segunda-feira, 24 de agosto de 2009

I. Em nome do dogma

Nada tenho contra os lugares comuns pelo simples facto de serem comuns. Mais uma vez o que considero confrangedor é que sejam tão disparatados na nossa época.

Apanhemos na rua mais um: “eu não gosto de dogmas, de quaisquer dogmas, não acredito nisso”. E depois tipicamente a mesma criatura elogia as religiões sem dogma, a grega, por exemplo.

Repare-se: o interlocutor não afirma que não acredita neste ou naquele dogma, mas nos dogmas em geral. Temos pois de ver o que é estruturalmente um dogma, para ver do que ele não gosta.

Um dogma é uma enunciação em palavras de uma verdade que se considera fundamental, decisiva. Historicamente no caso do cristianismo os dogmas foram enunciados em duas línguas: grego e latim. O dogma enuncia-se fora do texto sagrado. O texto sagrado encerra a verdade revelada ou enunciada. Mas o dogma, para o ser, constrói-se fora desse texto. E é mais que mera exegese. Precisamente por ser mais que mera glosa é formulado em termos francamente estranhos ao texto sagrado e que por isso repõem o seu sentido, revela-o de forma evidente.

Que detesta pois quem detesta os dogmas, todos eles?

Em primeiro lugar não acredita que nada do que é essencial ou decisivo seja enunciável por palavras. Se os recusa a todos é porque acha que nada do que é essencial pode ser veiculado pela palavra. A palavra passa a ser assim mero instrumento lúdico, mera fonação sem grande importância, ou pelo menos importância decisiva. Por isso quando usa a palavra, se a acha mole e impotente, também nós devemos achar a sua mole e impotente.

Esta conclusão liga-se com outro lugar comum da nossa época: uma imagem vale mais que mil palavras. Sempre achei que dependia da imagem e dependia das palavras. Por imagem posso eficazmente pedir um copo de água. Mas duvidosamente posso transmitir de forma eficaz pensamentos abstractos. Apenas por mediação da palavra posso perceber numa imagem esse pensamento. Quem vê um ícone pode ver uma imagem bonita. Pode mesmo intuir parte do seu significado religioso. Duvidosamente percebe as teorias anti-iconoclastas que estão na base do modo de elaboração dos ícones. Mas o lugar comum revela o espírito fragmentado que subjaz ao argumento. Quem o afirma vive num mundo em que não acredita muito que as várias faculdades do ser humano possam colaborar entre si. Os vários sentidos e as várias expressões do ser humano colaboram entre si, podem reforçar-se mutuamente. Para ele existe apenas mensagem em escombros, pedaços que não se entreajudam.

O horror ao dogma está ligado igualmente ao desprezo da racionalidade. Sempre me pareceu que uma razão pobre era presunçosa e invoca títulos que não merece e de que é incapaz de manter o sustento. Uma razão rica conhece as suas fragilidades e lida com elas. O horror puro e simples da racionalidade é mais panfleto que modo de construção, no melhor dos casos, tanto quanto a idolatria da razão. O horror à palavra enunciada é sempre a anunciação de uma impotência: a comunicação racional é ineficaz, é o que nos afirmam, abatida, inepta para o essencial.

1 comentários:

joão wemans disse...

Bom comentário a um aspecto do nosso sentir contemporâneo: o pessimismo.
Obrigado