domingo, 17 de fevereiro de 2008

Pentimento: "Haverá Sangue", de Paul Thomas Anderson

As primeiras imagens são magníficas: um homem, os músculos, fibras, ossos, veias de um homem, confundem-se com a rocha, a lama, o cascalho, fundem-se com a terra, nascem dela e combatem-na logo, na força e no mistério dos primitivos: Griffith muito, Walsh, mas também Murnau, numa terra de ninguém onde pode surgir uma planta viçosa, mas tudo é ainda improvável. Daniel-Day Lewis está enfiado num túnel que ele próprio escavou, à procura do futuro: o petróleo. É o melhor arranque deste ano.

A seguir parte uma perna, arrasta-se (elipticamente) por vales e colinas de pedra, regista o esforço, do buraco no chão faz nascer uma plataforma, da plataforma tira um lago negro e uma criança orfã, da criança tira a simpatia dos pequenos proprietários e capatazes que vai enganando, destes arranca a localização de investimentos futuros, de um deles conquista a informação de um jazigo poderoso, e chega à terra de ninguém, carro movido pelo que arranca das profundezas, num deserto que será, cem anos depois, a mais próspera região do planeta: a Califórnia. São 20 minutos de uma intensidade surda, como um terramoto prestes a levar tudo e todos, um cinema telúrico, por vezes visceral, sem palavras, só pancadas braçais, consentimentos entre homens de vida precária e fidelidade inquestionável, eles e a rocha, e a lama, e o cascalho do princípio, e no princípio de tudo. Aqui, nestes 20 minutos, Paul Thomas Anderson compreende Hawks e Welles, mas sem a delicadeza dissimulada do primeiro e as tentações estéticas do segundo, funde-se com o King Vidor de "O Pão Nosso de Cada Dia" mas recusa todo o juízo moral, e confirma-se um talento à altura dos grandes, sem paralelo na sua geração (Terrence Malick é um poeta, não é um prosador como Anderson, e tem mais 25 anos).
Depois, bem, depois chegam os problemas (esse tipo de problemas, Hawks resolveria-os; Welles não, que era demasiado disperso para as argamassas narrativas).
P. T. Anderson, como os artífices visionários que cegam com a intensidade da sua visão, não sabe transformar o imenso poder das suas imagens de suor, sal e sangue na poeira, e vai perdendo - como uma fonte que seca lentamente, ao ritmo de um balde por dia - o sentido narrativo do seu imenso cometimento: quando damos por ela, o que há para contar não é tão importante como o que há para sentir, e o protagonista - a personagem de Lewis, esse pioneiro de mãos nuas, auto-criado do nada - muda de natureza, que é a pior coisa que pode acontecer a uma personagem.
Apesar da ambição, apesar da cegueira, apesar da rudeza, a personagem de Daniel Day-Lewis é um homem suficientemente simples (no que a simplicidade tem de mais nobre) e compassivo para submeter a sua voracidade e a sua inteligência à preocupação pelos seus ajudantes, a um mínimo sentido comunitário e, sobretudo, a um amor crescente e inexpugnável pelo filho adoptivo, cujo pai morrera nas entranhas da terra. Mas, de súbito, pelo diálogo - é uma conversa entre Lewis e um "irmão" recém-chegado - descobrimos que a sua natureza é mais deslocada de um sentido mínimo de humanidade do que as acções da personagem sugeriram até então. E o filme descamba. Devido a um acidente com o filho - cujas consequências na relação entre os dois, são apesar de tudo, recuperáveis -, o man of oil de Lewis transforma-se num man of hate: tudo abomina, tudo devora, matando e pilhando por uma raiva que a primeira metade do filme nunca justificou inteiramente. Resultado: as imagens - sobretudo as do primeiro acto - são tão impressionantes e indeléveis como algumas imagens de "Greed" de Von Stroheim. O filme, esse, termina em farsa, como um poço abandonado do qual não sai nem mais uma gota. A culpa? É do argumentista (chama-se Paul Thomas Anderson).

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