O Portugal de António Barreto
A televisão portuguesa está a passar uma série de programas intitulada: Portugal. Um Retrato Social, de autoria de António Barreto, conhecido sociólogo português. Ainda só passaram quatro episódios de um conjunto de sete e apenas consegui ver dois, mas a amostra permite antever as linhas gerais da história que está a ser contada. Acresce que podemos completar a nossa perspectiva sobre os programas com a leitura de outras obras do autor, em particular, os dois volumes intitulados, precisamente, A Situação Social em Portugal (Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 1996 e 2000).
Antes de mais, os elogios, começando pelos mais importantes. António Barreto revela aqui o seu culto pela qualidade. A série tinha que ter o melhor realizador disponível, Joana Pontes, e a melhor banda sonora, de Rodrigo Leão. Não foram escolhas baseadas na fama ou no êxito, mas sim no gosto do autor, o que deu desde logo uma primeira surpresa agradável, provando serem excelentes escolhas. Depois, o programa tinha de passar num canal importante, em horário nobre, sem intervalos e transmitido em ecrã grande. Presumo que terá custado conseguir isto tudo mas também presumo que Barreto não teria feito o programa se não tivesse conseguido atingir os níveis de qualidade que alcançou. A RTP e a sua direcção também estão de parabéns por terem levado a cabo esta aposta que, aliás, aparece no contexto de outras apostas de programas de qualidade.
Enfim, tudo isto até parece um mundo de sonhos, que sabemos que não é. Mas não é pecado falar de como as coisas são boas quando elas o são.
Um outro elogio que se pode fazer à série ou, pelo menos, ao que até agora dela vi, refere-se ao facto de ela conter um forte elemento pedagógico. Essa pedagogia tem duas vertentes. A primeira é que, ao centrar a apresentação do “Portugal social” numa perspectiva de 40 anos, lembra os avanços do país, muitas vezes esquecidos. O segundo elogio que se deve fazer é que o texto é simples, claro e centrado na observação da realidade descrita pelas imagens.
As duas qualidades elogiadas encerram, todavia, também alguns defeitos – estranho seria se tudo fosse perfeito.
Quanto à perspectiva diacrónica, aos quarenta anos da análise, o que vi em dois programas mostrou-me dois pesos e duas medidas. António Barreto explica a relativa pobreza social do país pelo facto de muita gente ter chegado há pouco tempo à vida urbana, já que uma grande parte do país era nos anos 1960 ainda rural. Explica também, em parte pelo menos, a desordem da organização do território pelo mesmo tipo de razões. Todavia, quando olha para a justiça, não centra a análise na comparação com o que era a justiça há 40 anos. Faz um enunciado dos maus funcionamentos e das injustiças do sistema judiciário nacional, o que não chega como explicação. Também não chega dizer que a justiça funciona mal porque o legislador não actua, por falta de interesse.
É preciso ter em atenção que a justiça portuguesa funciona mal porque é toda pública e não pode ser privatizada e por isso tem de tratar dos problemas dos pobres (que são muitos) juntamente com os da classe média. Ao contrário dos hospitais, por exemplo. Também são necessárias explicações económicas: a justiça funciona mal porque é atrasada e tem níveis de stock de capital físico e humano ainda relativamente baixos.
Quanto à simplicidade do texto dos programas e à aparente simplicidade da análise, que devem ser elogiadas, também elas têm consequências que podem não ajudar a uma boa interpretação do que é o País. Deve desde já avançar-se que a simplicidade de análise é propositada. Barreto gosta de dizer que odeia o “sociologuês” e prefere lançar frases simples em contextos simples, ainda mais porque parte do princípio – permito-me presumir – de que o leitor ou ouvinte é inteligente. Mas ao apresentar as matérias num registo simples e narrativo, o autor não explicita convenientemente a profunda interpretação que subjaz a todo este exercício. É ela que as coisas podiam ser muito diferentes do que verdadeiramente são e que isso não acontece porque não houve mobilização política ou social que levasse a um melhor resultado.
Ora esta interpretação de que Portugal “está no estado em que está” porque somos socialmente inaptos, politicamente inábeis ou economicamente ineficientes carece de profundos exercícios de demonstração que uma “simples” narrativa não dá. Não é este o espaço para uma interpretação mais liberal da realidade portuguesa – uma em que se defende que o resultado a que chegámos é fruto da melhor acção de todos os agentes e que se não chegámos a outro resultado é porque os agentes são estes e não outros. Isso aparecerá, penso eu, em outros locais.
Posso todavia acrescentar que essa interpretação alternativa que prefiro decorre de comparações internacionais. Essas comparações são cruciais para a correcta análise das sociedades, sobretudo das mais atrasadas como a portuguesa. Mas elas não são convenientemente contempladas nos dois episódios que vi desta série, o que é uma última deficiência que gostava de mencionar. De facto, é necessário recorrer constantemente a cuidadosas comparações da realidade nacional com o que sucede em outras partes do mundo. Para serem cuidadosas, essas comparações não podem ser estáticas. Têm de envolver comparações dinâmicas referenciadas a diferentes períodos históricos. Portugal da primeira década do século XXI não pode ser comparada com a Grã-Bretanha de Tony Blair, mas sim com a Grã-Bretanha de algures longe no século XX ou mesmo de finais do século XIX. Para se perceber Portugal dos nossos dias, não se pode olhar apenas para a Espanha de pós 1986. É preciso também conhecer a Espanha de antes da Guerra Civil de 1936-39. Quando esses exercícios são levados a cabo, somos levados a concluir que todas as nações têm os seus erros e que, regra geral, não há erros piores do que os outros (a não ser, obviamente, os de ordem moral). Esta linha de interpretação leva a conclusões mais reconfortantes do que as dadas pela visão de Portugal que António Barreto nos dá.
O debate está e sempre estará em aberto e é seguramente muito agradável fazê-lo tendo como pretexto um programa de televisão da qualidade do Portugal. Um Retrato Social.
Ver: http://www.rtp.pt/wportal/sites/tv/portugal_retrato/index.shtm
Antes de mais, os elogios, começando pelos mais importantes. António Barreto revela aqui o seu culto pela qualidade. A série tinha que ter o melhor realizador disponível, Joana Pontes, e a melhor banda sonora, de Rodrigo Leão. Não foram escolhas baseadas na fama ou no êxito, mas sim no gosto do autor, o que deu desde logo uma primeira surpresa agradável, provando serem excelentes escolhas. Depois, o programa tinha de passar num canal importante, em horário nobre, sem intervalos e transmitido em ecrã grande. Presumo que terá custado conseguir isto tudo mas também presumo que Barreto não teria feito o programa se não tivesse conseguido atingir os níveis de qualidade que alcançou. A RTP e a sua direcção também estão de parabéns por terem levado a cabo esta aposta que, aliás, aparece no contexto de outras apostas de programas de qualidade.
Enfim, tudo isto até parece um mundo de sonhos, que sabemos que não é. Mas não é pecado falar de como as coisas são boas quando elas o são.
Um outro elogio que se pode fazer à série ou, pelo menos, ao que até agora dela vi, refere-se ao facto de ela conter um forte elemento pedagógico. Essa pedagogia tem duas vertentes. A primeira é que, ao centrar a apresentação do “Portugal social” numa perspectiva de 40 anos, lembra os avanços do país, muitas vezes esquecidos. O segundo elogio que se deve fazer é que o texto é simples, claro e centrado na observação da realidade descrita pelas imagens.
As duas qualidades elogiadas encerram, todavia, também alguns defeitos – estranho seria se tudo fosse perfeito.
Quanto à perspectiva diacrónica, aos quarenta anos da análise, o que vi em dois programas mostrou-me dois pesos e duas medidas. António Barreto explica a relativa pobreza social do país pelo facto de muita gente ter chegado há pouco tempo à vida urbana, já que uma grande parte do país era nos anos 1960 ainda rural. Explica também, em parte pelo menos, a desordem da organização do território pelo mesmo tipo de razões. Todavia, quando olha para a justiça, não centra a análise na comparação com o que era a justiça há 40 anos. Faz um enunciado dos maus funcionamentos e das injustiças do sistema judiciário nacional, o que não chega como explicação. Também não chega dizer que a justiça funciona mal porque o legislador não actua, por falta de interesse.
É preciso ter em atenção que a justiça portuguesa funciona mal porque é toda pública e não pode ser privatizada e por isso tem de tratar dos problemas dos pobres (que são muitos) juntamente com os da classe média. Ao contrário dos hospitais, por exemplo. Também são necessárias explicações económicas: a justiça funciona mal porque é atrasada e tem níveis de stock de capital físico e humano ainda relativamente baixos.
Quanto à simplicidade do texto dos programas e à aparente simplicidade da análise, que devem ser elogiadas, também elas têm consequências que podem não ajudar a uma boa interpretação do que é o País. Deve desde já avançar-se que a simplicidade de análise é propositada. Barreto gosta de dizer que odeia o “sociologuês” e prefere lançar frases simples em contextos simples, ainda mais porque parte do princípio – permito-me presumir – de que o leitor ou ouvinte é inteligente. Mas ao apresentar as matérias num registo simples e narrativo, o autor não explicita convenientemente a profunda interpretação que subjaz a todo este exercício. É ela que as coisas podiam ser muito diferentes do que verdadeiramente são e que isso não acontece porque não houve mobilização política ou social que levasse a um melhor resultado.
Ora esta interpretação de que Portugal “está no estado em que está” porque somos socialmente inaptos, politicamente inábeis ou economicamente ineficientes carece de profundos exercícios de demonstração que uma “simples” narrativa não dá. Não é este o espaço para uma interpretação mais liberal da realidade portuguesa – uma em que se defende que o resultado a que chegámos é fruto da melhor acção de todos os agentes e que se não chegámos a outro resultado é porque os agentes são estes e não outros. Isso aparecerá, penso eu, em outros locais.
Posso todavia acrescentar que essa interpretação alternativa que prefiro decorre de comparações internacionais. Essas comparações são cruciais para a correcta análise das sociedades, sobretudo das mais atrasadas como a portuguesa. Mas elas não são convenientemente contempladas nos dois episódios que vi desta série, o que é uma última deficiência que gostava de mencionar. De facto, é necessário recorrer constantemente a cuidadosas comparações da realidade nacional com o que sucede em outras partes do mundo. Para serem cuidadosas, essas comparações não podem ser estáticas. Têm de envolver comparações dinâmicas referenciadas a diferentes períodos históricos. Portugal da primeira década do século XXI não pode ser comparada com a Grã-Bretanha de Tony Blair, mas sim com a Grã-Bretanha de algures longe no século XX ou mesmo de finais do século XIX. Para se perceber Portugal dos nossos dias, não se pode olhar apenas para a Espanha de pós 1986. É preciso também conhecer a Espanha de antes da Guerra Civil de 1936-39. Quando esses exercícios são levados a cabo, somos levados a concluir que todas as nações têm os seus erros e que, regra geral, não há erros piores do que os outros (a não ser, obviamente, os de ordem moral). Esta linha de interpretação leva a conclusões mais reconfortantes do que as dadas pela visão de Portugal que António Barreto nos dá.
O debate está e sempre estará em aberto e é seguramente muito agradável fazê-lo tendo como pretexto um programa de televisão da qualidade do Portugal. Um Retrato Social.
Ver: http://www.rtp.pt/wportal/sites/tv/portugal_retrato/index.shtm
3 comentários:
Também eu tenho visto muito menos episódios deste Um Portugal Social do que gostaria. No entanto, o que vi permite-me partilhar o essencial do que é dito pelo Pedro Lains.
Apesar disso, há algo que o Pedro não refere e que assinalo, porque verdadeiramente me impressionou. A saber, a aparente nostalgia que perpassa... De algum modo, e apesar da dureza testemunhada em tantos relatos, parece haver uma certa saudade desse Portugal de outrora, dessa vida que se sabe definitivamente substituída por outra. Consciente ou inconscientemente, é iniludível uma certa exaltação dos velhos tempos em que, embora mais pobrezinhos, não deixávamos de ser mais felizes, honrados e sãos.
É bem verdade que, em muitos casos, se recorda uma juventude longínqua e que tal memória tem sempre um filtro próprio, que tudo doura ou mitiga, mas o facto é que parece assumir-se que as coisas são sentidas assim. E, mais significativamente, na edição final do documentário, tal não merece qualquer detenção, explicação ou desconstrução. Será que ninguém deu por isso? Será que ninguém deu importância ao facto? Ou será que se preferiu não pensar muito no assunto?
Do que vi dos programas do António Barreto (e confesso que não os vi todos, e alguns não completamente, o que me poderá deixar na qualidade de alguns conterrâneos que falam de tudo inclusivamente do que não conhecem…) ficam-me as seguintes impressões:
O programa parece-me parado, o que se agrava com o tom monocórdico e derrotado/fatalista (pelo menos assim me soou a mim) como é relatado. Talvez seja isso a que a Sofia se refere no seu comentário.
É uma análise da evolução da nossa situação social nos últimos 50 anos (já vi várias alusões ao ano de 58, em que nasci, pelo que falamos de perto de um meio século.)
Releva também e em minha opinião o facto de que esta análise não inclui qualquer análise comparativa com realidades de outros paises. Vejamos se me explico. De facto o progresso que se verificou em Portugal nos últimos 50 anos é notório. Mas de igual forma o seria se Barreto comparasse 1900 com 1950. E sera que o não é ainda mais noutros países europeus?
O que me interessaria ver também abordado seriam as evoluções comparativas com outros países com realidades semelhantes (ou mesmo não) às nossas durante o mesmo período de tempo.
Talvez isso nos permitisse ter uma noção de que tipo de performance nacional (ou falta dela) estamos nós realmente a falar.
De facto o ritmo com que acedemos ao progresso não é um argumento dispiciendo, muito menos nos dias de hoje em que o mundo está cada vez mais plano…
Tenho visto os episódios todos e tenciono ver também as restantes. Terei sempre tempo para ouvir, ver e ler o que o António Barreto tem para dizer.
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