segunda-feira, 23 de abril de 2007

A dita superioridade da arte

A intervenção do João Luís Ferreira tem a vantagem de repor uma discussão velha, se não como o mundo, pelo menos de dois ou três séculos.

Mas temo bem que padeça de vários males que contaminam a cultura moderna, sobretudo a portuguesa.

Indo à questão regional para começar. Num país sem cultura científica e de fraca criação científica parece-me pouco proveitoso que se menorize a ciência. Um país que produz a grande ciência pode-se dar ao luxo de a desprezar. Pode haver um Heidegger quando existe Riemann e Mach. Quando alguém diz que despreza a nobreza de nascimento sem ter a certeza dos seus costados, existe sempre alguma suspeição de inveja. Mesmo que não seja esse o caso, exige-se uma maior contenção. Da mesma forma, que um pais que nunca foi capaz de produzir grande ciência tenha correntes que a desprezem, isso não doura os seus brasões.

Em geral, a questão é bem mais complexa.

Em primeiro lugar, porque a matemática é uma forma superior de poesia. E é bem conhecido que na física o critério de escolha último entre duas teorias semelhantemente eficazes é o da elegância. A ciência, a grande ciência, faz-se também com base em critérios estéticos.

Mas estes critérios estéticos não são apenas uma característica de uma tribo, a dos físicos teóricos, ou a dos matemáticos. É que a grande ciência é em si mesma uma forma superior de poesia.

É conhecida a frase de Pessoa, que afirma que o binómio de Newton é tão belo quanto a Vénus de Milo. Não se pode dizer que estivesse Pessoa actualizado nos seus conhecimentos matemáticos. Quando vivia já a topologia, a álgebra abstracta, o cálculo tensorial, bem como a lógica matemática tinham desenvolvimentos em relação aos quais o binómio de Newton fica como uma arma do tempo da pedra lascada. Quando Pessoa escreve, já Hadamard escrevia e nem Poincaré era vivo. Hilbert era já um clássico e lidar com geometrias não euclidianas era uma banalidade universitária. A matemática de Pessoa é feita para impressionar críticos literários e não matemáticos.

Esta lógica de oposições nasce em grande medida com a modernidade, que opõe as ciências às letras, na sequela da velha discussão francesa entre Antigos e Modernos.

A unidade do saber era dado para os Gregos e acarinhado pelos autores cristãos europeus, mesmo que existissem especialidades. Mozart apaixonou-se pelas matemáticas e Valéry não lhes era indiferente. Isso não os impediu de terem maestria na arte.

Se a ciência e a arte lidam com os grandes problemas do ser humano (se de modo incompleto ambas, essa é outra questão), se é certo que ambas são, quando idolatradas, desvirtuadas da sua última função, que é de natureza religiosa (longa demonstração que aqui não farei), ambas vivem de uma mesma origem e alimentam-se reciprocamente.

Serres mostra como a geometria nasce da discussão judicial, sendo certo que esta nasce da poesia. Mas a natureza matemática da poesia é também irrecusável, desde a poesia numérica medieval (antepassada da poesia dita concreta) até à métrica grega e latina, ou a do Mahabaratha.

Todos os grandes cientistas foram cultores da arte. Quando vejo um que a despreza já sei que é apenas uma quantidade negligenciável na História da ciência. Mas inversamente, mesmo que disso muitas vezes não tenham consciência, os grandes artistas vivem de estruturas matemáticas. A regra de ouro na arte clássica lembra-nos disso. E não podemos esquecer que um soneto é antes do mais uma estrutura matemática. Números de sílabas, de versos, de estrofes, sequências de rimas e conteúdos. Sem estrutura matemática um soneto não se reconhece.

E Goethe, que era em mais cristão do que dizia, e bem longe de ser medíocre poeta, lembrou que o canal do Panamá era bem mais importante que toda a poesia do mundo. Em parte “boutade”, mas em parte lembrança de que a grandeza tem de sofrer algumas humilhações para não sofrer de inflação e não se esquecer de que todas as grandezas nascem na Terra ou por ela passam.








Alexandre Brandão da Veiga

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