sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Bento XVI um papa mal amado? III

4. O Complexo do príncipe inocente

João Paulo II era papa benquisto, logo o sucessor não o é. Parece simples, mas mostra o primitivismo da nossa época. O curioso é que em todo o pontificado de João Paulo II houve uma tendência para se dizer que os aspectos mais criticáveis eram da autoria do Inquisidor geral.

Temo bem que isto seja esquecer que: a) Ratzinger foi convidado três vezes por João Paulo II, recusou duas, e só foi para Roma com ordem do papa; b) o papa João Paulo II estava bem longe de ser destituído intelectualmente, tinha ideias próprias, sabia bem quem era Ratzinger e quem estava a recrutar.

Tendemos a olhar com condescendência as ditas multidões medievais e ignorantes (1) que consideravam que os ministros eram culpados e o rei era inocente. Sorrimos quando vemos o povo de França ou da Rússia criticar os ministros, e apelar ao rei, que nada saberia. No entanto talvez estejamos a falar mais do comportamento da nossa época que do de épocas passadas.

Este é um entre muitos sinais da falta de sentido crítico da nossa época. No fundo comportamo-nos nós como as multidões “medievais” e analfabetas. O príncipe é inocente, é apenas mal aconselhado por maus ministros. E Ratzinger é um deles. Nunca o deixará de ser.


5. Não é romântico

O que é puro, o que é válido, nasce espontaneamente, é essa a herança romântica. Olhamos para Dom Quixote como um idealista e esquecemo-nos de olhar para Sancho Pança, que foi um servidor fiel. Generoso é o Pança, Quixote vive o seu sonho sem ter em conta o que pode custar aos outros, o que os faz sofrer.

A nossa época é romântica, neo-romântica se se quiser. As ideias de espontaneidade, de fluxo vital, de originalidade, de sinceridade são românticas. E isto são ideias muito saudáveis para uma época que não é romântica. E letais para épocas que o são. Fazemos chiste com os românticos apenas porque os vemos muito próximos.

Não é por acaso que este papa salientou a diferença entre a sinceridade e a verdade. Desde que as pessoas sejam sinceras, espontâneas, parece que tudo se justifica. Eu posso sinceramente odiar alguém, sinceramente ser injusto, sinceramente dizer inanidades. Desde que seja sincero, tudo se justifica.

O romantismo tem aspectos geniais, mas desemboca sempre em becos sem saída. Pressupõe um mito da perpétua criação, de que todos somos únicos na capacidade criativa, que fazemos coisas novas a todo o momento. No fundo é a teoria do “Bootstrap” do barão de Munchäusen, que pega nas suas próprias botas e segurando-as assim consegue voar. Não é por acaso que o romantismo acaba na náusea de viver (2).

O romantismo não gosta de instituições. Qual é o problema de ser membro de uma instituição? O que revela sobre a nossa época é o horror que tem da organização perene, do controlo do caos, da racionalidade, da memória (e é bem sabido que o horror e ânsia estão sempre juntas ). Uma instituição diz o contrário: diz que o ser humano não nasceu no vazio e alimenta-se da tradição. E que para criar é preciso uma fonte que nos alimente.

Ou seja, insuportável por ser optimista (3) e não ser romântico. Instituições e optimismo estão intimamente ligados, ao contrário do preconceito romântico diz. Uma instituição é opressiva se for apenas escora, mas libertadora se for projecto. O que não se suporta é que não participe da nossa náusea romântica de viver.


6. É alemão

Defeito incurável porque a nossa época sabe que a cultura alemã se reduz ao nazismo. Mas isso é esquecer a imensa dívida que temos à cultura alemã sob o ponto de vista intelectual, artístico e espiritual.

Pertenceu à juventude Hitleriana, diz-se. Pois: era obrigatório. Mas seria curioso ver quem o critica ter a coragem que ele teve na altura de não ir às sessões de endoutrinamento. É fácil ser herói de secretária. É aliás significativo como a modernidade rapidamente acha que uma criança de catorze anos deveria ter responsabilidade heróica, quando ao mesmo tempo choraminga pelo trabalho infantil e pela pedofilia. Onde estão os seus limites da infância?

Mas que seja alemão não deixa de ser importante. Sob o ponto de vista da caricatura podia-se dizer que traz o rigor alemão. Mas este sempre esteve presente na cúria e há outras escolas de rigor. Mais importante que isso traz outras coisas à igreja.

A Alemanha é o local onde a teologia mais cresceu por muitas razões: pela sua grande erudição, mas sobretudo pela necessidade de se confrontar com os protestantes. O católico alemão não é apenas afectivo, de lapa assente na rocha, como tradicionalmente o era o latino. É um catolicismo de convicção, de discussão, de luta, de pensamento.

A Alemanha fez estudos bíblicos com mais profundidade que outros países. As teorias críticas da bíblia foi na Alemanha que nasceram. É sobretudo graças aos alemães que percebemos que os textos não surgiram de uma assentada, que foram constituídos por camadas. Isto que afectou os protestantes e a sola scriptura, acaba por ter um efeito salutar entre os católicos e mais tarde os protestantes, ao fazer perceber a importância da Tradição.

Mas mais importante que isso, Bento XVI é alguém que conhece bem os riscos, tanto do vazio como da saturação teológica. Porque a saturação teológica tem os seus riscos, e a Alemanha conheceu-os melhor que ninguém. Feuerbach é mais corrosivo que La Méttrie e Nietzsche mais incendiário que Voltaire.

Não é por isso um obcecado com teologia. Daí que seja um dos seus teólogos favoritos Santo Agostinho. Não apenas o da Confissões, mas o dos Solilóquios (4). Que a sua palavra seja sobretudo teológica nada tem a ver com obsessão, mas com necessidade, pois na época impera o vazio teológico. É o vazio que parece dar imagem de excesso ao que mais não é que moderação.
Ratzinger lembra à igreja, como João Paulo II já tinha feito antes, mas agora com mais força, que a fé não é só afecto. É pensamento também. Essa a herança alemã.


1 A persistência de uma imagem de uma Idade Média ignorante não precisa de um cotejo com os seus grandes génios. Basta a leitura de homens cultos como Rémy d’Auxerre e Henri de Gand para se perceber a natureza intensamente técnica da sua cultura.
2 As teorias do tipo “bootstrap” não podem ser desconsideradas sem mais. Desde a física quântica à teoria da espontaneidade de Bergson existe um assento sério para reflectir sobre elas. Coisa bem diversa é usá-las para evitar a reflexão.

3 Não é por acaso que é próximo de Orígenes.
4 Sob o ponto de vista literário é obra a vários títulos peculiar. Usa a forma de diálogo clássica, mas é em boa verdade um monólogo da alma consigo mesma. E se no diálogo platónico os intervenientes podem ser mesmos grosseiros, longe da atitude dita clássica, em Santo Agostinho o dialogante chora, desespera, aparece em carne com as suas fraquezas.

2 comentários:

João Wemans disse...

Muito obrigado por estes apontamentos úteis e interesantes, e pela coragem de os partilhar.

<> : é bom meditarmos nisso, assim como na importância da FIDELIDADE
- sobretudo para os que de alguma forma se comprometeram, p.ex. casados, religiosos(as)...

JW

João Wemans disse...

Muiro obrigado por estes apontamentos úteis e interessantes, e pela coragem de os partilhar.

´comportamo-nos nós como as multidões “medievais” e analfabetas´

- é bom meditarmos nisso, assim como na importância da FIDELIDADE; sobretudo para os que de alguma forma se comprometeram, p.ex. casados, religiosos(as)...