quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

AINOMIS... parece que assim não faz mal!?

Venho falar-vos a pretexto dos business angels. Uma boa ideia – quero desde já frisá-lo –, com um nome que dá que pensar. E é sobretudo o nome o que aqui me interessa.
Business angels, ou angel investors, são antigos empresários, ou executivos, que, individualmente, ou associados entre si, fornecem o capital necessário para o arranque de projectos empresariais que, pelo risco que comportam, têm dificuldade no acesso aos meios de financiamento tradicionais. Garantindo um retorno financeiro do seu investimento (o qual, até pelo risco envolvido, é de pelo menos 15 vezes o montante do capital investido num prazo de 5 anos), mantêm-se deste modo activos no mundo dos negócios, agora ao seu próprio ritmo, ajudando estas empresas emergentes com a sua experiência e com os seus contactos.
É sem dúvida uma boa ideia. É notoriamente business. Já não me é tão evidente que sejam angels. O nome, contudo, vingou, e com ele a ideia foi atrás. Terá, por isso, interesse explicá-la.
A palavra anjo (do latim angelus; do grego άγγελος) significa genericamente enviado, ou mensageiro, sentido que encontramos expresso na maioria das religiões. Originariamente referida a um mensageiro tanto divino como humano (é o caso do termo hebraico מלאך - mal´ach, que assim será traduzido ainda na Bíblia dos 70), o seu significado foi-se historicamente restringindo aos entes divinos, ou espirituais (como acontece já na Vulgata), sendo hoje normamente considerados como entes espirituais por meio dos quais Deus comunica a sua vontade aos homens.
A enorme importância destes seres que constantemente sobem e descem a escada que vai da terra para o céu, numa a sociedade em que os fins temporal e espiritual do homem não estão dissociados, como é evidentemente o caso da sociedade medieval cristã, fez com que os seus teólogos desde muito cedo se dedicassem à indagação da sua natureza, inclusivamente em vista da grande diversidade com que aparecem ao longo da Bíblia.
São especialmente importantes, neste sentido, o tratado De coelesti hierarchia, atribuído ao Pseudo-Dionísio, as homilias de São Gregório Magno nos seus comentários In Evangelis, e o tratado De angelis, incluido na primeira parte da Summa theologiae de São Tomás de Aquino, a partir dos quais os anjos são compreendidos, consoante a sua maior ou menor proximidade de Deus, segundo (três) ordens e (nove) categorias diversas, que começam nos serafins e nos querubins e acabam nos arcanjos e nos anjos.
Isto nunca foi doutrina de fé, embora tenha sido largamente aceite e divulgado no seio da Igreja, que sempre se preocupou em compreender este natural acesso ao sobrenatural. Assim se discutiu a sua natureza (consensualmente considerada espiritual, num grau superior ao do homem); a sua essência (individual); o seu número (finito, mas prodigioso), o seu género (excepção feita à Igreja de Jesus Cristo dos Últimos Dias, vulgo mormons, quase sempre considerados como seres assexuados); a sua liberdade (no judaísmo e no cristianismo, ao contrário do islamismo, os anjos têm livre arbítrio, podendo desobedecer a Deus); as suas tarefas (velar pelo poder de Deus; comunicar a sua vontade aos homens; proteger pessoas, famílias e nações...); etc.
Talvez mais importante do que isto, porém, são as suas representações artísticas e populares, que permanecem para lá das discussões que hoje se considera serem apenas sobre o sexo dos anjos. Qualquer criança, de facto, ao rezar ao seu anjo da guarda, quase que imediatamente o imagina com uma figura humana de extraordinária beleza, com um halo na cabeça, envolto em luz, com asas e capaz de voar. E rezando, de olhos fechados, talvez o anjo venha, com o tempo, a falar com ela, protegendo-a e ensinando-lhe os caminhos para Deus.
Dir-me-ão que isto é uma história para crianças, útil apenas enquanto elas crescem e não conseguem ver as coisas pelos olhos verdadeiros da razão. Talvez sim. Ou talvez não. Certo é que depois deste milenar labor teológico, a Idade Moderna procedeu a uma matematização totalitária da realidade, a partir do que se estabeleceu a irracionalidade de toda a expressão privada na vida pública e se confinou absolutamente a presença de Deus à esfera da intimidade de cada pessoa. E os anjos, no seio desta nova religião, foram também reduzidos a meros entes racionais: matemáticos, primeiro, isto é, convertíveis em princípios consonantes com a nova ciência; e imaginários, depois, isto é, meras ilusões, fruto da ignorância e da superstição, adversária da verdadeira religião – a razão matemática!
Voltando ao princípio desta nossa história, é óbvio, portanto, que estes anjos dos negócios não são verdadeiros anjos. É significativo, porém, que se apresentem e sejam aceites como tal, pois que isso nos dá um indicador fiável sobre aquilo em que acreditamos: à superfície, no dinheiro. Quando ele chega tocam trombetas e a nossa alma rejubila no Senhor! Por isso dizia Sofia de Mello Breyner (num conto sobre Os Três Reis do Oriente), que «os deuses que existiram extinguiram-se há muito e aquilo que adoramos é apenas a cinza do divino. Qual é, na idade em que vivemos, o homem que viu um anjo?»
Não falo contra o dinheiro. Ao contrário: diariamente luto por ele. Mas o preceito segundo o qual devemos dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, permanece, do meu ponto de vista, admirável. Desde muito cedo, aliás, a igreja cristã rejeitou formalmente a pretensão do mago Simão, que terá querido comprar aos apóstolos o poder de fazer milagres. E quando os próprios representantes da igreja, lamentável e generalizadamente, instituiram a troca de bens espirituais por bens materiais, foram sempre duramente combatidos.
É conhecida, nesse sentido, a luta travada pela renovação espiritual da igreja, que levou à fundação das ordens cisterciense, franciscana e dominicana... Mais conhecidas são as condenações da simonia, ou acto de Simão, feitas por Dante (n´ A Divina Comédia, os simoníacos, e entre eles o próprio papa Nicolau III, eram enterrados no terceiro fosso do oitavo círculo dos infernos, num ritual baptismal invertido), por Maquiavel e por Erasmo... E ainda mais conhecida a história de Lutero, que, lutando contra o tráfico dos bens espirituais que se generalizara na igreja, veio a negar a autoridade do papa, que considerou ser o anti-Cristo.
Estai atentos, porém, homens de Deus, porque a luta não acabou e continua. E tal como um anjo não nos sossega quando precisamos de dinheiro para pagar as nossas contas, assim o dinheiro não serena a criança que reza pedindo para dormir em paz. E numa altura em que os Estados começaram já a perder as suas soberanias e o imperium procura novas formas para se estabelecer, temos que voltar a saber como podemos ser unidos no acolhimento de uma força verdadeiramente espiritual. É um dos desafios estruturais do nosso tempo, mas isso vai demorar ainda. Seja como for, e até que chegue um novo Gelásio, distinguindo esses dois poderes, saibamos estar atentos aos abusos dos que querem confundir o céu e a terra, sejam eles as igrejas que em troca de dinheiro prometam bens espirituais; sejam os capitalistas que em troca de bens espirituais prometam dinheiro. Ou assim já não faz mal!?

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