Liberalismo e Arquitectura (2)
Ao longo da história e da existência dos homens em comunidades, sempre houve um permanente compromisso e um permanente conflito que pelo direito e pela arquitectura se procuraram equilibrar. O direito e a arquitectura, como disciplinas que formam os parâmetros da existência comum dos homens, e que existem pela sua determinação e implantação no real quotidiano, geram uma constante e sempre presente expectativa de acção dentro dos limites ou compromissos entre todos e, neste sentido, esse real permite, aspira e constrói um ideal. A expectativas de cada um não se reduzem, assim, dentro do referido compromisso, a uma expressão da vontade individual, seja por juízos não consagrados nos princípios do direito, seja por obras que não interpretem os pressupostos da vida comunitária e de que todos têm uma expectativa individual. O direito exige do juízo e da sentença, que se reporta aos princípios da lei vigorante e à sua interpretação; a arquitectura, desenha-se e constrói-se entre o conteúdo simbólico que é próprio a cada espaço público ou privado e a criação artística que ao arquitecto cabe na interpretação do arquétipo e à sua recriação em novas formas.
Tradicionalmente, a arquitectura sempre fez corresponder as suas formas aos símbolos que em cada época representavam a verdade assumida (compromisso ou sagrado) pelas comunidades e, constituiu-se, por isso, como uma forma de saber com a sua gramática, a sua retórica e o seu modo próprio de problematizar, interrogar e defender as suas razões. Mesmo na modernidade, na modernidade filha da filosofia moderna e do cientismo que lhe é intrínseco, a arquitectura deduziu ou traduziu as formas políticas que no direito ganharam foros de cidadania. Porém, se nas formas tradicionais a arquitectura (incluo sempre o urbanismo na disciplina da arquitectura) assumia toda uma simbólica e um mester, é verdade também que, nas sequelas da modernidade, essa simbólica e esse mester deixou de ser exigido na sua prática quotidiana. Hoje em dia vive-se, como dissemos no início, num tempo em que parecem estar exauridas todas as formas de saber simbólico que outrora, e não assim tão longe, davam uma base comum, comunitariamente aceite por quem fazia arquitectura, e por quem dela apenas usufruía. Mas acontece, conforme a nossa tese, que a arquitectura é o espelho da nossa forma de estar e de pensar e, por isso, a crítica que fazemos ao nosso tempo é em grande parte a crítica que fazemos à imagem das nossas cidades, vilas, aldeias e metrópoles. E essa crítica se tem expressão numa forma de individualismo sem regra que isolou os homens em si mesmos numa espécie de egoísmo sem saída, não se resume a isso, porque o individualismo é a base do reconhecimento do outro, o seu princípio. O que se perdeu foi o que chamámos assumpção de uma verdade, transcendente aos indivíduos, e que os unia ou, melhor dizendo, que exprimia e identificava as suas afinidades. O erro moderno de identificar o princípio da individuação com a descoberta da interioridade, substituiu a descoberta da subjectividade que, essa sim, estabelece a diferença dos indivíduos em relação ao que lhes é afim, chamemos-lhe Uno. O reflexo disso nas aldeias, nas vilas e nas cidades é a imagem de uma procura individual de se representar a si mesmo em vez de representar o Uno de que cada um pode e tem uma perspectiva própria, diferente e singular.
Para aqui chegarmos não foi a arquitectura que percorreu sozinha este percurso. As relações humanas alteraram-se muito. Mas, sobretudo, o que mudou foi o paradigma ou os princípios em que o compromisso entre os homens em comunidade tinham assumido entre si, expressa ou tacitamente.
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