V. Elites: mérito e inerência
A nossa época vive da rotina de elogiar o mérito. Este elogio é feito acriticamente geralmente por pessoas que o têm pouco.
O problema é que o argumento do mérito tem sempre de ser visto com muita cautela.
A modernidade odeia a inerência, mas para o poder fazer tem de a negar onde ela existe. Há coisas que pura e simplesmente inerem. Uma visão lúcida da realidade obriga-nos a reconhecer isso. Há pessoas que são mais bonitas que outras e dificilmente terão mérito na coisa. Mas isso não lhes diminui o valor da beleza.
Mas tomemos um exemplo. Peguemos numa criança perfeitamente banal. Demos-lhe a melhor das educações. Foi obra vantajosa, admito. Mas poderemos fazer com que ela se transforme num Gauss? Poderemos ter a esperança que ela seja um Platão? Aceitemo-lo: as probabilidades são poucas.
Que mérito tem alguém em nascer inteligente, em ser dotado para ganhar dinheiro e fazer negócio? Não escolhemos a nossa inteligência, nem as nossas capacidades para expandir o nosso património. Existe tanto mérito nisto quanto se ter nascido aristocrata.
É evidente que tudo depende do que fazemos dessas qualidades com que nascemos. Mas isso é igualmente verdade para as elites de inerência. Não é raro ver dois irmãos, igualmente nobres, um acabado em duque e outro mantendo-se como mero fidalgo de província.
Por outro lado, o valor do mérito pode conflituar igualmente com o de democracia. Alguém que por mérito adquire o poder, se for esse o seu único fundamento do poder, estaria então legitimado a pisar os direitos dos outros só porque não subiram por não ter mérito.
O mérito não é por isso a grande trave mestra da democracia, como não o é a inerência. Ela pode viver bem com ambas, desde que lhes estabeleça limites. Pode viver bem com ambas reconhecendo ambas, mas sabendo que não são elas as traves mestras da democracia. São instrumentos que ela pode usar, não o seu fundamento.
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