civis que garantem o respeito da religião.
Este aspecto é importante, porque mostra que a ausência de dogmas não impede a perseguição religiosa, apenas a torna mais aleatória. Os limites do proibido e do permitido são mais fluidos. O dogma é assim o antecessor da garantia constitucional.
Para quem achar que apenas navego em elucubrações, apenas pergunto: será um acaso que a separação entre o Estado e a Igreja tenha sido conseguida apenas no espaço cristão? A existência do dogma cria essa possibilidade, dá instrumentos de linguagem para a separação e pressupõe instituições com autonomia nessa matéria que permitem uma autonomia do religioso. É que a maior tentação foi sempre a do poder político deglutir o religioso, mais que o contrário. O religioso aparece como justificação de um poder político antecedente. Numa perspectiva de longo prazo, não foi tanto o Estado que se libertou da Igreja, mas a Igreja que se libertou do Estado.
Em nome do dogma, porque o dogma carece de nomes, de palavras. Porque o dogma dá nome a uma enunciação sagrada. E porque pelo nome do dogma também as fronteiras do sagrado foram delimitadas, e assim, as da liberdade.
Alexandre Brandão da Veiga
I Em nome da matemática
II Em nome da matemática
III Em nome da matemática
2 comentários:
Muito interessante. Vou guardar.
eu tb.
ena, que denso.
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