segunda-feira, 9 de abril de 2007

De Humanis Corporis Fabrica

A possibilidade de manipular a informação genética, preocupa pela eventual utilização das novas tecnologias para perverter algo que é, intuitivamente, sabedoria da natureza: a biodiversidade. A consciência do risco de um admirável Mundo Novo, está presente nos centros de decisão política e religiosa. Menos evidentes são, para já, os riscos envolvidos no avanço das neurociências. A possibilidade de vasculhar a intimidade do cérebro, levanta questões novas, e levou ao nascimento de uma disciplina emergente: a Neuroética. Através de técnicas como a Ressonância Magnética Funcional, é possível abrir horizontes para o neuromarketing, que consiste na análise da resposta cerebral à imagem de diversas marcas, prevendo a forma de reagir dos futuros consumidores a um determinado produto, sem que os sujeitos da experimentação saibam o que está a ser testado. Registe-se que a Coca-Cola provoca uma resposta cerebral mais “favorável” que a Pepsi. É também possível fazer-se uma “tipagem cerebral”, isto é conhecer o temperamento do indivíduo, e classificá-lo através das ondas cerebrais despoletadas por estímulos diversos, como imagens sorridentes, e prever se a pessoa é, por exemplo, extrovertida, o que traria vantagens a um empregador que procurasse alguém com essas características. Da mesma forma poderão ser detectadas ideias racistas, ainda que conscientemente combatidas. Os potenciais evocados cerebrais representam o último modelo de detector de mentiras, porque a resposta eléctrica do encéfalo a uma pergunta cuja solução se desconhece, é diferente de outra cuja resposta consta do banco de dados cerebral. Assim, será desmascarado o autor de um crime, ao ser-lhe perguntado um detalhe que apenas o seu executor poderia conhecer. Este tipo de evidência já foi, aliás, aceite em tribunais norte-americanos. Outra questão complexa envolve a possibilidade de “doping” cerebral. Os psicoestimulantes, por exemplo a “Ritalina”, estão a ser utilizados para alem das suas indicações terapêuticas, com a intenção de melhorar a “performance” profissional ou académica. Também os medicamentos empregues na perda de memória demencial, poderão eventualmente vir a ser utilizados para aperfeiçoar a capacidade de armazenamento de informação em pessoas saudáveis. As questões que a melhoria artificial das capacidades cerebrais levanta são múltiplas, e vão desde a possibilidade da sua utilização de forma coerciva, directa ou indirectamente, (por exemplo há muito que os pilotos americanos tomam anfetaminas em missões de longa duração), até ao dissipar de conceitos como o mérito, ou a criação de novas desigualdades, dado o preço elevado desses medicamentos.
Estas são algumas das questões que o avanço das neurociências coloca. Porém, a mais séria prende-se com o conceito de livre arbítrio. As neurociências, ao desvendarem os segredos do funcionamento cerebral, reduzem e unificam o conceito de Eu, Cérebro, e Mente, a uma mesma entidade, isto é, não passamos de um saco de químicos com delírio de grandeza. A mente é produto do funcionamento cerebral, o qual por sua vez depende inteiramente de leis físico-químicas imutáveis. Assim, todas as nossas acções, mas também os sentimentos, orientações sexuais ou conceitos morais, estão imparavelmente determinados pelos nossos genes e experiências, algo sobre o qual não temos, evidentemente, qualquer controlo. Lesões cerebrais discretas modificam conceitos éticos, a inexistência de remorso, característica dos grandes criminosos, é herdada. O modelo médico, aliás, já modificou a censura social em relação, por exemplo, ao alcoolismo. Á medida que o modelo determinista avança, a noção de culpa ir-se-á, naturalmente, modificar, e com ela a ideia de pecado ou de justiça. É provável então, que ao entender a máquina biológica que é a pessoa, se sofra o mesmo trauma de quando se percebeu que era a Terra que girava à volta do Sol, ou que efectivamente, os nossos antepassados marchavam a quatro patas. Porem, ao libertar o Homem da culpa, a ciência irá permitir que os infractores da lei sejam tratados de um modo diferente, paradoxalmente, mais humano.
Nuno Lobo Antunes

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