terça-feira, 25 de agosto de 2009

II. Em nome do dogma

No caso do cristianismo o dogma é enunciado sobretudo em duas línguas: grego e latim. Theotokos e Mãe de Deus não se colam totalmente bem, hipóstases e pessoas igualmente. E por isso uma correcta interpretação do dogma recusa o fetichismo das palavras. A enunciação é rigorosa, mas é enunciação, e por isso com os seus limites. Usa uma língua pré-existente, com as suas conotações, a variação dos seus campos semânticos, as cargas que o contexto histórico e social lhes deu.

Por isso quem não gosta de dogmas, desde que devidamente entendidos, pode cair muitas vezes no feiticismo da palavra. Precisamente o que despreza assume nele uma importância indevida. Acha-a incapaz, mas cola-se a ela, o que é movimento só aparentemente paradoxal. Vemos exemplos disso nas traduções literais de produtos químicos que alguns ecologistas extremos fazem, na tendência para a interpretação literal de que padecem (um exemplo foi a infeliz frase de um presidente americano algo destituído que falou em “cruzada” contra o terrorismo, quando em inglês americano “cruzada” no contexto nada tem de conotação religiosa, mas significando esforço dirigido e obstinado).

O cristianismo nem sempre teve esta consciência da vibração da palavra do dogma em duas línguas. E os equívocos surgiram de uma parte e de outra. Seria por isso desonesto desconsiderar que também houve feiticismo do lado das ortodoxias ocidental e oriental. Mas esta é uma tendência histórica variável, embora muito durável. Já quem nega ao dogma, visando em suma o dogma cristão, e todos eles, recusa esta vibração das palavras e a necessidade de diálogo que impeça o feiticismo da palavra.

O dogma enuncia-se fora do texto sagrado. Pressupõe uma instituição humana dotada de poderes de enunciação, seja o concílio, seja o papa (essa discussão não é determinante aqui). Este simples facto tem várias implicações que nunca são salientadas.

Em primeiro lugar há enunciações essenciais que não são textos sagrados. Em segundo lugar essa enunciação separa claramente o discurso sobre o sagrado dos restantes: do poético, do filosófico, do científico. Sob o ponto de vista das mentalidades a enunciação de dogmas teve por isso um efeito fundamental para a separação da Igreja e do Estado. A lei não enuncia dogmas, o dogma não se confunde com a lei. Em terceiro lugar, existe uma instância autónoma que decide sobre o essencial do sagrado. Este é mais um contributo para a separação das esferas. O qadi muçulmano ou o tribunal ateniense não enunciam dogmas. O pretor romano tutela a religião oficial do Estado romano. Uma sociedade sem dogmas tende sempre para a juridificação da religião. No paraíso grego em que não havia dogmas nem clero é o tribunal cível que condena Anaxágoras e Sócrates por impiedade. São as instituições civis que garantem o respeito da religião.

Este aspecto é importante, porque mostra que a ausência de dogmas não impede a perseguição religiosa, apenas a torna mais aleatória. Os limites do proibido e do permitido são mais fluidos. O dogma é assim o antecessor da garantia constitucional.

Para quem achar que apenas navego em elucubrações, apenas pergunto: será um acaso que a separação entre o Estado e a Igreja tenha sido conseguida apenas no espaço cristão? A existência do dogma cria essa possibilidade, dá instrumentos de linguagem para a separação e pressupõe instituições com autonomia nessa matéria que permitem uma autonomia do religioso. É que a maior tentação foi sempre a do poder político deglutir o religioso, mais que o contrário. O religioso aparece como justificação de um poder político antecedente. Numa perspectiva de longo prazo, não foi tanto o Estado que se libertou da Igreja, mas a Igreja que se libertou do Estado.

Em nome do dogma, porque o dogma carece de nomes, de palavras. Porque o dogma dá nome a uma enunciação sagrada. E porque pelo nome do dogma também as fronteiras do sagrado foram delimitadas, e assim, as da liberdade.



Alexandre Brandão da Veiga
I Em nome da matemática
II Em nome da matemática
III Em nome da matemática

2 comentários:

joão wemans disse...

Muito interessante. Vou guardar.

Pôncio Vileda disse...

eu tb.
ena, que denso.