segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Deus Ainda Mexe

Agradeço ao Gonçalo o comentário e a simpática avaliação do que escrevi aqui. Escrevi-o com mais seriedade do que a ligeireza da prosa possa fazer supor, mas sem a pretensão de tocar o diáfano manto de uma Verdade que o meu Relativismo não me autoriza. Autorize-me o Gonçalo estas notas tentativas, que eu, por se tratar como diz de “grandes questões”, promovo a post para animar a “Geração de 60”, remetendo leitores curiosos para o comentário do Gonçalo Magalhães Collaço (leitura obrigatória) que o justifica:


1. Santo Agostinho que me perdoe mas entre Pensamento e Acção, tanto é “Vontade” ter fé como não a ter. Diria mesmo que, quando se tem consciência do passo que se está a dar, a irremediável solidão para que nos remete a “Vontade” de não ter Fé, exige um estoicismo superior ao da adesão a qualquer protectora e consoladora eclésia.
2. Gonçalo lança-nos um desafio: “A Verdade, o Bem, o Belo não apelam sempre à eternidade?” Se forem a filosofia e as ciências no seu actual estádio a responder, temo que a resposta seja negativa. Por exemplo, pelo paradigma da filosofia analítica a asserção do Gonçalo é destítuida de sentido. E não vejo que, para a ciência, conceitos maiúsculos como os que enuncia tenham assento na Academia.
3. O Gonçalo confronta-nos também com outro suposto dilema, “o do vazio repugnar intrinsecamente à humanidade”. A frase, e o Gonçalo sabe-o, não tem valor filosófico ou científico. A humanidade é uma generalização e o advérbio de modo implica uma necessidade que não é (não foi até hoje) verificável.
4. Há uma frase do Gonçalo que, até pela sua ressonância “diluviana”, me tocou: “...onde se crê ter morrido Deus, morreu também o Homem, mais não restando senão a mais inclemente das barbáries”. Discordo. Não creio existir qualquer lógica de necessidade e universalidade no famoso dito de Dostoievsky segundo o qual “Se Deus não existe tudo é permitido”. Desde Kant que a constituição de uma ética dispensa a transcendência (mas não a ideia transcendental de liberdade). A morte de Deus, se é que esse meu Velho e ardiloso amigo se finou, não desobriga o homem do imperativo da razão. Há longos anos divorciado do contacto com a filosofia, estou ainda assim convencido de que, neste passo, o imperativo categórico kantiano nos evita essa queda no abismo que o Gonçalo considera inapelável e irreversível. Sabe que mais Gonçalo, vou sacudir o pó a uns livritos esquecidos com os áridos títulos de “Crítica da Razão Prática” e “Fundamentos Metafísicos da Moral”. Palpita-me que me ajudarão a concluir que não é a ordem divina que nos obriga à moralidade, mas é a moralidade que nos indica a possibilidade de uma “vontade sagrada”.

A finalizar: se no meu “post” original louvei os que, através da fè em Deus, da beleza e da consolação da transcendência, superam a prosaica e putativa baixeza da condição humana, quero agora fazer a dévida vénia ao “homem só” que, sem outra esperança a de não ser o consolo da felicidade que decorre de olhar (e actuar) para todos os homens como seus iguais à luz da lei moral, ama “... o seu semelhante no que ele tem de único, / de insólito, de livre, de diferente...” (Jorge de Sena, “Carta a Meus Filhos Sobre os Fuzilamentos de Goya”).

3 comentários:

Miguel Poiares Maduro disse...

Os posts do Manuel e os comentários da Sófia e do Gonçalo estão entre o melhor que este blog já produziu. Quase que tinha vontade de ficar apenas em silêncio mas não resisto a intervir no debate entre o Manuel e o Gonçalo sobre as hipotéticas consequências da ausência de Deus. Tal como o Manuel também eu sou desprovido de fé e não me acho desprovido de moralidade. Acho que a fé pode ser uma forma de procurar a moral mas a fé não nos oferece uma moral. Para mim (não crente) o episódio mais fascinante da bíblia sempre foi a saída de Adão e Eva do Paraíso. Porque razão Adão e Eva seriam tentados a sair do paraíso e porque razão os tentaria Deus? Só encontro uma explicação: é a concessão da liberdade por Deus e da responsabilidade que isso acarreta. Mas a consequência disto é que a nossa moralidade deve ser sempre construída, mesmo de um ponto de vista religioso, em liberdade e não como um comando de Deus. Paradoxalmente, só uma moral construída em liberdade será fiel à vontade de Deus.

Sofia Galvão disse...

Mas, precisamente, comendo o fruto proibido da Árvore da Sabedoria, homens e mulheres iniciaram a longa jornada que lhes permitiu conhecer o bem e o mal. Em consequência, todas as gerações foram votadas à morte.
Porém, com Cristo e em Cristo, para quem acredita, a vida eterna supera e une as duas árvores do Génesis. Ter fé, para um cristão, significa, afinal, a felicidade de religar sabedoria e vida.
Mas, Miguel, concordo contigo: em liberdade. Essa liberdade querida e concedida por Deus para que dela fizéssemos um exercício responsável.
Aliás, só me afasto de ti quando vês nisto um paradoxo. Por mim, pelo contrário. A liberdade é um comando de Deus... Em termos morais, o primeiro e mais essencial.

timshel disse...

"a nossa moralidade deve ser sempre construída, mesmo de um ponto de vista religioso, em liberdade e não como um comando de Deus. Paradoxalmente, só uma moral construída em liberdade será fiel à vontade de Deus."

Esta visão é não só compatível mas perfeitamente em consonância com a doutrina da Igreja.

Mas permito-me fazer de advogado do diabo e voltar um pouco atrás porque um pouco antes parece sugerir que é possível existir moral sem um fundamento transcendental.

O comportamento moral (fazer algo que não apetece mas que deve ser feito) sem um comando de Deus encontra a sua fundamentação onde? Na utilidade? E quando o comportamento moral não for útil?

Qualquer outra fundamentação que não a utilidade, implica uma fundamentação transcendental da moral, mesmo quando assume as vestes do "agir em liberdade e em consciência".

Em muitos casos (felizmente) este "agir em liberdade e em consciência" corresponde objectivamente ao agir em conformidade com o "comando de Deus". Mas, não existindo esta referência, parece provável (e quase inevitável) que lentamente esse comando "individualista" do "agir em liberdade e em consciência" tenda apenas a satisfazer a moral cuja fundamentação é a utilidade. Que passa a ser muitas vezes a utilidade do próprio. Que, por sua vez, pode não coincidir muitas vezes com o comando de Deus.