Incólumes e sitiados
Pasquino
Na caça aos lugares comuns encontro por vezes um, muitas vezes implícito: antigamente (em tempo que nunca se define) havia mais respeito, e havia pessoas que eram apenas respeitadas, sem polémica. Hoje em dia as pessoas são mais agressivas. A crítica é mais feroz.
A Internet é um bom exemplo dessa agressividade. Quando vejo críticas, geralmente anónimas, a algumas das participações na Internet, antes de sequer perceber o que dizem, espanto-me com a violência com que o fazem. Que instintos estão dormentes, que raivas apenas prontas para actuar se guardam por essas cabeças que andam no mundo? E são curiosamente aqueles que em público defendem um amor liofilizado, uma espécie de cristianismo industrializado sob forma mais ou menos laica, que mais praticam este desporto.
Tive uma professora romena que dizia com tom marcial “Os jovens são uns selvagens. Do que precisam as pessoas é de amorrrr” (os seus “rr” rolavam asperamente). Tratava-se no caso de uma mulher inteligente e culta, embora de uma aproximação amorosa ao ser humano de algo difícil entendimento.
A verdade é que de uma forma ou de outra temos sempre alguma ideia de que houve épocas que mantiveram pessoas incólumes. Épocas de maior respeito. Perante esta comparação, muitos outros se sentem sitiados, e a discussão pública parece muitas vezes a de soldados que gritam entre castelos assediados.
Será assim? Houve uma época em que Homero foi respeitado sem limites? Talvez. Mas se a interpretação alegórica das suas obras começa logo no século VI. A.C., quer apenas dizer que o sentido literal suscitava críticas, ou pelo menos dúvidas. E eis senão quando aparece o obsceno, o blasfemador por excelência, esse Platão que quer destroçar Homero, que o desvirtua, que chama "daimon" o que Hesíodo chamava de deus, que pretende mesmo reprimir a poesia. Horror dos horrores.
Mas ao menos Platão era unânime, estaria incólume às críticas. Mas não. Desde os retóricos da sua época até o seu mais feroz crítico, Heraclito o filólogo (não o filosofo), Platão é acusado de ser ímpio, blasfemo. Nem o pobre Platão teve paz. Crisipo era homem de bílis acentuada mas estaria incólume. Ora pois não. Que vêm os epicuristas para lhe descobrir as lacunas.
E eis que aparece Cristo, o único homem que nunca há memória de ter agredido fisicamente ninguém, e ainda hoje em dia desperta ódios cuja origem tem explicação, mas não justiça. Einstein, o incólume? Eis que no fim da vida foi objecto de respeito, mas de condescendência igualmente. Leibniz objecto de chacota pelos “filósofos” do século XVIII. Freud objecto de desprezo e gozo hoje em dia sobretudo pelas pessoas das neurociências, mas igualmente das ciências ditas exactas.
Não interessa agora analisar quais dos juízos são justos ou não. Apenas me importa mostrar até que ponto em nenhuma época houve pessoas absolutamente incólumes, assim como sitiados, se os houve, nem todos ficaram sem saída.
Também a crítica anónima não é de agora. A diferença é que a Internet traz para o registo escrito esse anonimato de forma pública. Anónimos sempre existiram, e geralmente para criticar.
Uma das mais saborosas sátiras de Horácio mostra um seu escravo que aproveita a liberdade das saturnais para o criticar. Fair play do escritor, que deixa para a posteridade a memória de ter sido enxovalhado, sentido de humor da sua parte. Se o escravo tem nome e se dele se guardou memória não foi mérito seu mas de Horácio. Mas teve a coragem de dar a cara, de dar o seu nome, mesmo que valesse pouco.
O anónimo que comenta acidamente na Internet não é o descendente do escravo de Horácio. Esse ao menos aceitou os riscos de dar a cara. O seu antepassado está alhures. No escravo que discutia nas tabernas de Roma, ou no servente que vagueava pela Via del Corso em Roma e em direcção à Piazza del Popolo passava pela Via del Babuino e deixava na estátua de Pasquino, o antepassado do nosso Pasquim, bilhetes obscenos, por vezes com graça, mas sempre... anónimos.
Alexandre Brandão da Veiga
A Internet é um bom exemplo dessa agressividade. Quando vejo críticas, geralmente anónimas, a algumas das participações na Internet, antes de sequer perceber o que dizem, espanto-me com a violência com que o fazem. Que instintos estão dormentes, que raivas apenas prontas para actuar se guardam por essas cabeças que andam no mundo? E são curiosamente aqueles que em público defendem um amor liofilizado, uma espécie de cristianismo industrializado sob forma mais ou menos laica, que mais praticam este desporto.
Tive uma professora romena que dizia com tom marcial “Os jovens são uns selvagens. Do que precisam as pessoas é de amorrrr” (os seus “rr” rolavam asperamente). Tratava-se no caso de uma mulher inteligente e culta, embora de uma aproximação amorosa ao ser humano de algo difícil entendimento.
A verdade é que de uma forma ou de outra temos sempre alguma ideia de que houve épocas que mantiveram pessoas incólumes. Épocas de maior respeito. Perante esta comparação, muitos outros se sentem sitiados, e a discussão pública parece muitas vezes a de soldados que gritam entre castelos assediados.
Será assim? Houve uma época em que Homero foi respeitado sem limites? Talvez. Mas se a interpretação alegórica das suas obras começa logo no século VI. A.C., quer apenas dizer que o sentido literal suscitava críticas, ou pelo menos dúvidas. E eis senão quando aparece o obsceno, o blasfemador por excelência, esse Platão que quer destroçar Homero, que o desvirtua, que chama "daimon" o que Hesíodo chamava de deus, que pretende mesmo reprimir a poesia. Horror dos horrores.
Mas ao menos Platão era unânime, estaria incólume às críticas. Mas não. Desde os retóricos da sua época até o seu mais feroz crítico, Heraclito o filólogo (não o filosofo), Platão é acusado de ser ímpio, blasfemo. Nem o pobre Platão teve paz. Crisipo era homem de bílis acentuada mas estaria incólume. Ora pois não. Que vêm os epicuristas para lhe descobrir as lacunas.
E eis que aparece Cristo, o único homem que nunca há memória de ter agredido fisicamente ninguém, e ainda hoje em dia desperta ódios cuja origem tem explicação, mas não justiça. Einstein, o incólume? Eis que no fim da vida foi objecto de respeito, mas de condescendência igualmente. Leibniz objecto de chacota pelos “filósofos” do século XVIII. Freud objecto de desprezo e gozo hoje em dia sobretudo pelas pessoas das neurociências, mas igualmente das ciências ditas exactas.
Não interessa agora analisar quais dos juízos são justos ou não. Apenas me importa mostrar até que ponto em nenhuma época houve pessoas absolutamente incólumes, assim como sitiados, se os houve, nem todos ficaram sem saída.
Também a crítica anónima não é de agora. A diferença é que a Internet traz para o registo escrito esse anonimato de forma pública. Anónimos sempre existiram, e geralmente para criticar.
Uma das mais saborosas sátiras de Horácio mostra um seu escravo que aproveita a liberdade das saturnais para o criticar. Fair play do escritor, que deixa para a posteridade a memória de ter sido enxovalhado, sentido de humor da sua parte. Se o escravo tem nome e se dele se guardou memória não foi mérito seu mas de Horácio. Mas teve a coragem de dar a cara, de dar o seu nome, mesmo que valesse pouco.
O anónimo que comenta acidamente na Internet não é o descendente do escravo de Horácio. Esse ao menos aceitou os riscos de dar a cara. O seu antepassado está alhures. No escravo que discutia nas tabernas de Roma, ou no servente que vagueava pela Via del Corso em Roma e em direcção à Piazza del Popolo passava pela Via del Babuino e deixava na estátua de Pasquino, o antepassado do nosso Pasquim, bilhetes obscenos, por vezes com graça, mas sempre... anónimos.
Alexandre Brandão da Veiga
2 comentários:
Excelente video a não perder sobre a grande caldeirada de verão que aí vem...
http://www.youtube.com/watch?v=c60yXYBsOs0
Talvez, talvez... mas os portugueses sempre foram um povo mal-educado.
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