A dita filosofia islâmica III
Podemos
dar ainda outro passo.
E
o que se passa precisamente com a gnose, mística e teosofia cristãs? Têm mais
variantes que a muçulmana ? A resposta é simples: sim.
Com
efeito, as variantes desencarnadas que existem no islão são as que a Europa
desde sempre teve, seja com os hermetismos, os neopitagorismos, os
neopaganismos. Marcílio Ficino e Boehme, e mesmo até um certo Camões do « Sôbolos rios que vão» («Mas ó tu, terra de
glória. | S'eu nunca vi tua essencia, | Como me lembras na ausencia? | Não me
lembras na memoria, | Senão na reminiscencia: | Que a alma he taboa rasa, | Que
com a escrita doutrina | Celeste tanto imagina, | Que vôa da propria casa, | E
sobe á patria divina»).
Mas
a Europa tem mais uma variante, que o islão não tem. A variante que assenta na
Incarnação. Santa Teresa de Ávila, São João da Cruz e Mestre Erckhart não irão
menos longe que os místicos muçulmanos. No entanto, têm mais uma possibilidade:
a de uma mística incarnada.
Podemos
dar ainda outro. É que mesmo a teologia racional nunca teve um lugar eminente
no islão. Este oscilou entre o legalismo e a teosofia (termo que aparece
obcecantemente no autor). Já são três dimensões culturais que faltam à tão rica
cultura islâmica.
Por
outro lado, enquanto no Ocidente a separação clara entre a teologia e a
filosofia ocorre com a escolástica, esta separação nunca ocorre no islão (pp.
14-15).
As
palavras mais usadas são as de teosofia ou teosófico e variantes (v.g. pp. 47,
106, 220, 246, 289, 299, 300, 301, 346, 356, 360, 403, 404, 412, 419, 425, 430,
431, 433, 435, 448-449, 454, 456, 473, 481, 493, 494), gnose ou gnóstico (v.g.
pp. 46, 136, 201, 208, 209, 220, 244, a ideia do Anjo que assustou o «dogma»
islâmico é em si mesma gnóstica a pp. 245-246; pp. 269, 299, 301; na Andaluzia
a pp. 307, 313, 322, 323; pp. 356, 404, 412, 428, 434, 435, 439, 447, 454, 456,
461, 473), esotérico (v.g., pp. 64, 68-69, 429, 443), profético (pp. 64),
maniqueu (p. 296), hermético (p. 331), precisamente para afirmar que a
filosofia continuou depois de Averroïs (p. 64).
O
próprio Corbin reconhece que a filosofia deixou de ser uma escola viva no islão
sunita, só sobrevivendo entre os xiitas (p. 65).
Mas
se sobreviveu foi como teosofia, tendo esgotado a fecundidade como dialéctica
(p. 86). A filosofia acaba por se tornar gnose (p. 121). Entre os xiitas há
tendência apofática que torna difícil um discurso sobre os atributos de Deus
(pp. 169, 472).
Mas,
se o apofatismo não é incompatível com a filosofia (tudo depende da dose certa,
São Tomás de Aquino tem a sua dose de apofatismo), a suspensão do juízo é
erigida em regra quando se manda «ter a fé mas sem perguntar como» (pp.
170-171).
Pode-se
mesmo perguntar se a filosofia se encontrava em casa no islão (é o próprio
Corbin quem o pergunta a p. 181). Ou ainda, é o próprio Corbin a colocar a
hipótese da incompatibilidade entre o islão legalista (sobretudo sunita) e a
filosofia, fazendo com que a verdadeira oposição seja entre o exoterismo
(legalista) e o esoterismo (místico) (p. 234). A gnoseologia de Avicena é antes
do mais uma angelologia (p. 241).
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