Valores
Quando se discutiu a Constituição europeia falou-se muito do Cristianismo. Quem era contra dizia que não havia que pôr Deus na Constituição. Como se o cristianismo não fosse um facto histórico. Daí se começou a falar de valores cristãos. Como se uma religião se reduzisse a valores. E pior ainda valores morais. Este cúmulo de reduções mostra a vida reduzida e o reduzido espaço intelectual que atravessa o espaço público.
A Europa passou os extremos da negação dos valores e é natural que retome o seu passado cristão (humanista, dizem uns) de negação da natureza instrumental do ser humano. Quando cientistas do Institut Pasteur tornaram do domínio público o genoma humano para que não pudesse ser patenteado por uma empresa senti-me orgulhoso de ser europeu. Apesar de tudo há limites. Mas há sobretudo limites para reduzir tudo aos valores.
Os valores são sempre uma auto-limitação. Assumir valores implica sempre contrair possibilidades de vida, mesmo que isto sirva de impulso para nos lançarmos a outras possibilidades. Como em tudo, depende do grau sabermos se o balanço final é de alargamento de vida ou a sua anulação. O facto de ser uma auto-limitação não significa sempre autonomia ou liberdade. O escravo que assume a obediência não é menos escravo por isso. O escravo revoltado por dentro não assumiu o valor da obediência. O submisso, embora isso tenha sido fruto de contracções externas, auto-limitou as suas possibilidades.
Os valores opõem-se por isso a tudo o que os complementa: as hetero-limitações e os alargamentos. Todos nós nascemos com limitações que nos são impostas: a família, o sexo, a beleza física, a inteligência. Não contribuimos em nada para isso. Não faz parte dos meus valores ser homem, ter nascido em África ou na Europa, ser burro ou inteligente. Do lado dos alargamentos, não faz igualmente parte dos meus valores ter recebido uma herança, ou actuar desta ou de outra forma, ter-me expandido como pessoa ou não. Quando muito alguns alargamentos podem ser consequência dos nossos valores, mas não são os valores em si mesmos. Em suma, o que se opõe aos valores são as inércias. Sejam de movimento, sejam de repouso.
A discussão sobre os valores da Europa mostra por isso desde logo um vício lógico: o da incompletude. Discutir os valores europeus é esquecer o que são as limitações externas e os alargamentos europeus, a sua herança, a sua natureza, os seus condicionamentos históricos. Discutir apenas os valores europeus como fundamento da Europa é assim fazer de conta que é europeu o Eufrates, europeu o janízaro, europeu o clima tropical. As ficções em si mesmas podem ser bastante agradáveis mas têm o inconveniente de serem fraco sustento para projectos a longo prazo. A ficção gera o vício e a dependência e nunca sustentou a liberdade. A liberdade é privilégio dos lúcidos.
Independentemente de se considerar as hetero-limitações e os alargamentos como inevitáveis, inultrapassáveis ou não, a verdade é que representam uma imensa inércia histórica. Querer ultrapassá-los tem um custo. E entra aqui o segundo vício lógico da discussão sobre os valores europeus. É que ir além das inércias, integrar um quarto do Médio Oriente tem custos, mais que económicos, de configuração da coisa europeia. E nenhum desses custos foi posto na mesa, bem como as vantagens são apenas adjectivadas e nunca concretizadas.
O terceiro vício, em consequência, foi o de se confundirem valores e identidade. Eu posso ter exactamente os valores do meu vizinho, mas não me identifico com ele. A identidade política não se constrói apenas de valores, mas de inércias. O minhoto e o galego podem ser mais parecidos nos seus valores que o minhoto e o algarvio e no entanto partilham de diversas inércias.
Mas a discussão sobre os valores padeceu concretamente de outro vício. O quarto. É que esses valores nunca foram enunciados. E quando o são, mostram que afinal não existe Europa. Porque se trata de democracia ou liberdade, então tenho de concluir que fora da Europa só há ditaduras, ou então em todos os continentes existe Europa.
É que o problema reside exactamente na discussão incompleta sobre os valores. Muito provavelmente os valores políticos europeus distinguem-se pouco dos americanos ou dos de outros democracias. Existem sobretudo modos diversos de viver esses valores. E esses modos diversos têm origem em valores que não vêm da politica e inércias que estão dentro e fora dela. Concretamente, o modo de fazer política associa valores estéticos (a crítica a certos governantes é em grande medida mais de repulsa estética que de oposição a um programa), moral, ou outros. E se o modo de fazer política na Europa diverge do de outras democracias, e muito profundamente, tem a ver com instituições, não apenas políticas, mas familiares, sociais, e modos de vida que evoluíram da Europa de modo diverso e de acordo com uma História bem mais profunda.
Na discussão sobre os valores em nada ajudou o facto de os políticos, jornalistas, comentadores pouco saberem do que é a Europa. Poucos vão a mais de umas décadas de História europeia, poucos conhecem algo de ciência ou matemática, de filosofia europeia só ouviram súmulas mal digeridas, da arte europeia incluindo a literatura conhecem sinais de tráfego geralmente mal instalados. Quiseram discutir aquilo para que exactamente são mais ineptos. E o problema que têm os valores, em relação aos interesses e o poder, é que apenas são convenientes com base no testemunho. Não é por acaso que a maior religião do mundo se baseia no testemunho de uma vida (e que vida). Ora dá-se o caso de serem os mesmos que falam de liberdade que dão factos consumados aos povos, os mesmos que falam em democracia que ou fazem leis à sua medida ou fazem-nas sem medir o que os povos pretendem.
Os valores são dizíveis, mas raramente há quem o saiba fazer. E foram precisamente os mais ineptos como teóricos e menos autorizados para testemunhar que mais insistiram na questão. É natural que a discussão sobre os valores esteja inquinada.
O problema é que necessariamente toda a acção e construção política estão banhadas de valores. Ao contrário do que dizem os pudicos, os valores são inevitáveis. Faz parte da nossa condição humana individual e colectiva auto-limitar-nos. É essa uma das nossas grandezas. E características. Na política um dos valores principais é o de aumentar o respectivo poder o mais que se puder. Outros valores estão aí para limitar não a dimensão do poder, mas o uso que dele se faz. E os interesses estão aí para modelar o seu concreto uso.
Quais são os valores da Europa? Braudel dizia que era não a liberdade, mas as liberdades. É uma menos má síntese para um historiador. Mas quem ler Homero, o Novo Testamento, Euclides e Dante fica com uma boa ideia aproximada do que sejam. Prefiro não entrar no campo das banalidades.
A discussão é tão primitiva neste momento que ainda falta dizer e fazer o essencial, o ponto de partida. Que não basta discutir valores, mas é preciso discutir igualmente inércias; que os custos de se contrariar essas inércias, bem como as vantagens têm de ser claramente discutidos à luz do dia, que discutir valores não nos isenta de discutir a identidade europeia, que só está apto para entrar na liça quem saiba ou quem possa ser testemunho e que, finalmente, dado que creio que falamos de política, o poder tem de ser claramente assumido como um valor, deixando para outros valores e interesses a questão do seu uso.
A Europa passou os extremos da negação dos valores e é natural que retome o seu passado cristão (humanista, dizem uns) de negação da natureza instrumental do ser humano. Quando cientistas do Institut Pasteur tornaram do domínio público o genoma humano para que não pudesse ser patenteado por uma empresa senti-me orgulhoso de ser europeu. Apesar de tudo há limites. Mas há sobretudo limites para reduzir tudo aos valores.
Os valores são sempre uma auto-limitação. Assumir valores implica sempre contrair possibilidades de vida, mesmo que isto sirva de impulso para nos lançarmos a outras possibilidades. Como em tudo, depende do grau sabermos se o balanço final é de alargamento de vida ou a sua anulação. O facto de ser uma auto-limitação não significa sempre autonomia ou liberdade. O escravo que assume a obediência não é menos escravo por isso. O escravo revoltado por dentro não assumiu o valor da obediência. O submisso, embora isso tenha sido fruto de contracções externas, auto-limitou as suas possibilidades.
Os valores opõem-se por isso a tudo o que os complementa: as hetero-limitações e os alargamentos. Todos nós nascemos com limitações que nos são impostas: a família, o sexo, a beleza física, a inteligência. Não contribuimos em nada para isso. Não faz parte dos meus valores ser homem, ter nascido em África ou na Europa, ser burro ou inteligente. Do lado dos alargamentos, não faz igualmente parte dos meus valores ter recebido uma herança, ou actuar desta ou de outra forma, ter-me expandido como pessoa ou não. Quando muito alguns alargamentos podem ser consequência dos nossos valores, mas não são os valores em si mesmos. Em suma, o que se opõe aos valores são as inércias. Sejam de movimento, sejam de repouso.
A discussão sobre os valores da Europa mostra por isso desde logo um vício lógico: o da incompletude. Discutir os valores europeus é esquecer o que são as limitações externas e os alargamentos europeus, a sua herança, a sua natureza, os seus condicionamentos históricos. Discutir apenas os valores europeus como fundamento da Europa é assim fazer de conta que é europeu o Eufrates, europeu o janízaro, europeu o clima tropical. As ficções em si mesmas podem ser bastante agradáveis mas têm o inconveniente de serem fraco sustento para projectos a longo prazo. A ficção gera o vício e a dependência e nunca sustentou a liberdade. A liberdade é privilégio dos lúcidos.
Independentemente de se considerar as hetero-limitações e os alargamentos como inevitáveis, inultrapassáveis ou não, a verdade é que representam uma imensa inércia histórica. Querer ultrapassá-los tem um custo. E entra aqui o segundo vício lógico da discussão sobre os valores europeus. É que ir além das inércias, integrar um quarto do Médio Oriente tem custos, mais que económicos, de configuração da coisa europeia. E nenhum desses custos foi posto na mesa, bem como as vantagens são apenas adjectivadas e nunca concretizadas.
O terceiro vício, em consequência, foi o de se confundirem valores e identidade. Eu posso ter exactamente os valores do meu vizinho, mas não me identifico com ele. A identidade política não se constrói apenas de valores, mas de inércias. O minhoto e o galego podem ser mais parecidos nos seus valores que o minhoto e o algarvio e no entanto partilham de diversas inércias.
Mas a discussão sobre os valores padeceu concretamente de outro vício. O quarto. É que esses valores nunca foram enunciados. E quando o são, mostram que afinal não existe Europa. Porque se trata de democracia ou liberdade, então tenho de concluir que fora da Europa só há ditaduras, ou então em todos os continentes existe Europa.
É que o problema reside exactamente na discussão incompleta sobre os valores. Muito provavelmente os valores políticos europeus distinguem-se pouco dos americanos ou dos de outros democracias. Existem sobretudo modos diversos de viver esses valores. E esses modos diversos têm origem em valores que não vêm da politica e inércias que estão dentro e fora dela. Concretamente, o modo de fazer política associa valores estéticos (a crítica a certos governantes é em grande medida mais de repulsa estética que de oposição a um programa), moral, ou outros. E se o modo de fazer política na Europa diverge do de outras democracias, e muito profundamente, tem a ver com instituições, não apenas políticas, mas familiares, sociais, e modos de vida que evoluíram da Europa de modo diverso e de acordo com uma História bem mais profunda.
Na discussão sobre os valores em nada ajudou o facto de os políticos, jornalistas, comentadores pouco saberem do que é a Europa. Poucos vão a mais de umas décadas de História europeia, poucos conhecem algo de ciência ou matemática, de filosofia europeia só ouviram súmulas mal digeridas, da arte europeia incluindo a literatura conhecem sinais de tráfego geralmente mal instalados. Quiseram discutir aquilo para que exactamente são mais ineptos. E o problema que têm os valores, em relação aos interesses e o poder, é que apenas são convenientes com base no testemunho. Não é por acaso que a maior religião do mundo se baseia no testemunho de uma vida (e que vida). Ora dá-se o caso de serem os mesmos que falam de liberdade que dão factos consumados aos povos, os mesmos que falam em democracia que ou fazem leis à sua medida ou fazem-nas sem medir o que os povos pretendem.
Os valores são dizíveis, mas raramente há quem o saiba fazer. E foram precisamente os mais ineptos como teóricos e menos autorizados para testemunhar que mais insistiram na questão. É natural que a discussão sobre os valores esteja inquinada.
O problema é que necessariamente toda a acção e construção política estão banhadas de valores. Ao contrário do que dizem os pudicos, os valores são inevitáveis. Faz parte da nossa condição humana individual e colectiva auto-limitar-nos. É essa uma das nossas grandezas. E características. Na política um dos valores principais é o de aumentar o respectivo poder o mais que se puder. Outros valores estão aí para limitar não a dimensão do poder, mas o uso que dele se faz. E os interesses estão aí para modelar o seu concreto uso.
Quais são os valores da Europa? Braudel dizia que era não a liberdade, mas as liberdades. É uma menos má síntese para um historiador. Mas quem ler Homero, o Novo Testamento, Euclides e Dante fica com uma boa ideia aproximada do que sejam. Prefiro não entrar no campo das banalidades.
A discussão é tão primitiva neste momento que ainda falta dizer e fazer o essencial, o ponto de partida. Que não basta discutir valores, mas é preciso discutir igualmente inércias; que os custos de se contrariar essas inércias, bem como as vantagens têm de ser claramente discutidos à luz do dia, que discutir valores não nos isenta de discutir a identidade europeia, que só está apto para entrar na liça quem saiba ou quem possa ser testemunho e que, finalmente, dado que creio que falamos de política, o poder tem de ser claramente assumido como um valor, deixando para outros valores e interesses a questão do seu uso.
Alexandre Brandão da Veiga
2 comentários:
"Todos nós nascemos com limitações que nos são impostas: a família, o sexo, a beleza física, a inteligência. Não contribuimos em nada para isso."
Frase tão verdadeira como a própria verdade.....E por isso deveria ser relida a diário em todos os templos religiosos mundiais!
Abordagem interessante - e original (para mim, pelo menos).
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