sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Fundamento e encontro I


Algures lembrei que um dos efeitos da recusa dos fundamentos da Europa era a bipolaridade entre a obsessão do fundamento e o desvio em relação a ele. Na Europa, quando se recusa o fundamento o efeito é sempre o do desvio ou o da obsessão em relação a ele. Não me interessava na altura dar soluções civilizacionais ou filosóficas ou as que fossem à coisa. Não era esse o lugar.

Mas tenho agora de enfrentar mais directamente a sua estrutura. Como vê o mundo quem recusa ver fundamentos? Como se comporta o que ele recusa? O que lhe falta?

Como vê ele o mundo? Com estreiteza de vistas. O mundo aparece-lhe por ali, pasmado, flutuante, não se sabe sustentado em quê, e não admite sequer que outros tentem saber. No seu mundo as portas fecham-se. Não se podem discutir os fundamentos da Europa, por forma a que em cada momento se possa arbitrariamente dizer o que ela é. Às Segundas-feiras, Marrocos é parte da Europa, às Terças e Quintas é a Turquia, aos Sábados talvez seja o Cazaquistão. «Mas o que é a Europa?». «Mas o que é a felicidade?», «Mas o que é a verdade?». Todas estas perguntas sobre a essência que se querem fim de discussão bebem de um mesmo modo de estar na vida, que usa a pergunta como forma de parar o questionamento.

Não é incidente que a pergunta na maioria das línguas exija uma ênfase sonora. Quando se fala mais baixo, a ênfase está na interrogativa. «ONDE está o João?». Mas se a pergunta é feita à distância, se for necessário berrar para alguém nos ouvir, na ênfase cantamos a interrogativa e modulamos o sujeito: «onde está o JOÃÃÛÛ?». A língua portuguesa, que não costuma ser muito cantada, neste caso canta, entrega-se à melodia. Talvez não seja indiferente que assim seja.

Quando é fácil que nos ouçam, insistimos na interrogativa. A única coisa que temos de salientar é que estamos a interrogar. O resto do discurso ouve-se naturalmente, e por isso não é necessário dar ênfase a nada mais. Mas quando estamos a falar com interlocutores longínquos ou mais duros de ouvido temos de insistir sobre o tema. O tema é o dito «João» que procuramos e não encontramos.

O que é a Europa, a verdade ou a felicidade, quando perguntado na intimidade e em elo de verdadeira comunicação, apenas precisa de dar ênfase ao facto de estarmos a questionar. Quando falamos ao longe, é o tema que tem ênfase. Quando Pilatos pergunta o que é verdade, repete um tópico trivial da sua época (e de muitas outras). Quem o ouve baixo apenas percebe que está a fazer uma pergunta. Quem o ouvisse alto sabe que não é tanto a pergunta que interessa, mas o tema, o da verdade. E o tema, no seu caso é mera retórica. Foi desfeito pela própria pergunta. A pergunta não fez ligação, não quis obter resposta. Quis pura e simplesmente dizer que o tema existia para ser fechado nesse momento.

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